O milagre das lentes progressivas


"Mover o pescoço e a cabeça é o segredo, muita ginástica dos ombros para cima."

A lente que Benjamim Franklin inventou no séc. XVIII, uma lente bifocal, que juntava duas lentes numa só, uma para visão de perto e outra para visão de longe, é história. Mas hoje ainda há quem use lentes bifocais, penso que são aqueles óculos com uma meia lua inscrita em cada lente. Esses óculos não oferecem o conforto e a naturalidade de uma visão restaurada. Essa promessa dá pelo nome de lentes progressivas.

Comecei a usar lentes progressivas em Outubro de 2014. O que antecede uma efeméride desse género é começarmos a ver mal ao perto de forma progressiva. No meu caso, rótulos de produtos nos supermercados! Era a Sra. Dona Presbiopia que vinha chegando. Em duas palavras: os olhos envelhecem e perdem capacidade de acomodação. Na altura comecei também a escrever esta entrada no blogue. Cansei-me de escrever ao fim de duas linhas e meia e a coisa ficou nos rascunhos. O assunto não era festivo, nem mesmo para uma apreciadora de design de óculos, que nunca quis sequer experimentar lentes de contacto, marcada que foi pelo evento traumático de ter de remover uma lente semi-rígida do olho de uma amiga com a unha do dedo indicador. Íamos a caminho da Faculdade, em Coimbra, para mais uma jornada de aulas, e ela solta um ai! e foi só. Ficou sem ver nada e a lente, sabe-se lá por que artes, deslisou em sentido ascendente sobre o globo ocular, enfiando-se bem para dentro da pálpebra. Eu nunca tinha visto nada assim e nunca mais quis ver! Havia também o João que sempre dizia, pela manhã, que ou fazia a barba ou colocava as lentes, fazer as duas tarefas e chegar a horas à Faculdade é que não. No meu caso seria, acordar muito mais cedo e ou colocar a maquilhagem, ou as lentes. Não, obrigada!

Ontem calhou um desconhecido confidenciar ao mundo (do Facebook) ir fazer os seus primeiros óculos para presbiopia. Confidenciar é a palavra certa, mesmo no âmbito do Facebook, porque  gritar aos quatro ventos que se entrou na idade da "vista cansada", o nome comum dado à presbiopia, não deve ser motivo para alarde. Não é a "terceira idade" mas quase. E ninguém festeja a chegada da "terceira idade" pois no máximo ela dá direito a descontos nos comboios e pouco mais. Para mim, que até tenho lidado bem com os sinais exteriores de velhice, rugas e cabelos brancos, banhitas em zonas adjacentes, a presbiopia foi um marco histórico, mas dos trágicos. Fez-me sentir realmente gasta. Duplamente trágico porque eu queria comprar lentes progressivas quando chegasse o momento de ingressar no Clube dos Presbitas e eu já sabia que lentes deste calibre custam os olhos da cara. Até as mais simples delas já custam os olhos da cara. A alternativa económica é uma roda-viva, resume-se a fazer dois pares de óculos, de longe e de perto, e começar a fazer malabarismo com eles, mantendo-os em permanente movimento, pendurando-os ao pescoço,  usando-os na testa, na cabeça, na mão e transportar múltiplos estojos! Não sei se há algum estudo feito a propósito, - porque nos dias de hoje existem estudos para tudo e mais alguma coisa - mas tenho a certeza que a maioria destes óculos malabares acabam esquecidos nos balcões de atendimento, esborrachados em sofás a rabiosque ou em camas a costas tantas, enfim, são bens de desgaste rápido, e, portanto, uma solução que começa barata mas acaba igualmente cara. E há até quem encomende não dois mas três pares de óculos: os óculos de leitura, os óculos de trabalhar no computador, os óculos de ver televisão. Isto é verdade. Mas isto é de loucos sabendo que existe tecnologia milagrosa, lentes com três zonas invisíveis de transição entre si, que nos garantem visão perfeita a todas as distâncias num simples par de óculos! Mas fora a questão monetária, há quem, de facto, quem nunca se adapte a esta maravilha tecnológica e não tenha outro remédio que não seja dedicar-se à acrobacia para o resto da vida.

Logo me apressei a manifestar a minha solidariedade. O futuro presbita vai precisar de um ombro amigo. Salvaguardo que cada caso é um caso e há quem se dê bem desde o primeiro momento. Mas não aconteceu comigo. Recordo que na primeira semana ninguém me aturava. Já desconfiava da competência da minha óptica de confiança de mais de 20 anos! Pelo preço pago eu queria ver, ver tudo direitinho, imediatamente, e até ter visão raio-X, se possível. Em vez disso eu desesperei durante dias em frente ao computador. Um ombro amigo não foi suficiente. Mais meu amigo do que o ombro foi o meu pescoço. Um pescoço amigo. Caso não saibam o segredo para bem usar óculos com lentes multifocais é dar melhor uso ao pescoço e mexer os olhos o menos possível. Entenda-se: mexer o pescoço para fazer mover a cabeça e o olhar nas direcções certas. Mantenham essas pupilas bem tranquilas e sossegadas. Se são daqueles que gostam de controlar a cena pelo canto do olho, aproveitem enquanto podem, pois se a presbiopia chegar não vai haver forma de disfarçar a curiosidade. Mover o pescoço e a cabeça é o segredo, muita ginástica dos ombros para cima.

Tive, pois, uma adaptação difícil e gradual. Primeiro comecei por aprender a usar a visão de perto, depois num nível intermédio e o mais complicado foi habituar-me a usar os novos óculos para ver ao longe. E eu até vejo razoavelmente ao longe. Um exercício tortuoso era descer as escadas e caminhar normalmente pela rua. O chão ondeava sob os meus pés! Mas pior ainda era  entrar no supermercado com a lista de compras ou dar uma volta pela livraria Bertrand para procurar um título. A desorientação chegava ao fim de alguns minutos, de tal forma que eu acabava sempre por retirar os óculos e guardá-los, coisa que fui firmemente desaconselhada a fazer: eram para usar de manhã à noite. Sempre. Porque esse é o segundo segredo para uma boa adaptação: não desencavalitar os óculos do nariz por muito doida que uma pessoa se esteja a sentir. Doida não é palavra exagerada. A minha vontade por esses dias era remover os óculos, os olhos...arrancar a cabeça! É preciso insistir e dar tempo ao tempo: o esqueleto tem de aprender a movimentar-se de outra forma e o cérebro também tem aprendizagens diversas a fazer. Os meus eram preguiçosos, está visto. Mas o corpo humano é maravilhoso na sua capacidade de adaptação e a coisa vai, acreditem.

É provável que a solução que apresentem a este cavalheiro do Facebook passe por lentes progressivas ou multifocais. Recapitulando, lentes multifocais ou progressivas, são uma classificação de lentes para óculos. Recebem esse nome porque possuem múltiplos focos, geralmente distribuidos em três campos de visão: longe, intermediário e perto. As lentes multifocais são recomendadas para compensação da presbiopia, especialmente quando associada a outra ametropia. Isto não há como chamar as coisas pelos nomes para as tornar um caso sério. Por isso, aqui vai. A ametropia - ou erro refrativo da refração ocular - causa a perda da nitidez da imagem na retina. Engloba a miopia, a hipermetropia e o astigmatismo, entre outras. Eu já pertenço ao clube dos míopes desde os tempos universitários. Felizmente ela não evoluiu muito, aliás, parou por volta dos 40 anos, o que julgo ser a tendência da Menina. Já a Sra. Dona Presbiopia, popularmente conhecida como "vista cansada", é a anomalia da visão que ocorre com o nosso envelhecimento, ocasionando o endurecimento do cristalino. Não adianta lutar contra ela. Chega por volta dos mesmos 40 anos, ou seja, a menina Miopia cresce e vai à sua vida, chega, então, a Sra.Dona Presbiopia para nos f...a vida. Pode chegar um pouco mais cedo. E depois acompanha-nos até perto dos 60 anos. A seguir deve chegar outra fdp qualquer. Aguardo, cheia de entusiasmo.

N.B. Este texto foi escrito usando óculos com lentes progressivas, yeah!



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