A responsabilidade editorial é de todos nós. Escreve José Vítor Malheiros



ASSUMIR A NOSSA RESPONSABILIDADE EDITORIAL

A Internet prometeu transformar-nos a todos em jornalistas e em editores. Prometeu dar-nos a possibilidade de fazer ouvir a nossa voz, de publicar as nossas opiniões sobre tudo, sobre os espectáculos que vemos, os restaurantes que frequentamos ou as medidas do Governo, de noticiar o que vemos nas ruas das nossas cidades, nos nossos empregos, nas nossas organizações, nos media tradicionais (ou em nossa casa) e de curto-circuitar todos os mediadores que durante séculos se interpuseram entre as fontes e os consumidores de informação, quer se tratasse de jornais ou de agências de viagens. Prometeu e cumpriu. E o cumprimento dessa promessa foi mil vezes ampliado com as redes sociais. Deixou de ser preciso ter poder ou dinheiro para publicar as nossas críticas, os nossos livros, as nossas fotografias ou os nossos filmes. E deixou também de ser preciso ter alguma competência reconhecida nalguma área ou de respeitar qualquer deontologia para o fazer. A Internet inaugurou a era do capitalismo selvagem da informação. E é nesse mundo que vivemos hoje. E estas páginas, onde escrevo e onde me lêem, são a capital dessa babel sem lei onde todos podemos escrever o que queremos sem ser limitados pelo escrúpulo ou por qualquer exigência de rigor ou qualidade literária. E, se tiver procura, qualquer produto que aqui seja colocado pode alcançar o mercado global e mobilizar multidões, por muito desonesto, pernicioso e repugnante que seja. Pior: quanto mais desonesto, pernicioso e repugnante for esse conteúdo mais ele se multiplicará, numa perversa selecção natural. Todos sabemos isso. Não é novidade nenhuma. E sabemos o perigo que isso representa. Para a democracia, para a cultura, para a paz. Todos criticamos o actual estado de coisas e discutimos o que fazer. Usar as redes? Não usar? Criar entidades reguladoras? Um código deontológico global? Tratados internacionais?
Penso que há algo que podemos fazer e temos de fazer. Sem petições, sem manifestos e sem leis.
É que de facto a Internet transformou-nos a todos em jornalistas e em editores. E nós, em vez de assumirmos a responsabilidade desse poder, continuámos a criticar “os media” e “as redes sociais” sem nos darmos conta de que, hoje, não só as redes sociais somos nós como os media somos nós (exactamente no mesmo sentido do famoso livro de 2004 “We the Media” de Dan Gillmor). Os media somos nós e esta rede onde escrevo e me lêem deve ter cem ou mil ou um milhão de vezes mais poder que os media tradicionais. Aqueles em quem confiávamos (e, em certos casos, continuamos a confiar). Aqueles onde se publicam artigos que, nos melhores casos, passam por diversos crivos de selecção e critérios técnicos e éticos de validação. Esse poder está hoje nas nossas mãos. Um poder fragmentado, é certo, mas que está por aqui.
E daí? Daí que, apesar de esse poder estar em certa medida (numa pequenina medida, é certo) nas nossas mãos, a esmagadora maioria de nós continua a não assumir, nas nossas páginas, a responsabilidade de edição que lhe cabe.
Criámos páginas, para as quais convidámos os amigos, os colegas, os primos, os conhecidos e os seus amigos, numa cavalgada em busca de influência e popularidade, e permitimos-lhes que publicassem comentários não moderados nas nossas páginas (como um jornal com um mínimo de seriedade nunca faria) e, em certos casos, até posts e manifestos.
Podemos criticar “os media”, mas a verdade é que, como jornalistas e editores, fracassámos miseravelmente. Descurámos de uma forma criminosa a gestão e o cuidado da porção de espaço público que criámos e tínhamos (e temos) a responsabilidade de gerir.
Não estou a falar dos fascistas, racistas ordinários e abusadores que povoam estas páginas. Estou a falar das pessoas decentes e civilizadas que por aqui andam e que permitem que as suas páginas sejam ocupadas pelos outros.
Conheço muitas páginas de pessoas que respeito que deixei de frequentar porque, em nome de uma visão perversa do que é a liberdade, permitiram que as suas páginas (às vezes mais dedicadas à política, outras vezes dedicadas ao COVID ou a outros temas) fossem ocupadas por bandos de energúmenos e se transformassem em verdadeiros bordéis onde se propagandeiam ideias racistas, se fazem insultos sexistas, se banaliza uma linguagem ordinária, se ameaçam e se difamam pessoas, se difundem rumores conspirativos e se ataca impunemente a democracia e a igualdade, os direitos humanos e a justiça.
A bandalheira das redes baralhou os critérios morais de muita gente. Principalmente daqueles que nunca tiveram a disciplina profissional de ter de escolher todos os dias o que se devia publicar e o que não se podia publicar. A certas pessoas a quem chamo a atenção para o lodaçal que a sua página é respondem-me coisas como “Foi o meu primo que trouxe uns amigos… E agora…” O que diriam estas pessoas se eu, quando fui responsável da secção de Opinião do Público, permitisse as mesmas liberdades a um supremacista branco ou a um propagandista da violação, invocando em minha defesa que era um amigo do meu primo e não lhe podia dizer que não?
Cada página de uma rede social é um pedaço de espaço público que CADA UM DE NÓS tem o dever de cuidar. Não temos tempo para gerir e editar comentários? Claro que não. Mas é fácil e rápido bloquear energúmenos e criminosos que espalham o ódio. Não estou a defender desamigar essas pessoas…. Trata-se de as bloquear, para que em caso algum possam continuar a molestar os nossos vizinhos e infectar o ar que respiramos.
Estou a dizer que nos cabe a nós policiar as redes? Não. É evidente que devemos exigir regulação a todos os níveis das redes, nomeadamente ao nível da sua responsabilidade por propaganda atentatória dos direitos humanos. Mas não podemos ficar parados quando essa propaganda é espalhada nas nossas páginas.
Estou a advogar a censura? Não. Essas pessoas podem usar as suas páginas para espalhar a sua propaganda (desde que não infrinja a lei) mas não há nenhuma razão para permitirmos que façam comícios na nossa sala. A maior parte desses abusos não são inocentes. Essas pessoas tentam infiltrar páginas com muitos “amigos” para aumentar a sua audiência e reforçar a sua reputação ou intimidar as vozes discordantes e confiam na ingénua relutância dos proprietários das páginas em controlá-los.
A lixeira em que as redes sociais se tornaram é, em grande medida, permitida pela nossa tibieza em defender o espaço público que criámos. Não há nenhuma razão para deixarmos que um grupo de abusadores invada a festa que organizámos no nosso jardim e comece a fazer discursos racistas. Mas é isso que estamos a deixar fazer. E avalizamos com o nosso convite essa invasão.
É tempo de parar. E isso começa nas nossas páginas.
Não perguntem por quem os sinos dobram. Dobram sempre por nós.
E não perguntem como foi isto possível. Fomos nós que deixámos.

Autor: José Vítor Malheiros
Fonte: Facebook
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