Seria capaz de matar um animal para fazer a sua refeição?


Eric vai jantar fora com os amigos e experimenta um novo restaurante que oferece uma outra  vivência do seja uma refeição. "Casa de Carne" é uma curta-metragem que nos leva a questionar se seríamos capazes de matar para comer. Venceu o 1º Lugar do Tarshis Film Award no Animal Film Festival de 2019.

O porco do filme tem um nome e isto faz toda a diferença. É um porco chamado Wilbur! Calma lá! Não morreu no decurso da filmagem nem foi maltratado. Vi e fiquei a pensar se devia levantar esta lebre. Afinal ainda anteontem comi porquinho agridoce. Que legitimidade tenho para escrever o que quer que seja? Bom, se eu tivesse de matar o porco no restaurante não comeria. Não conseguiria matar o porco, a não ser que estivesse mesmo, mesmo à beirinha de esticar o pernil, com uma fome de leão, altura em que, aposto, eu mataria o porco. (Ou o porco me mataria a mim!) Mais me atrevo a apostar: este homem condoído até mataria o amigo e a amiga para se salvar das garras da morte por inanição se não tivesse um porco à mão para matar e comer! Tantas são as histórias de sobrevivência que nos confrontam com o nosso instinto: naufrágios e derivas no alto mar, expedições encalacradas nos confins gelados. Outras se escreverão no futuro, em viagens espaciais para lá do sistema solar, quando os mais avançados de nós não hesitarão em se convolarem em primitivos canibais testados nos seus limites. Por isso, aposto que o sensível barbudo Eric comeria os amigos e até beberia o seu próprio mijo para se salvar.

A nossa caminhada no planeta dependeu, mas não só, da morte de animais. Eram caçados e comidos, depois foram criados para comer. Ainda se faz, muitos criam ou caçam e pescam e comem o que capturam. Mas a evolução distanciou o homem comum da necessidade de matar para comer. Outros fazem-no por ele, máquinas industriais fazem-no por ele: click, click, click. Assim se iludiu a consciência da natural e normal crueldade do acto, ao mesmo tempo que se lhe retirou qualquer respeito que lhe fosse devido. No acto seguinte, a morte é depois bem disfarçada, apresentando-a em caixas para ser comprada sem sujar as mãos, amaciada na cozinha em amidos e azeites, bem temperada de cheiros, transfigurada pela chama, e por fim engalanada por porcelanas decoradas de levar à mesa. Longe da fogueira, nós, predadores evoluídos, de faca e garfo, esquecemos há muito a agonia do sangue quente nas mãos, tal como deixámos de fazer sacrifícios aos deuses. Agora a morte de um animal só acorda em nós essa crueldade invisível quando lhes damos nomes como Wilbur, Lacy, Rico, Luna, Rex, Kiko e lhe escrevemos uma história. Até aí tida como normal e inevitável, a morte de um ser vivo é então uma descoberta estranhamente cruel, uma chapada crua e destemperada que nos atinge de supetão revelando um sabor amargo de dor que para muitos outros parecerá sobretudo patética ou até incompreensível.

Na série American Gods, a dada altura, um deus russo, Czernobog, conta como trabalhara num matadouro com a função de matar vacas com uma pancada certeira de um martelo gigante na cabeça. Tinha orgulho do seu ofício, do seu talento, e explica o porquê: se não o fizesse direito a vaca zangava-se e se se zangasse a carne saberia mal. O objectivo do seu golpe era esmagar o cérebro dentro do crânio, rapidamente, antes que a dor alcançasse o interior a partir do exterior, assim evitando que o cérebro soubesse que estava a ser esmagado. Diz Czernobog: "Dar uma boa morte é arte. Agora qualquer macaco com polegar oponível é capaz de matar com um instrumento banal que faz "click, click, click"...

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