Sofia Arruda e o assédio sexual no local de trabalho


 (Este texto foi reformulado e divido em duas partes, por me terem dito que estava longo e confuso. Peço desculpa, por tê-lo escrito tão em cima do joelho.)

Comecei a escrever depois de ter lido comentários inesperados às declarações de uma actriz de nome Sofia Arruda, que, numa entrevista, disse ter sido assediada no meio artístico em que se move: a televisão. Sofia Arruda. Não sei nada sobre esta mulher. Só sei que de repente a internet se encheu de comentários de quem acha que sabe o que ela devia ter feito e não fez, opiniões sobre o que devia ter dito e não disse, mesmo que isso demonstre total falta de empatia pela mulher, ou mulheres, vítimas de assédio em geral, ou profundo desconhecimento sobre o assunto em questão, ou pela forma como a justiça o trata. Estranhei, com tanto que se tem falado sobre assédio sexual desde que estoirou o escândalo Harvey Weinstein , com a internet a expor décadas de predação sexual, mulheres incapazes de reagir, e esquemas para abafar e esconder os crimes cometidos. Além dele, também cineastas, directores de meios de comunicação, jornalistas, senadores, actores,  escritores, apresentadores, etc, foram alvo de denúncias. Estranhei os comentários despudorados de homens e mulheres, evidenciando claramente como as vítimas continuam a ser encaradas com suspeita e a sua experiência desvalorizada. Essas são apenas duas das razões porque as mulheres NÃO FALAM ou DEMORAM A FALAR.

Mas, pensando melhor, talvez eu não devesse estranhar tais reacções, não quando uma gravação de 2005 divulgada na campanha eleitoral  norte-americana com este teor - "Você sabe que sou automaticamente atraído por coisas bonitas - eu simplesmente começo a beijá-las. É como um íman. Apenas beijo. Eu nem espero. E quando você é uma estrela, eles deixam você fazer isso. Você pode fazer qualquer coisa. Agarre-as pela rata. Você pode fazer qualquer coisa. Posso fazer o que quiser” - em nada contribuiu para abalar a popularidade de Trump, eleito por muitos homens e, certamente, demasiadas mulheres. 

Em Portugal aguarda-se um #meetoo. Diz-se que já cá está. Não sei. Seria até bom que não fosse necessário um movimento assim para levar o assédio sexual a sério e não como aquele incômodo chato que se confunde com sedução para tantos. E, principalmente, as suas vítimas. Se eu disser que fui assaltada há 5 anos, as pessoas confrangem-se. Se disser que fui assediada, perguntam-me o que levava vestido. É ridículo. O #meetoo é o último recurso. Não apareceu para se tornar a regra, aconteceu porque outros meios falharam. O #metoo foi uma forma de encorajar a denúncia de muitas mulheres, e homens, a falar, pessoas que, durante décadas, calaram o assédio e abuso sexuais de que foram vítimas. Às mulheres - e homens -  têm de ser dadas as condições de fazer denúncias no tempo certo, nas instâncias certas, nos canais certos, - para que possam ser investigadas ,os culpados punidos, e as vítimas ressarcidas - e não no espaço mediático, ou nas redes sociais. Mais do que esperar ou incentivar denúncias públicas, devemos pressionar com urgência para que sejam criados meios e condições para que, na prática e não em teoria,  as mulheres sintam que serão apoiadas quando são vítimas de assédio. Isso ainda não existe. Se existisse, não haveria denúncias na TV nem tanta gente a enxovalhar a vítima que falou agora e não quando devia, que falou mas não disse o NOME. 

É preciso educar, informar, debater. Agora vive-se este diálogo efervescente nas redes sociais mas nem toda a gente está nas redes sociais e nem todo o diálogo ali existente é construtivo, esclarecedor. Aliás, o clima é de guerra. Em breve este diálogo  esgotar-se-á, com salvaguarda de alguns redutos, das e dos habituais resistentes, mal surja um novo tópico de interesse. A mudança de mentalidades e comportamentos não se pode alimentar de surtos, necessita de continuidade, consistência. Pensem porque é que as mulheres que vestem roupa justa "estão a pedi-las" e os homens "engatatões" são desculpados. Pela mesma razão que comentários de carácter obsceno, toques e importunações de teor sexual são vistos pelo senso comum como jogos culturais inofensivos: a normalização do assédio está entranhada. A tendência da sociedade para desculpabilizar ou atenuar a culpa do agressor, visto como um mero sedutor ou praticante do flirt, e descredibilizar a vítima, é evidente. 

Para frutificar, a discussão tem de baixar das redes para o terreno. Tem de acontecer onde homens e mulheres convivem na prática, embora o assédio sexual possa ser feito através das redes. De que estamos à espera para promover uma cultura de prevenção nas empresas, instituições, nas associações culturais, desportivas, religiosas, nos ginásios, clubes? Que incentivo nos falta para promover o esclarecimento? De que serve a uma empresa ter um Código de Conduta Contra o Assédio - as empresas têm de informar os trabalhadores das formas que podem integrar o assédio, e definir mecanismos de suporte quando isso surja - se na prática fazem de conta que o assédio não existe? Claro. Quando alguém depois se ter despedido se queixa vêm dizer que não sabiam de nada e que não foram activados os mecanismos. E porque não, já, a criação de uma linha telefónica de apoio confidencial com profissionais competentes que informem, ouçam sem julgar, registem no anonimato, - assim diminuiria a especulação acerca da existência, ou não, e de quantos casos de assédio - orientem quem é vítima de assédio? 

O assédio sexual não é um crime de estatuto antigo. Surgiu nos EUA nos anos 70, por pressão feminista, claro. Ou acham que eram os homens que se iam lembrar disso? Tem uma existência recente em termos legais, mas o assédio existe há tempo demais. Em Portugal, a lei do trabalho sofreu importante actualização em 2017, mas ainda não é suficiente. E nada muda por decreto, é sabido. 

O assédio sexual não está tipificado como crime mas é punido através da coação sexual (casos de contacto forçado da vítima com partes íntimas do corpo do agressor,  por exemplo,  apalpões ou toques nas vítimas em zonas normalmente associadas ao sexo e ao prazer sexual,  com direito a penas até oito anos de prisão) e da importunação sexual (actos de exibicionismo, que causem incómodo e que sejam suportados contra vontade,  ou formulação de propostas de teor sexual explícito, punidas com penas até um ano de prisão).

 Para tanto deve ser feita queixa no prazo de 6 meses ou esse direito prescreve. 

Todos condenam o assédio sexual em abstracto mas quando ele acontece na prática surgem toda a espécie de objeções ao seu reconhecimento. Não falta quem procure retirar relevância e valor ao que Sofia relatou. Dizem que ela  já devia ter falado, que agora está apenas a tirar proveito da onda para ter os seus cinco minutos de fama, para "aparecer". Fama? Mas alguém quer ficar na história por ter sido assediada? Acham que ser humilhada, chantageada, traz associada alguma espécie de vantagem? Acreditam mesmo que a Sofia vai meter isso no curriculum

E outra pérola que também li: não foi mais chamada para trabalhar na televisão não por causa de ter dito "não" ao abusador mas apenas e só por não ter talento. Pois. Diz o encenador de bancada. Dizem ainda que não dá um bom exemplo, que não sai bem vista deste filme: afinal está a dar cobertura ao agressor que assim pode assediar novas vítimas. Ou seja: de "vítima" a Sofia é transformada em "cúmplice", e responsabilizada  pelos actos ofensivos do agressor. 

Sem NOME não há consequências para o perpetrador mas, pior, há consequências para os homens inocentes do meio televisivo: são todos suspeitos. Dizem que é feio lançar esta desconfiança no ar. Ou Sofia Arruda dizia o NOME - só para fazer o gostinho à malta, pois ela já não pode obter reparações em sede de Justiça - ou então devia calar-se para sempre "para não incomodar" os inocentes. Mas pesem lá os respectivos "incómodos", o que ela teve, e o destes "suspeitos". Qual o prejuízo objectivo desses tais homens? Já algum se veio queixar a dizer que tinha perdido o sono com isto? Qual o risco de ficarem sem trabalho, como ela ficou? Concordo que lançar suspeitas não é ideal. Mas...

...imaginem agora que a Sofia tinha dito o NOME! Já estou a ouvir a malta a dizer: "O quê? Esse homem? Não acredito. Ela quer é vingança." Presa por ter cão, presa por não ter, é o que se costuma dizer.  Quando o visado movesse o quase certo processo de difamação e saísse dele provavelmente vitorioso, quem tanto pede nomes no Facebook  iria estar à porta do tribunal para dar apoio moral à vítima, é isso? E ajudar no pagamento das custas? É difícil fazer prova de assédio. Diante deste obstáculo, recorre-se a prova indireta, a prova por indícios e circunstâncias de facto. O depoimento tem valor como meio de prova. Passados anos, quais as possibilidades de uma vítima se defender com êxito de um processo de difamação?  No #meetoo americano observámos que quando uma mulher deu um NOME, outras corroboraram a sua denúncia. Mas, e se tal não acontecer? 

Só faltou dizer que sem nome até talvez tudo não passe de uma invenção na cabeça de Sofia. Mas o que se sabe de alguns estudos e estatísticas é que poucas vezes as denúncias de crimes de violência sexual são falsas. Existem, mas são poucas. Nesta óptica desacreditar liminarmente a vítima é mais uma forma de violência para ela processar, lembrando que o sistema é muito mais expedito a punir quem denuncia sem fundamento do que a atender à vítima real de assédio.

Para que serviu então, a denúncia velada de Sofia? Serviu sobretudo para mostrar que as mulheres têm de falar no tempo certo e que ainda não conseguem. E que temos de mudar isso.

No meio cinematográfico americano, antes de a primeira mulher denunciar o assédio de Weinstein, muitas actrizes não o fizeram. Calaram-se. Anos a fio de silêncio. Só falaram depois de alguém lhes apontar o caminho. Antes dessa, que conseguiu ser levada a sério, muitas sabiam o caminho mas tiveram medo ou foram caladas por meio de acordos. Passaram anos antes de conseguirem começar a falar. Temos essa evidência. Sabemos, portanto, que é um processo lento, difícil. Se é assim, por que razão haveria de ser diferente por cá? Será a nossa lei melhor que a dos EUA?  Confiamos mais nos nossos mecanismos de justiça quando as mulheres são vítimas de crimes sexuais? Apoiamos e incentivamos uma cultura empresarial anti-assédio? Vemos distribuição regular de informação sobre a prevenção de assédio nos locais de trabalho? A mulher portuguesa sente-se mais protegida que a americana para denunciar na hora o sucedido? É a nossa sociedade mais solidária para com a vítima?

Mas é preciso notar que o assédio sexual não existe apenas no mundo do espectáculo  e que mulheres de todas as classes sociais, influentes e não influentes, independentes ou não, são assediadas. Assédio é abuso de poder e isso é um conceito fácil de entender por todos. E o assédio não existe apenas dentro de quatro paredes, existe também no espaço público: no autocarro, no metro. E se para aquelas, habituadas a mover-se na esfera pública, será acessível usar a TV ou as redes sociais para divulgar a sua história de assédio, para outras essa nunca será a via escolhida. Mas a TV ou as redes são o recurso do desespero e não devia ser assim. O que temos de assegurar é que as instâncias que têm por missão ouvir e tratar estas queixas funcionem de facto. E que a maioria das pessoas entenda o que é o assédio e que seja capaz de manifestar solidariedade para com as suas vítimas, ou, no mínimo, que as respeite.

Mas porque se calou? Mas porque não falou?  Quem assim questiona sobre Sofia Arruda nunca deve ter estado numa situação de impotência tal que não tenha tido outra opção senão calar-se. Note-se que sempre houve quem na maior das provações conseguiu falar. Mas as mulheres não são todas iguais. O pior desse silêncio é que a violência continua: se uma mulher sofre assédio e denuncia, o assédio acaba. A vítima pode aspirar a que se faça justiça. Se não o faz de imediato será porquê? Por medo parece ser a explicação mais simples e óbvia. Não um medo apenas, vários medos: medo porque quem está numa posição de poder consegue facilmente intimidar e exercer represálias sobre a parte mais fraca quando não consegue obter o que pretende; medo de ficar exposta aos mais variados julgamentos no seu meio profissional, crucial para a sua sobrevivência económica. Se se despede e denuncia, que empresa a vai contratar agora quando metade dos homens acha que foi ela a culpada e metade das mulheres não acredita nela? Medo de perder o seu meio de subsistência. Muitas mulheres que sofrem abusos podem até depender, e de forma exclusiva, financeiramente, do abusador. Medo por ter de conviver com o abusador no meio social e profissional em que se relacionam ou no espaço onde vivem, após o relato da denúncia. Medo de que o seu abusador não seja punido pois é difícil fazer prova do assédio sofrido. Medo que seja punido e que acabe com uma pena suspensa e a gabar-se disso. Além do medo do agressor, as vítimas comungam de um outro medo: o de ninguém acreditar no que dizem, sobretudo se o agressor não corresponder ao estereótipo do abusador. E sentem uma vergonha profunda por se terem deixado apanhar numa situação assim pelo que preferem sofrer em silêncio. A mulher receia ter sido ela a dar origem ao assédio mercê de algum comportamento (terem ido a uma reunião sozinha, usar um decote fundo ou saia curta, etc) que não raro muitos ainda até apontam como o incentivo da acção indesejada. Pode até sentir uma espécie de culpa bíblica, que coloca as mulheres na origem de todo o mal, questionando se não terão sido culpadas porque se insinuaram junto do abusador ou não conseguiram controlar a situação. 

Existem muitas razões que tornam o prazo de 6 meses curto. Fazer a denúncia não é fácil pois implica reviver e relatar uma situação que é humilhante, repugnante, indigna, a terceiros, estranhos, nem sempre preparados para ouvir sem julgar. Um pedido demissão do posto de trabalho pode até ser psicologicamente mais suportável. Por outro lado, as despesas de um processo judicial também podem ser um obstáculo. Vítimas haverá que até prefeririam optar por uma via de resolução informal, que lhes permitisse não voltar a confrontar o abusador. Nesse momento, a vítima receia ainda que a sua palavra seja posta em causa, a sua versão do sucedido é, muitas vezes, a única prova, e, na dúvida é o réu que é absolvido. Muitos, muitos casos são arquivados. Se a situação se passa dentro de uma empresa de grande dimensão nem sempre o superior hierárquico ou os recursos humanos têm a face humana que deseja. Muito menos a polícia. Por vezes também desconhece ou hesita recorrer a  instâncias de aconselhamento. Muitas mulheres optam por desvalorizar o assédio e não fazer queixa. De acordo com as últimas estatísticas disponíveis, ocorrem poucas denúncias nos 6 meses. Decorrido aquele prazo, já não há forma de conseguir uma reparação legal. 

Pelos comentários às declarações de Sofia Arruda é provável deduzir que muita gente está longe de perceber o que significa ser vítima de assédio sexual. Cada mulher tem uma forma diferente de lidar com o assédio sofrido, algumas resolvem-no na hora em que acontece e seguem em frente, muitas fazem disso um segredo. Cada vítima tem o seu modo de o processar e o quadro legal não é ideal para que aconteça a denúncia. Um dia será mais fácil para todas. Não depende apenas delas. Quanto antes é preciso, é muito importante, criar as condições para que este tempo de silêncio seja encurtado. Todos podemos e devemos fazer parte nesse processo pois homens e mulheres são vítimas de assédio, embora as mulheres sejam as suas principais vítimas. Lembrem-se: assédio não é sedução,  é um comportamento opressivo, exercido por quem está em posição de poder e que abusa desse poder.

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