Regras de Fernando Assis Pacheco para viver em Campo de Ourique




Capa do livro A Musa Irregular, que comprei quando a Asa publicou. A Musa Irregular – Edição Aumentada” (Tinta da China) chegou 28 anos após o lançamento da sua primeira versão, então publicada na Hiena Editora, a que se seguiram outras duas (em 1996 e 1997) na Asa.

1. Pratica a arte da boa vizinhança; estás numa terra pequena, não sejas opaco.

2. Dá o máximo de ti, pede aos outros o máximo. A escassez não vale uma vida.

3. O alheamento não vale uma vida.

4. Faz-te conhecer pelos gestos de todos os dias; mesmo os gestos neutros; mesmo os inúteis.

5. Não deixes de contrastar os homens sobre as pedras.

6. Saboreia os teus trajectos com uma paixão minuciosa,

7. Mas reserva-te para a surpresa e para o imprevisto (como no trabalho).

8. Vive direito. Vive claro. Evita enganar-te neste ponto.

9. Aceita os outros, que são sempre diversos.

10. Gostarias que de ti ficasse (mas qual?) uma memória. Em todo o caso não a forces.


(Regras para Viver em Campo de Ourique, da autoria de Fernando Assis Pacheco, originalmente publicadas em 1977, podem ser encontradas em Trabalhos e Paixões de Fernando Assis Pacheco, de Nuno Costa Santos, Lisboa: Tinta da China, 1ª 
edição, 2012, p. 135.) E, antes, na edição nº 4 do "Jornal de Campo de Ourique", de Novembro de 1977


"Sou o Fernando Assis Pacheco, 41 anos, um pasmado sem cura. Tudo me espanta, gramo a vida, quero morrer mais lá para o Verão".

Um dos primeiros programas que me lembro de ver na televisão portuguesa foi o concurso A visita da Cornélia. A vaquita fazia sentar toda a gente em frente à TV, eu, a minha irmã pequenina, os meus pais e até a minha avó, tudo ali reunido no sofá de napa vermelha e preta, numa saleta com janela de 3º andar para as montras da Livraria Victor. Miúda, ouvia os adultos trocarem impressões que não percebia completamente enquanto me divertia com as peripécias dos concorrentes, sem saber que aquelas noites a preto e branco entrariam para a história televisiva e para a minha memória. Tão famosa entre os portugueses a Cornélia se tornou que deu origem a uma revista, se escrevia sobre ela nos jornais, e se discutia com afinco à hora da refeição e às mesas de café, qual disputa futebolística. Provocando reacções de toda a ordem, elogios aos concorrentes e apupos aos jurados, tal como hoje, criticados por terem sido maus avaliadores do talento demonstrado, ou tecido comentários políticos sensíveis em tempo de ainda pouco à vontade com a conquistada liberdade de expressão ou a experiência nova do humor à solta. Também por essa altura estreou a telenovela brasileira Gabriela, com idêntica capacidade de juntar todos no sofá. Esta nova vida do pós 25 de Abril e a imitação da vida dentro da caixa mágica, eram diferentes de tudo o que se vira até aí, tal como tudo seria depois diferente de tudo doravante. Mas eu não sabia, não tinha como saber que, vertiginosamente, a grelha de programação se encheria de propostas, que as televisões ganhariam cor e que se multiplicariam pelas divisões das casas ao mesmo tempo que aumentaria também o número de canais disponíveis. Hoje vivemos na época do controlo remoto e de um exagero delirante, naquela altura apenas uma ficção de quem escrevesse histórias à frente do seu tempo. Ou mesmo um sonho que a nova realidade gorou para minorias exigentes, a qualidade e a diversidade tantas vezes relegada em nome da vitória das audiências.

O concurso foi uma ideia do humorista Raul Solnado, que o apresentava, conversando com a vaca de olhos pestanudos e pele tingida aos corações, e de Fialho Gouveia, um apresentador de televisão que usava óculos e tinha uma covinha no queixo. A vaquita falante era uma escultura, talvez feita de papier maché, e tinha de ser mungida pelos concorrentes que se apresentavam no palco do teatro Villaret transformado semanalmente no palco de Portugal, como nem o Festival da Canção conseguia. Ali compareciam pares dispostos a demonstrar os seus conhecimentos literários e até de consciência cívica, sendo-lhes perguntado sobre a Constituição ou o Código da Estrada. Havia também provas criativas que puxavam pelas habilidades literárias, dramáticas e musicais dos participantes. A sua destreza manual era igualmente testada devendo os concorrentes acender velas num bolo de três andares em tempo reduzido, ou apagá-las, sinceramente, já não sei! Os vencedores subiam ao pódio e destronavam os anteriores, alguns  passavam de uma semana para a outra, tornando-se progressivamente mais populares. Por incrível que possa parecer creio ainda ter na ideia os cupões que eram publicados nos jornais e que se enviavam para se participar. Ir à televisão era então uma experiência de uma vida, algo que hoje já não tem, certamente, o mesmo peso para muita gente, quando oportunidades de aparecer noutras janelas se abriram e não apenas para o país, para o mundo, a partir das nossas casas. Na minha memória também a fila de jurados, um grupo composto por Maria João Seixas, Luís Sttau Monteiro, Paulo Renato, Maria Leonor e Raul Calado. Com o passar dos anos vim a saber quem eram realmente, já que, enquanto durou o concurso, eram simplesmente o júri.

Vídeo  - Saudade Burra, curta-metragem

De todas as pessoas que passaram por lá a mais singular, para mim, foi Fernando Assis Pacheco, na altura chefe de redacção do Diário de Lisboa, facto que à ocasião talvez desconhecesse, ou até me tivesse sido explicado pelo meu pai, sempre grande leitor de jornais, e responsável por ter tido os meus primeiros desenhos publicados num, acho que no República, desenhos de criança, está-se a ver, daqueles com o sol ao canto da folha, uma igreja no meio e uma boda de casamento enfiada no meio de um arraial minhoto, com gigantones e pipas de vinho, mescla para a qual também não tenho hoje explicação alguma.

Assis era de longe o meu concorrente favorito de tal forma que, muitos anos decorridos sobre aquelas noites de diversão familiar, continuava a recordar o simpático e bem humorado concorrente, de cabelos longos e barba farta, calças à boca de sino e camisa aos quadrados. Esta é a imagem dele que vive ainda na minha memória, tudo por causa do concurso. Leitora de poesia, porque depois da prosa ter acompanhado a minha juventude, com a Faculdade descobri a fuga da poesia e nunca mais parei de fugir nos versos dos outros, sorte a minha,  Assis era poeta que eu pude, anos mais tarde, assim cuscuvilhá-lo nas palavras encavalitadas à falta de faits divers de celebridade de concurso. Uma década depois comprei o livro A Musa Irregular supreendendo-me encontrar, entre outros,  poemas sobre a guerra colonial, assim descobrindo que o autor tinha estado em África. Também aí se encontram poemas sobre Coimbra, onde estudou e viveu. Sobreviveu à brutalidade da guerra mas não à traição do seu coração, que lhe falhou, cedo demais, aos 58 anos, à porta da livraria Buchholz, em Lisboa, quando seguia para o trabalho, na revista Visão.

Um dia comentei Assis e a Musa com um amigo a quem li dois poemas à mesa do café - era um tempo em que eu ainda fazia vida de café. Replicou que a sua poesia era banal, sobre coisas banais, que não gostava. Fiquei sentida com o reparo. Até a banalidade precisa de ser cantada, pensava eu. Afinal, a maioria de nós, seres banais, com gestos banais, todos os dias, não teríamos também o direito se ser perpetuados em versos? Ainda que fossem banais! O Pedro não era dado a coisas de versos. Uma outra vez, ainda achava eu que podia escrever como gente grande, fiz um poema, ilustrei-o num cartão para servir como marcador de livros - o Pedro era leitor de romances, que me resumia sem esforço e com mestria - e ofereci-lho, por entre goles de café e cerveja de pêssego. Causou-lhe a mesma impressão que o empregado estender-lhe o papelito com a conta do lanche para pagar na caixa. E talvez tenha acabado também no lixo.

Até à sua morte, para mim, Assis sempre foi o concorrente do concurso da TV. Mas ele era muito mais que isso, escritor, poeta, jornalista, crítico literário e um homem que todos afirmavam cativante e extraordinário. Foi-se-me revelando, hoje isto, amanhã aquilo: olha lá, a letra da canção Nini, cantada pelo Paulo de Carvalho, é do Assis Pacheco! Olha, trabalha no Jornal, olha, é reporter na Visão...Mas nunca pensava no escritor, poeta, jornalista, crítico literário, não. Na minha cabeça ele era sempre o Assis da Cornélia, uma estrela da televisão, o autor das 10 regras para viver em Campo de Ourique, bairro onde ele viveu, em Lisboa.


(A máquina de escrever de Assis Pacheco, usada na redacção da revista Visão.
Reportagem sobre os 25 anos da revista, "Visão" nº1307, pag.10)

Por último, deitei as mãos a Tenho cinco minutos para contar uma história, um conjunto de crónicas emitidas na RDP em 1977 e 1978, aos domingos de manhã, (Crónica da manhã)  que eu nunca ouvi. Embora o radio estivesse sempre ligado na casa dos meus pais, estaria a brincar, por certo, ou a desenhar ou a recortar papel. Estas crónicas mostraram-me um outro Assis. Nelas é mais o homem que existia no jornalista  e no escritor que pontua cada história. Ao mesmo tempo levaram-me de volta a um tempo de mudança em que eu já vivia sem saber ainda bem aonde estava nem totalmente o que era a vida que me agitava. Ali encontrei logo títulos encantadores como Bocados do meu coração repartidos por onde quer que calha. São crónicas, diria o meu amigo, sobre tudo e coisa nenhuma, a tal banalidade que alguns parecem considerar irrelevante, indigna dos versos e da prosa,  coisas sobre a sua infância e juventude, as pessoas mais notáveis ou mais comuns, coisas familiares, coisas de viagens, da profissão, e, claro, de como ficara famoso por causa do concurso A visita da Cornélia. Mostram  um escritor meticuloso, crítico, bem humorado, de prosa rica e expressiva. Poderão parecer pequenas histórias despretensiosas feitas para serem lidas em cinco minutos e desaparecerem no ar. Mas desenganem-se, pois se ao ouvido escapam que são grandes, agora os olhos não nos deixam errar.

E porque é que me fui agora recordar de Fernando Assis Pacheco? É uma altura tão boa como qualquer outra para recordar um homem que gostava das palavras e de quem eu gostei sem conhecer, tudo por causa da TV. Só que há mais. Há dias foi o aniversário do seu nascimento e Assis nasceu no mesmo dia que eu. Uma banalidade, claro, só para mim importante.

Chula das fogueiras

Amor amor meu big amor
eu dizia shazam e tu não me ligavas
pus Mandrake a seguir-te hábil nos truques
e tu não me ligavas

em qualquer planeta verde e avançadíssimo
tu não me ligavas

estendi o meu braço Homem de Borracha até S. Martinho do Bispo
e tu não me ligavas ponta nenhuma

tu querias era casar na Sé Nova
branquingénua abusar do meu livre alvedrio

fiz-te pois um manguito do tamanho dum choupo
e cá estou pai de filhos um bocado estragado

mas não por tua causa que já não existes
ó sombra de sombra à esquina da farmácia

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