Um criança teve um gesto de fair-play no futebol



O meu pai, aos Domingos de manhã, levava-me aos treinos do Braga, num campo pelado, e por vezes até ao 1º de Maio, ou mesmo a alguns jogos. Nesse campo pelado a minha atracção principal não eram nem o jogo nem os equipamentos vermelhos dos jogadores, eram os pacotinhos cónicos e coloridos de amendoim caramelizado que ele me comprava, e os rebuçados de caramelo partido em pedaços, envoltos em vegetal colorido e franjado, além dos chupas com espadas de plástico neles espetadas, tudo fabrico artesanal. Para decepção paternal, a minha irmã não seria dada à modalidade e eu nunca fui fã da bola, mas até gostava de jogar futebol com os meus amigos, que me adoptavam na minha ineptitude para o desporto-rei, nos "feriados", isto é, quando os professores faltavam. Corria que me matava mas nunca chegava ao golo!

Os brasileiros têm uma palavra gira que é "xingar", que adoptei, e que uso frequentemente em vez de "achincalhar". Tal como nós, também adoram futebol e são exímios nos xingamentos no relvado. O meu contacto com o asneiredo na eira futebolística fez-se bem cedo, ao vivo e a cores, nos recintos desportivos do Sporting de Braga. Estava proibida de usar as palavras feias dos adultos mas isso não me impediu de ter cedo arregimentado um leque de palavrões como "burro", "camelo" ou "perneta" que usava quando entendia. No campo pelado, eu costuma circular ao redor dos adeptos que se apoiavam na vedação tubular, para alcançar o lado onde estavam os eucaliptos, aí me divertia a apanhar frutos cheirosos do chão. Pelo ar andavam sempre as palavras feias que durante algum tempo eu pensava serem apenas ditas pelos pais dos outros, não pelo meu, já que em casa ele não usava palavras feias e nem me autorizava o seu uso. Um dia lá lhe escapou um "Sai-me da frente , ó meu filho da puta!"quando seguíamos de carro pela cidade. Imagino que deva ter aberto muito os olhos de espanto quando descobri que o meu pai era igual aos outros. Estava assim também identificada outra área onde o "xingamento" tinha livre trânsito: a da condução  automóvel. Ele seguiu viagem, o outro condutor também, depois de lhe mostrar o dedo do meio. Por causa desse incidente, durante uns tempos pensei que as palavras feias só se podiam dizer fora de casa. Devia ser qualquer coisa que andava no ar que provocava aqueles desabafos. Se nos campos de futebol a culpa era da bola, no trânsito a culpa seria sem dúvida dos automóveis. Isso, os automóveis, pois no tempo dos cavalos e das carruagens não havia lugar a impropérios. Os cavaleiros só diziam "Ya!Ya"", enquanto esporavam o cavalo e agitavam o chicote, era o que eu via nos filmes, logo, a boca estava sempre demasiado ocupada e não ocorria a ninguém injuriar o comparsa que seguia à frente, sem pressa.

No futebol é habitual árbitros, bandeirinhas e jogadores, ou até treinadores, serem agraciados de mimos vários, "filhos da puta" e "ladrões" ou "gatunos", talvez os mais comuns, replicados em coro até à rouquidão, pelos adeptos. A regra é não serem tomados como sinal de desrespeito ou ofensivos, são coisa natural, um excesso de linguagem aceitável no exercício do direito a incentivar e defender a equipa por que torcem fruto da sua paixão futebolística. Não devem esses profissionais dar parte de fracos e dizerem que sentiram um dano moral por tal facto. Aquilo vem com a profissão. São ossos do ofício. A sociedade aceita e legitima esse tipo de conduta, valorando-a positivamente, sendo comum a defesa de que a injúria no recinto desportivo é um escape que os pobres homens e mulheres têm para as suas frustrações. Antes isso que o álcool ou a droga. Aos que não frequentam os recintos desportivos resta o último recurso aos psicólogos e aos fármacos para obter a cura ou o alívio das altas pressões do seu tortuoso dia-a-dia! Esta ideia de que o insulto no futebol é uma espécie de remédio para as tensões acumuladas bem que podia ser explorada para fazer diminuir a dependência de ansiolíticos. Porque não abrir por aí umas clínicas que fizessem a terapia do palavrão, nada de muito diferente da terapia do riso? Bem gostava de acreditar que chamar "filho da puta" a alguém aos Domingos me resolveria os meus problemas assim como os pecadores os resolvem na confissão.

No entanto, se não forem os adeptos e antes os protagonistas do evento desportivo a xingarem o árbitro que marcou um penalti injusto contra o seu clube, aí ele já é capaz de sacar dos seus cartões pois o que era aceitável aos adeptos logo deixa de o ser: quem é que manda ali senão ele? É um pouco difícil para uma criança perceber estas nuances: se o jogador chama filho da puta ao árbitro é censurado, se é um adepto a chamar-lhe filho de uma meretriz, não é; se é o pai a chamar nomes ao condutor no trânsito, não é censurado, se for ela a chamar nomes na escola, fica de castigo. A sociedade, é, realmente, complicada de entender, pelas crianças. Mas parece que os adultos também andam, cada vez mais, às aranhas.

Mais tarde, comecei a perceber com que língua se fala e descobri preciosismos no insulto que a infância e a adolescência ainda não tinham conseguido discernir. Há o "filho da puta" e o "filho de puta". Se o árbitro é filho DA puta então é claro que estamos a dizer que a sua mãe se dedicava à mais velha profissão do mundo, censurável aspecto profissional que eliminava logo qualquer possibilidade a um filho até nascido fruto do amor dessa mulher por um companheiro ter uma filiação digna; ou então que ele foi fruto de um qualquer trânsito comercial sexual de ocasião, pouco abonatório, nascido por motivo fortuito e não desejado, sem ser reconhecido pela fgura masculina, razão suficiente para ser vergonha para os outros e ter vergonha de si mesmo; se lhe chamamos "filho de puta", pior, o desgraçado do árbitro é alguém que nem sequer sabe ao certo de onde é que terá vindo, desconhecida a progenitora, uma qualquer, embora seja certo que sempre de mulher perdida, sina que acompanha a prostituta desde os alvores da história, até à actualidade, quando ainda existem legislações que punem criminalmente quem a tal ocupação se dedica. Ser prostituta era uma actividade tão social e moralmente reprovável que ganhava o peso de sentença, condenando a futura prole da mulher ao opróbrio de ser igualmente tão reles como a sua progenitora. Assim qualquer indivíduo nascido de mãe puta carregaria com a dupla vergonha de ter uma mãe sem honra e de ser um filho da vergonha, por tal ocorrência, uma vítima por força desse destino. Filho de uma mulher de segunda categoria, seria ele, também, um homem de segunda classe. A um árbitro que penaliza injustamente o adversário chamar incompetente é pouco mais que dizer nada. Há que chamá-lo então de filho da puta o que, de facto, nada diz sobre o mérito profissional da decisão, mas, supostamente, diz tudo em termos de desumanização.

Mas nem todos os homens são iguais, nem todos os que andam pelos relvados  estão prontos para aceitar a desumanização que tal insulto significa sem espernear. Um treinador sentiu-se insultado por um delegado ao jogo que lhe disse: "Vai lá prá barraca, vai mas é pó caralho, seu filho da puta!" e foi a tribunal cobrar o respeito que não lhe deram ali. Infelizmente, tempo perdido. O magistrado entendeu estarmos perante “um comportamento revelador de falta de educação e de baixeza moral e contra as regras da ética desportiva (…)" mas que "é também ele, de alguma forma, tolerado nos bastidores da cena futebolística”. O Tribunal da Relação de Lisboa julgou que “não se podem considerar que tenham atingido um patamar de obscenidade e grosseria de linguagem, nem que tenham colidido com o conteúdo moral da personalidade do visado, nem atingido valores ética e socialmente relevantes do ponto de vista do direito penal”. E pronto. Lá foi o treinador pedir uns fármacos ao psicólogo para conseguir superar o vexame de ter sido chamado "filho da puta" e de não lhe terem dado razão no tribunal.

Mais tarde ainda, na faculdade, tive ocasião de chamar as palavras feias pelos nomes jurídicos: eram crimes contra a honra, calúnias, difamações ou injúrias, estas últimas, os tais palavrões, ofensivos da honra ou consideração de uma pessoa. Chamar "sacana" a alguém é demonstrar pouca cortesia mas não a atingir a honra dessa pessoa. Por vezes, um palavrão pode não ter peso suficiente para atingir uma tal gravidade que possa ser alvo da atenção do direito penal. É preciso avaliar a relação entre as pessoas envolvidas na troca de galhardetes, o contexto ou situação e o modo como foram ditas as palavras para concluir se o palavrão é mesmo ofensivo. Tratar alguém por "filho da puta" não é apenas uma mera manifestação de falta de civismo, educação ou cultura, é uma ofensa. Só não é se o ofendido e o ofensor tiverem um trato que lhe retire esse valor. Imagine-se, por exemplo, no norte do país, onde é muito vulgar as pessoas amigas dirigirem-se umas às outras dizendo "ó meu caralho, estás bom? ", alguém que assim procede, vir depois dizer que se sentiu ofendido quando um amigo lhe disse que "ele não valia um caralho..." Assim é, que muitos homens, de todos os estratos sociais, culturas e idades,  se tratam por "filho da puta" de forma companheira e carinhosa. Neste território dos insultos, nada é simples, carago.

Simples é constatar que nos estádios o insulto ganhou uma aura de impunidade e até de festividade, algo que acrescenta colorido ao espectáculo. Já não chega a exibição dos craques para entreter os adeptos. Sem o direito de insultar o adversário e mesmo os agentes desportivos, o jogo não teria a mesma piada. E quando a agressão verbal não chega, até partem para a física. Faz parte da festa e ai de quem disser o contrário. O que me parece é que no futebol as regras deixaram de valer e a do respeito pela dignidade do outro é apenas uma delas. O futebol transformou-se no espectáculo-negócio onde vale tudo, o altar moderno onde cabem todos os sacrifícios ao deus-dinheiro pelos envolvidos nessa religião,  o circo da alienação das massas, sobretudo daqueles indivíduos que a sociedade enjeita e que ali encontram um ritual para, semana a semana, se sentirem integrados. Afinal, o futebol é apenas um espelho da sociedade. A sua mensagem: o que importa é vencer, vencer a qualquer custo, tal como acontece em outras áreas profissionais, onde as pessoas esqueceram os valores que deviam informar as suas condutas e são muitas vezes arrastadas para o ilícito pela sua ambição desmedida.

Somos assim coagidos a aceitar que a paixão pela bola, seja lá o que isso for, promove toda esta exaltação linguística e que isso faz parte da festa. Mas, mesmo se um juiz entendeu que chamar "filho da puta" a um polícia não é ofensivo , eu olho para essa sentença com dúvidas pois entendo que sendo um agente da autoridade, merecia respeito, tal como um árbitro de futebol, que também é um agente da autoridade à sua maneira, devia ser respeitado. Por isso estranho que os árbitros aceitem os cânticos que crescem dos anéis dos estádios - filho da putaaaaaaaaaa, filho da putaaaaaaaaaaaa - em tantas ocasiões em virtude da tal celebrada tolerância social, claro. Estranho também que quem concorda com isso não preocupe levar as crianças aos jogos e que elas assistam a essas manifestações de exacerbado linguajar como se o desporto não pudesse passar sem elas e isso fosse uma coisa enriquecedora e normal. Insultar é sempre uma forma fraca de mostrar domínio sobre os outros, quem insulta sempre diminui o outro de alguma forma, atacando os seus pontos fracos. Certo, um adulto pode tratar outro por "cabrão" e isso ser sinónimo de afecto. Mas como se concilia o insulto com aquela bonita ideia de que o futebol é uma escola de valores, que o é, - ou devia ser - como qualquer desporto de equipa, promotor do trabalho em equipa, da união, do espírito de equipa, da superação individual - se o insulto em campo, mesmo que não seja ofensivo pelo uso tolerado, nunca é afectuoso e antes, sempre, uma arma de arremesso contra um adversário?

Se não erro, o futebol é um espectáculo para maiores de 6 anos e os maiores de 3 e menores de 6 até podem também entrar nos estádios, sob certas condições. Ora, assistiu-se a semana passada ao escândalo Marega, provocado pela entoação de cânticos de teor racista por parte dos adeptos, aos quais o jogador reagiu saindo do campo. Pergunto se alguém, hoje, ainda tem sequer a ingenuidade de pretender resguardar as crianças da linguagem palavrosa tão corrente no espectáculo da bola, sejam insultos simples ou racistas, sendo ela considerada tão normal e aceite por todos. Também nos pavilhões e noutras provas, até nas escolas de formação desportiva, se verifica a sua utilização quer pelos jovens atletas quer por pais e treinadores. Que êxito terão os pais junto dos filhos ao pedir que não façam como eles, os adultos, homens, mulheres, se eles os viram e ouviram unidos naquela camaradagem linguística?  Como impedi-los de repetir essa linguagem nos pavilhões gimno-desportivos das escolas, durante a prática desportiva? Qual a importância desse exemplo na formação da criança? Não espanta que dantes os miúdos começassem no "palhaço", "palerma", "burro", "camelo", e hoje concorram de igual para igual com os adultos verbalizando os clássicos "filho da puta" ou mesmo o "cabrão" como gente grande. 

A culpa não é do desporto, acho eu, não é do futebol. O futebol é a vítima. O panorama desportivo está de tal modo podre que foi notícia o facto de uma criança ter tido um gesto de fair-play. Sendo essa a norma que devia reger o futebol, foi então o que devia ser a normalidade que foi enaltecido ao ser apontada a atitude do atleta porque, de facto, o fair-play é coisa rara, o desporto-rei perdeu os seus valores. Não, não o desporto. Os adultos é que perderam os seus valores e as crianças, imagino, na sua pureza de ideais, tentam resistir mas talvez não lhes seja fácil, e é por isso que um gesto de fair-play foi uma notícia. Mas se uma criança foi exemplar, ainda há esperança, e que ela seja o exemplo que falta aos adultos para repensarem o que é que andam a fazer ao futebol.

"Aconteceu há poucos minutos, em Benjamins da AFL - Sporting / Benfica. O árbitro teve a ilusão (eu também!) que tinha havido "braço na bola" de um miúdo do Benfica. Assinalou pontapé de penálti. A imagem sugere a infração, mas na verdade a interseção foi mesmo de cabeça. O jovem do Benfica chorou. E um adversário teve um gesto raro que merece o aplauso e a partilha de todos nós: disse ao juiz que o corte tinha sido mesmo feito com a cabeça. O árbitro teve a humildade de corrigir a sua decisão e exibiu, muito bem, o CARTÃO BRANCO ao craque do Sporting. Estes miúdos são o exemplo perfeito do que devem ser os adultos, nos dias de hoje. Que em véspera de mais uma jornada que se antevê muito quente e de excessos, esta lição fantástica das crianças seja uma inspiração de fairplay para todos nós, adultos. Chapeau."



Comentários

Konigvs disse…
No futebol o único gesto de verdadeiro desportivismo que me lembro. Robbie Fowler do Liberpool contra o Arsenal, vai isolado para a baliza, David Seaman tenta intercetar a bola e Lowler cai. O árbitro marca penalti mas.... estranhamente! Fowler diz logo que não é penalti! O arbitro marca o penati na mesma e Fowler tentar marcar, Seaman defende e na recarga é golo.
Num desporto em que se atiram para o chão e simulam e tentam enganar o árbitro isto é uma grande atitude!
redonda disse…
Um gesto muito bonito. Não sabia que havia um cartão branco