Love on top: a verdade nua e crua dos reality shows




Hoje o assunto no café foi a Reality TV, mais propriamente o Love on Top, o programa da TVI.  Em busca rápida na net, apercebo-me de que podemos através da NOS , parceiro da TVI nesta aventura amorosa, seguir tudo o que se passa na "mansão do amor", cenário do polémico reality show. E mais: até existe um canal inteiramente dedicado a reality shows, em exclusivo na NOS, numa transmissão de 24h/dia: o canal TVI Reality. Isto não é mais nem menos do que é dedicado a outras temáticas, mas é sinónimo da importância que os reality show alcançaram no panorama televisivo. Através da app TV Love on Top, podemos aceder às várias câmaras da casa e acompanhar a acção em qualquer das divisões: a cozinha, a sala, a suite, a piscina, o jardim, votar nos concorrentes nomeados e decidir o rumo do jogo através da votação, que leio ser gratuita para clientes NOS. É assim que podemos ver o programa em todo o lado: no PC, no tablet e no smartphone. Fascinante, não? Voyeurismo top disfarçado de entretenimento permite-nos experimentar um pouco da malícia de observar a intimidade dos outros sem levarmos com o selo da preversão!

Tanta tecnologia, tanto investimento! Até podia ser levada a pensar que se trata de algo imperdível. Mas é apenas mais um reality show e nem sequer é novidade, nem no formato, nem na temática do dating. O reality show começou timidamente. No início, em 1948, o reality show não passava de uma filmagem de pessoas comuns a reagirem a inesperadas situações incomuns, como partidas (Candid Camera), para arrancar umas boas risadas à audiência. Muitas possibilidades haviam de ser exploradas desde então. Love on top remete para a temática do dating. A partir do ano 2000, os reality show com competições em torno do dating, onde os concorrentes iam sendo eliminados no decurso do programa, começaram a invadir a TV americana: The Bachellor e The Bacchellorette - um solteiro, ou solteira, vai encontrar a sua cara-metade num grupo de pretendentes que vão sendo eliminados ao longo do tempo; The average Joe, onde homens comuns tentam conquistar o coração de uma bela mulher; em Flavor of Love , mulheres competem pelo coração do Flavour Flav (conhecido membro dos Public Enemy) enquanto vivem juntas numa mansão em Encino, na Califórnia. Ele é ajudado pelo seu guarda-costas e motorista Big Rick. O final da temporada acontece num destino tropical: finalistas e Flav passam os últimos dois dias num resort de luxo que precede sua decisão final. Married by America , outro, onde cinco pessoas solteiras concordam em unir-se a estranhos escolhidos pelos Estados Unidos. Os cinco casais recém-formados conhecem-se e envolvem-se através de indicação de membros da família e votos por telefone dos telespectadores americanos. Em seguida, os cinco casais ficam reclusos no Copper North Ranch por um período de noivado e especialistas em relacionamento observam e eliminam um casal por semana. Os dois casais finalistas decidem se querem ou não casar-se. Em A Shot at Love, da MTV, Tila Tequila, uma modelo e cantora de origem vietnamita, bissexual, escolhe de entre 32 pretendentes, vivendo na sua casa, local onde se desenvolveram a maioria das provas. Considerado amoral e apologético do bissexualidade, as cenas "quentes" geraram críticas de incitação à promiscuidade.

Referi os títulos acima como alguns exemplos, existirão mais, e apenas os trago para que se constate que a TVI não está a ser pioneira em nada. Ser original até será difícil pois os americanos fizeram reality shows sobre quase tudo, e, venderam-nos ao mundo, com êxito: mesmo que não os tenhamos visto já ouvimos falar de Keeping up with the Kardashians, que incide sobre a vida dos elementos Kardashian e seus satélites, gente famosa por ser famosa,  The real housewives, mostra o quotidiano de mulheres ricas e a sua vida plena de glamour, , Big Brother, dispensa apresentaçõesCops, polícias são seguidos por cameraman enquanto desenvolvem as suas rotinas; em  Top Chef, chefes de cozinha competem uns contra os outros; American Idol, um programa que procurava encontrar o melhor cantor americano, com júri, que auxiliava o voto dos telespectadores com a sua opinião; Project Runaway, os concorrentes fazem design de moda, de acordo com um tema, numa corrida contra o tempo: vi vários destes programas, com Heidi Klum como anfitriã. The apprentice, com Donald Trump como anfitrião, onde os candidatos competiam por um lugar na empresa de Trump;The biggest looser, mostrava-nos pessoas desesperadas por perder peso e ganhar um prémio em dinheiro, em Portugal, Bárbara Guimarães apresentou, suscitou críticas da parte de nutricionistas e coachers; Hell's Kitchen, de Gordon Ramsey, onde chefes competem por um lugar num restaurante; Dancing with the stars, onde uma celebridade faz parelha com um dançarino profissional, os pares competem uns contra os outros, semana a semana; Survivor, que foi originalmente uma ideia sueca, onde um grupo de pessoas é colocado num local e tem de encontrar comida e abrigo para sobreviver, compete entre si, realizando desafios diversos em ambientes adversos, alguns bem duros e nojentos, para obter recompensas, escapar à expulsão e ganhar uma pipa de massa. Neste vale-tudo há ainda espaço para relacionamentos, imprevistos e traições de toda a espécie. Este reality show foi nomeado para Emmys e recebeu críticas muito positivas: a revista Time incluíu-o numa lista dos melhores 100 programas de sempre. Há 18 anos que está no ar e embora os fãs comecem a relatar algum cansaço, as audiências continuam fortes, pelo que em fórmula vencedora não se mexe.

Não adianta escamotear a realidade: a audiência destes programas é gigantesca, quer nos EUA, quer pelo mundo, em formatos adaptados em muitos países, por muito que a gente torça o nariz quando ouve as palavras reality show na mesma frase e que descubra que horários nobres são preenchidos com eles, ainda que parcialmente. Sempre haverá quem fique fascinado com a ideia de poder observar a vida dos outros "pelo buraco da fechadura" e a televisão foi atrás de quem não resiste ao fascínio do outro, dantes secreto, agora tão acessível. O reality show singra e perdura não porque é o melhor entretenimento do mundo televisivo mas porque é rentável para os seus produtores. E é rentável porque muitas pessoas, dos mais variados escalões etários e graus de instrução, gostam de seguir as suas peripécias.

O telespectador do reality show não quer cultura, não quer excelência, ou veria antes Os sopranos, ou Fargo, ou The Terror. Ele quer apenas diversão ligeira sem preocupações, e embora a mim a cultura mais séria me divirta, compreendo que outros prefiram outras cenas, como fazer ponto de cruz, criar canários, ir ao futebol, ir às compras, ou ver o Big Brother, na TV. Muitos reality shows serão talvez formatos preguiçosos porque protagonizados por gente comum, sem preparação para a representação, sem talentos apreciáveis, sem guião estruturado, gente que se torna famosa por aparecer na TV a não fazer nada a não ser reagir quando instigada, em cenários caricatos. Dir-se-ia que são programas feitos por preguiçosos para mentes preguiçosas. Só que nem todos queremos programas estimulantes e de digestão pesada a toda a hora, nem eu mesma. Todavia, não é raro os reality shows conterem cenas de teor sexual que muito público considera inadequadas para o pequeno ecrã, cenas de racismo explícito, violência física, psicológica e verbal, demonstrações de ignorância crassa, humilhações e incitação ao conflito quer por concorrentes entre si, quer pela produção, que são exploradas para a nossa diversão. Se isto não é uma distorsão do que a vida real devia ser não sei o que será. Desde quando é aceitável humilhar alguém para me divertir na vida real? Ou permitir que alguém o faça sem denunciar? Que juizo de carácter faria de mim mesma nessa situação?

Pretensamente a vida observável nestes programas seria a "vida real", os acontecimentos a desenrolar-se-iam à nossa frente em tempo real. Mas a realidade destes programas é sempre encenada em alguma medida, e essa é ainda a menor crítica de todas as que lhes posso tecer. Uma profusão de câmeras filma em contínuo mas nem tudo é mostrado: a produção acaba por construir a sua narrativa. Por exemplo, em Love on top, o reality show da TVI, antes disso tudo acontecer, os concorrentes são selecionados através de extenso questionário onde lhes é perguntado pela infância, família e amigos - quem foi a pessoa mais marcante da sua infância e porquê, qual foi a coisa mais inconsciente que fez na adolescência, - e exaustivamente sobre a vida sentimental - se já traíu, se foi traído, se perdoa, os truques de sedução, flirts e encontros tidos pela net, fetiches,etc,  - e informações pessoais - interesses, passatempos, fobias, operações plásticas, sonhos, ídolos, etc. Ou seja, a selecção de candidatos é feita cuidadosamente para encontrar certos perfis e potenciar as dinâmicas entre concorrentes, certamente no interesse do espectáculo, bem longe dos encontros e desencontros da vida real. Pergunto, pois, até que ponto serão os concorrentes assim seleccionados representativos dos telespectadores. Além disso, são tantas vezes colocados em cenários de teste invulgares,  até extremos- veja-se Survivor - caso em que poucas vezes a vida real se lhes pode assemelhar. Ou então, artificiais, como uma mansão isolada do mundo.

Cai-me  mal esta ideia de usar a vida real como evasão da vida real, que é justamente o que me apetece quando vejo um filme ou uma série na TV. Não, não  prefiro ver pessoas comuns na TV em vez de actores profissionais, sobretudo se o diálogo espontâneo com que nos brindam, é, por vezes, tão pobre e ignorante que faz doer o cérebro. Como valorizar, assim, a inexistência de um guião? Ou a ausência de uma boa edição? Mas apenas e tão só a ideia de existirem  câmaras escondidas aqui e ali, para  captar os concorrentes, já me é desagradável. É que, da forma como eu vejo, verificou-se uma tremenda mudança da noção de privacidade nos últimos tempos que este tipo de programas reflete e que eu lastimo. Do tempo em que a vida privada merecia resguardo e era tida como algo a preservar, até ferozmente, passámos aos tempos em que se valoriza a hiper- exposição. Quem não se expõe não existe. Mais: não vale quase nada. Perguntemos a alguém pela noção de vida privada e a questão poderá até gerar perplexidade quando a vida pessoal é exposta nas redes sociais a cada dia, de forma voluntária ou não, em detalhe colorido. É esta a nova forma de estar, é a nova normalidade. Num  reality show como Love on Top, onde existe competição - é um game show, o "jogo do amor", diz a apresentadora - parece que se alinham o voyurismo dos telespectadores, o exibicionismo dos concorrentes, -  na sua ânsia por reconhecimento social que hoje equivale a máxima exposição mediática, -  e a competição cerrada. Na "mansão do amor" vale tudo para atingir a "final" onde o concorrente triunfante vai receber um prémio algo ridículo: uma viagem supostamente paradisíaca.

Mas, respiremos fundo: ninguém é forçado a entrar nestes programas nem a vê-los, embora questione se uma pessoa está no domínio pleno da suas faculdades quando aceita entrar no circo dos reality shows onde a fama e a riqueza (?) são, vulgarmente, os iscos e ao mesmo tempo o índice de (efémero) sucesso pessoal. Do meu lado é fácil: existe um botão de desligar para não compactuar com estes joguinhos. E o que se publica em abundância sobre o assunto também não me excita os neurónios. Por outro lado, também não estou com quem os quer banir. De facto, em nome da liberdade de expressão, temos de aceitar a sua existência, e o melhor será até estudá-los para perceber a extensão do fenómeno, um produto-espelho da sociedade em que vivemos, uma onde, mais do que nunca, se apela ao culto da personalidade e da fama instantânea. No máximo devíamos exigir das empresas produtoras, ou das televisões, uma postura vigilante para que esses cenários "de vida real" não tornem palanques de exibição gratuita de sexo, bullying, racismo e violência. Por vezes estes programas parecem desenhados para fazer emergir as piores qualidades que existem nos seres humanos - o egoismo, a traição, a inveja, a futilidade, a vingança  -, tudo em nome do entretenimento pois é assim a cultura popular na TV: crua de valores e nua de quaisquer responsabilidades sociais.

(Esta postagem continuava mas em virtude de um comentário recebido optei por dividi-la neste ponto em duas partes. Encontram a segunda parte mais adiante e chama-se: Love on top: a ignorância é top. É pena que se trate de um comentador anónimo, pois não lhe poderei dar feedback nem dizer-lhe que fui sensível à sua crítica. De facto, tenho consciência disso, escrevo textos longos, o que para muitos leitores é pura maçada. Tentarei, de futuro, maneirar a escrita, pois sei que escrever com síntese é uma qualidade  que me falta aprimorar!




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