O Parlamento ainda não é o salão de beleza da nação


A fotografia da deputada do Partido Socialista, Isabel Moreira, a pintar as unhas, já deu a volta à internet. Era assunto que estava disposta a considerar como "não-assunto" até ter ouvido uma conversa num café, em Leiria.

O momento artístico foi registado no primeiro dia de discussão na generalidade do Orçamento do Estado para 2019, na sala do plenário da Assembleia da República. Escolhi um texto informativo ao acaso, no caso, este, do DN, para trazer aqui, e já agora leiam também alguns dos comentários feitos a este propósito onde se registam reacções contra o comportamento da deputada: "Interessante. O quarto orçamento seguido sem inconstitucionalidades e que repõe direitos e rendimentos, e o máximo que os direitinhas conseguem é... escandalizar-se com unhas." ou "Não vejo qual o problema... muitas mulheres o fazem nos seus serviços e não vem mal ao mundo por aí... deixem de inveja!" ou "Quando estiver a gritar pelos direitos das mulheres e pela sua defesa, lembre-se disto e das mulheres que, sem trabalho umas e a ganhar o ordenado mínimo nacional outras, lhe dão a oportunidade de poder estar aí a pintar unhas como se estivesse em casa. É que, duvido muito que elas se sintam representadas por si." E reacções a favor: "E, nós que aqui comentamos, quantas acções equivalentes fazemos/fizemos no local de trabalho? Qual a diferença entre pintar as unhas, ou ler o jornal, ou, quem sabe, comentar esta noticia. HAJA VERGONHA!" ou "Penso não ter nada de extraordinário esta atividade, que não impede de se ouvir o que está a passar no hemiciclo, pior será quem está ao lado que terá de suportar o cheiro do verniz. Comparado com alguns deputados que estão a ler, dormir ou a conversar, parece-me algo de bastante inócuo." ou "O povo indigna se com muito pouco...Eu já vi senhoras ao volante a pintar os lábios e os olhos. É para servir de exemplo? Não. É para nós orgulharmos? Não. E será para nos indignarmos? Também me parece que não. Há pequenos pecadilhos da beleza e vaidade feminina que merecem toda a nossa tolerância machista."

Reparo agora que podia ter roubado o título daquelas rubricas no Facebook intituladas "Ouvida no café", onde depois as pessoas contam piadas velhas de cem anos, para esta postagem. Só que este relato não é uma piada e muito menos velha de cem anos, é praticamente leite-do-dia, daquele com que dantes se faziam os galões. Ora, entrei num café ali pertinho da maravilhosa livraria Arquivo, e estavam duas senhoras à conversa numa mesa. Não cheguei bem a reparar nas suas fisionomias, já que entrei apressada, mas imaginem-nas ainda jovens, vestidas para o frio ou chuva, bem penteadas, malas grandes. Pedi logo o café, sentei-me na sua proximidade, na mesa à frente. O espaço estava vazio e ouvia claramente o que diziam, elas não faziam sequer para não ser ouvidas: afinal estavam quase como em casa, eram elas, a empregada de balcão e eu, uma presença invisível, talvez nem tivessem dado pela minha entrada, envolvidas no seu lero-lero. E dizia uma: "Tenho um aluno que já são duas vezes que retoca a maquilhagem na minha aula. Tira uma esponja do estojo e retoca a base! E com uma escova penteia as sobrancelhas. Da primeira vez, olha, fiz que não vi, achei que era provocação, que era melhor não dar importância. Além disso, sabes, fiquei inibida: é um rapaz, já com barba a despontar e tudo. Se fosse rapariga era mais fácil. Mas ontem acabei por lhe dizer que não era o lugar. Sabes o que me respondeu? "Atão a gaja no Parlamento pode pintar as unhas e eu não posso retocar a cara? Qual é o mal, stôra ?"  Quando a outra começou a responder eu já estava junto da caixa a fazer o pagamento da minha bica. Não emitiu grandes juizos, apenas um "É o que dá", e mais qualquer coisa que não me chegou. Quando saí do café tinha começado a relatar outra qualquer circunstância desconfortável ocorrida dentro da sala de aula com que também tinha lidado.

Qual é o mal, pois, pergunto também, de pintar as unhas na Assembleia da República? Para muitos Portugueses parece que não é nenhum. O comportamento de Isabel Moreira teria sido correcto e nós, que achámos a coisa feia, estamos a fazer uma tempestade num copinho de leite. Esses homens e mulheres são aqueles que também achariam, se interpelados sobre isso, que a professora devia ter mantido a boca fechada quando o aluno pintou as beiças na sala de aula. Aliás, choveriam da sua parte, quem sabe, críticas sobre a sua intolerância, o não respeito pela diferença, o abuso de poder. A propósito, deixem-me só fazer outra pergunta: o que pensam se eu, na próxima missa de Domingo, levar o meu frasquinho Express Finish da Maybeline, e aproveitar para pincelar as unhas enquanto o sr. padre repete o texto da velha escritura de sempre, que eu quase sei de cabeça? Que não faria mal nenhum, Deus nem tem conta de Facebook, estaria livre da sua censura divina, pelo menos, via redes anti-sociais, certo?

É giro o afã com que tantos se mobilizam para encontrar os mais fáceis argumentos para desculpabilizar a conduta da  deputada apanhada pelo abjecto jornalista, - que é, possivelmente, um machista de primeira água, ou de direita, um conservador preso a formalidades, e uma nódoa para os seus pares por ter fotografado este desnecessário instante. Usam a justificação da guerrilha política instalada entre esquerda e direita, a propalada capacidade de multi-tasking feminina, a existência de comportamentos semelhantes ou até piores já registados no local, ou então presumem que quem está contra o comportamento da deputada faz igual, o mesmo ou até pior, não tendo moral para criticar, que é um "não-assunto", etc. E porque não dizer, acrescento eu, que o modelo de apresentação, debate e votação do Orçamento é uma porcaria, que precisa de reforma, ou que ninguém consegue manter-se concentrado em contínuo horas sem fim e precisa dos seus escapes? Mas, acrescento também, quantas vezes em longas horas de formação não nos contorcemos nas cadeiras duras e desejámos fumar um cigarro? Ou levar a cabeça a passear? Fizemo-lo? Não creio. Os deputados estão no Parlamento, entre outras coisas, para ouvir e serem escutados. Mas não para ouvir enquanto pintam as unhas, ou cortam os pelos do nariz ou aparam as sobrancelhas. O Parlamento ainda não é o salão de beleza da nação.

Ah! Também é simpático virem invocar a moral que tenho e não tenho. Os costumes ditam, de facto, o que está certo e errado em sociedade. Não vivemos isolados na nossa ilha particular, - e às vezes bem que apetecia, - e por isso temos de nos comportar em sintonia com o que é considerado certo. Sou livre, mas não sou realmente dona do meu agir total, tenho de equacionar o que a sociedade considerou ser a norma, e isso por causa do outro. Acontece que toda a vida me esforcei por ser correcta mas parece que para muitos se está a tornar complicado agir bonito. Olha, querem ver que é por ser coisa que não dá Likes? Às tantas é isso. Como havemos de censurar alunos ("de barba") por não saberem o que é certo e o que é errado fazer num determinado espaço, que não é a sua casa, talvez a sua segunda casa, se há deputadas no Parlamento que ainda não sabem?!

Na sua casa a Isabel até pode, literalmente, pintar a manta. Mas o Parlamento é uma casa pública, uma instituição nacional. Devia ser sinónimo de elevação, de dignidade, de coisa maior. É o local onde se fazem as leis, onde se fiscaliza a acção do Governo e onde os cidadãos portugueses se acham representados por membros eleitos. O que acontece por lá interessa a todos e respeita a todos, mas não raro até parece ser mais importante o que acontece no balneário de uma equipa de futebol. A norma, o costume, dentro do Parlamento, que eu saiba, não é, ainda, estar no Facebook a actualizar o status, ou a jogar Pokemon Go no smartphone, ou a ler as gordas enquanto os outros trabalham - ou fazem que trabalham - ou a pintar as unhas. Isto será uma conduta tão errada ali como em qualquer empresa: será que é preciso existir uma cláusula no Regulamento Interno a proibi-las para pessoas adultas terem disso consciência? Apesar do descrédito em que, infelizmente, temos a actividade política, - e este episódio não ajuda em nada a minorá-lo - aquela casa é a casa da Democracia. Por mais imperfeita que tenhamos a actual Democracia em conta, é ela que permite à Isabel fazer livres escolhas. Mas isso não significa que seja aceitável fazer no Parlamento o que ela faz na sua casa, no seu carro ou na mesa do café. A liberdade é uma coisa linda mas não devia ser abandalhada. Uma deputada que não tem maturidade para a usar e que depois não comenta quando interpelada sobre o caso, é uma  irresponsável. Deu um mau exemplo, borrou a pintura, a Isabel. Agora é deixar que a acetona do tempo dilua a má impressão. Também não há-de demorar muito.


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