Marriage story: o surpreendente Adam Driver !


“Somebody to crowd me with love / Somebody to force me to care / Somebody to let me come through.

Acredito que nada do que lerem vos dará uma boa pista para o que este filme é. E, possivelmente, nada do que vou escrever aqui. Imaginem que a vida familiar de um casal está na rota de um furacão.  Nicole e Charlie sabem que estão no caminho da separação. Não sabem é que vão ser eles o furacão. Nada fica por tocar. As vidas de ambos são revolvidas, mas, para surpresa de todos, ou não, esse vendaval raivoso também nos mostra o amor. O amor persiste no olho do furacão onde tudo está calmo. Ele está ainda lá, por pouco tempo, talvez, enquanto à volta tudo rui, tudo se despedaça e rasga. Então é preciso que fujam de si mesmos. Não há outra via. E assim esse amor será poupado.

Vi o filme Kramer contra Kramer nos anos 80, já bem depois de ter estreado, e quando começaram circular rumores acerca do grande filme que era Marriage Story, - e também o poster do filme -  lembrei-me de imediato do trio Kramer: eram Justin Hoffman, Meryl Streep e um puto lourinho. Nessa altura toda a gente vira ou falava de Kramer contra Kramer. Foi um enorme êxito e tornou-se um clássico do cinema. No filme, Joanna deixa o marido e este tem de cuidar do filho, sozinho. Se há males que vêm por bem, aqui foi bem assim: um pai que não sabia ser nem marido nem pai adapta-se à sua nova vida e revela-se capaz, descobrindo o que estava a perder. Entretanto instala-se uma batalha legal quando a mãe, arrependida, regressa tempos depois para se bater pela custódia do filho.

Agora que já vi Marriage Story, houve, de facto, coisas similares, mas não têm nada a ver com cópia ou inspiração. O realizador já tinha feito um filme sobre o divórcio - Squid and the whale, - inspirado pelo dos seus pais. Agora diz-se que parece ter sido o seu próprio o material sobre que trabalhou para este. No primeiro, o divórcio era visto pelo olhar dos filhos jovens, este, é-o pelo de ambos os intervenientes e Noah Baumbach esforçou-se bastante para que seja muito difícil tomar o partido por algum deles. Vejam, e depois digam-me se tomaram partido por alguém. Não sendo uma história nunca contada, é, mesmo assim, um bom filme. Começa onde tudo acabou, mostra-nos o amor que existia entre Charlie e Nicole, e que ainda existe, enquanto se desenrola o tumultuoso processo de divórcio, conduzido pelos inevitáveis advogados: é desconcertante pois é como se os dois perdessem o controlo das suas vidas a partir do momento em que contratam estas personagens sinistras. Preparem-se para momentos comoventes, dramáticos e também hilariantes, embora o filme seja realmente um drama. Preparem-se porque eu não estava preparada para ser arrastada para dentro desta contenda de emoções.

À semelhança de Charlie, em Marriage Story, também Ted, em Kramer, o marido, um publicitário, andava sempre obcecado com o trabalho. E há uma cena de Charlie a jantar com o filho, ou mesmo os sofás e as plantas do novo apartamento que tem de arrendar em LA, que me recordaram o velho filme. Em Kramer, é também a mulher que pede o divórcio, uma mulher que vivia para os seus afazeres domésticos e que se sente invisível, ansiando por uma vida a que acha que tem direito, um pouco como Nicole, em Marriage Story. Diferentemente do que sucede aqui, em que os dois elementos do casal têm idêntica voz, Joanna mal aparece no filme de 1979. Um dos problemas em foco no  filme era o de saber se uma mulher é melhor que um homem a cuidar de um filho em virtude do seu sexo. Tal como em Marriage Story ambas as personagens tinham motivos válidos para fazer valer a sua pretensão de querer a custódia do filho perante o juiz que encarnava a posição mais tradicional: os filhos devem ficar com as mães. E tal como em Marriage story, o casal vive entre o carinho que ainda nutrem um pelo outro e a decepção. Ganhou uma meia dúzia de Oscars. O que mais gostei então foi a história da redescoberta de ser pai que existe dentro desta história sobre o divórcio, creio que  ainda  hoje será bem bonita de redescobrir pelo público. Vejam. Ou então não vejam e vejam antes Marriage Story, que também é um filme de histórias, a pouco e pouco reveladas: a do casal Nicole e Charlie. 

Inicialmente Nicole e Charlie parecem ser um par protagonista de uma qualquer comédia romântica. Mas rapidamente a vida em comum que partilharam vai passar à história: o amor e o respeito vão ceder à quase selvajaria (verbal, sobretudo). Por instantes  pensei que fosse haver mortes, mas não, o mais grave que sucede é um murro na parede. Os aleijões são menos superficiais que profundos: o filme torna visível a dor destas pessoas, o seu sofrimento, e sempre sem lamechismos ou escolhas fáceis, e sem nos manipular. A dor chega em doses brutais enquanto se redescobrem um ao outro,  e dá  a volta ao amor que sentiam em menos de nada. A questão crucial de todo este turbilhão de emoções é a disputa do filho de 8 anos, agora que a mãe passa a viver em LA e o pai em Nova Iorque. E as suas  armas não vão ser outras que não as palavras. As suas, ou as dos seus implacáveis advogados, que se encarregam de re-escrever a história de ambos, no melhor interesse dos seus clientes.

O filme investe fortemente sobretudo diálogos bem escritos. E monólogos. Os diálogos são batalhas onde não há vencedores nem vencidos. Nesta luta quebram os dois, reconfortam-se os dois.  Há uma intensidade nestas interpretações, quer nos momentos de crise quer nos mais contemplativos, e uma autenticidade que dificilmente deixará quem assista indiferente. Todavia, Marriage Story não se resume a boas interpretações de todos os envolvidos, incluindo os secundários. Funciona bem no todo. Nada é avulso. Outras cenas menos emotivas são ainda ricas em significados, até mesmo as que nos mostram como pai e filho vivem o Halloween. Preparem-se ainda para uma insinuante banda sonora romântica. Além dela, há duas canções de Sondheim cantadas por Nicole e Charlie. Se não sabem quem é, ele é o autor de Sweeney Todd e West Side Story, entre outros musicais da Broadway. Ainda há pouco o filme Joker usava Send in the clowns e agora Marriage Story também se lembrou dele: uma boa lembrança, algo teatral mas no bom sentido, num filme onde as duas personagens principais trabalham no teatro, mas, no caso de Charlie,  também contribuindo por uma das cenas mais emblemáticas do filme.

Comecei a ver Marriage Story sem grande interesse, pensando, WTF, mais um Kramer contra Kramer! Mas acabei rendida ao filme. E é verdade que foi assim a modos que uma espécie de Kramer contra Kramer! Além disso, ao contrário, parece, da maioria, nunca fui muito apreciadora da Scarlett Johansson. À semelhança do que se passa com muitos outros actores e actrizes, isso nunca  é motivo para não ver um filme, apenas nunca é motivo para ver. Há alguns filmes onde ela entra de que gosto muito: Under the skin, Vicky Cristina Barcelona, Lost in translation. Fico-me por aí. Pois bem: este soma-se à lista. Ela realmente brilha neste papel, mas quem é surpreendente é Adam Driver. Talvez porque o realizador tenha sido mais simpático com a sua personagem? Lembram-se de eu ter escrito que se o Joaquin Phoenix não ganhasse o Oscar este ano eu nunca mais ia ao cinema? Pois bem: a competição vai ser renhida. ( E ainda não vi todos os actores nomeados.) E eu gostei tanto de ver o Adam Driver a ser Charlie que até já me conformei se ele levar a estatueta. Quanto a Adam Driver, com a sua carreira mais curta que a de Scarlett, gostei especialmente dele em Paterson ou BlacKkKlansman, ou mesmo como o padre jesuita em Silence, de Scorsese. É um bom actor.  No entanto não esperava algo assim. Foi uma surpresa e uma das razões fortes para recomendar este filme.

Comentários

Konigvs disse…
Tinha lido a crítica muito boa no Guardian quando o filme estreou em Inglaterra a 15 de Novembro e logo fiquei com a ideia de que quereria ver o filme. Mas entretanto constatei que não saiu para cinema cá. Fiquei desiludido porque são sempre poucos os filmes que me chamam a atenção, e quando um chamou, não deu para ir ver!
Pois não, é uma produção do Netflix, que ano após ano cada vez surpreende mais com as suas propostas. Não tem Neflix? Eu também não. Saiu-me a sorte grande: um vizinho que se mudou para aqui e é ainda mais cinéfilo do que eu. É mesmo ele que me chama e diz que vai ver isto ou aquilo e se não quero ir. Também vi com ele Parasite, - que adorei - muito antes de ter estreado em Portugal. Ele arranja filmes no inferno!E tem uma TV enorme. Pode experimentar o Netflix de borla por algum tempo: um mês. Aproveite agora que quer ver este pois vale a pena! https://www.netflix.com/pt/
Konigvs disse…
Para mim não dá que eu nem sequer tenho televisão!!
Eu também não! Mas pode ver o filme no computador ou mesmo no telemóvel.Só tem de cancelar antes dos 30 dias iniciais findarem para não continuar. :)