Dia Internacional Contra a Violência Sobre Trabalhadores do Sexo



A multifacetada realidade da prostituição

Em 2003, no Reino Unido, foi lançado um blogue que se tornaria famoso: Diary of a London Call Girl. A autora assinava Belle de Jour, nome emprestado da  personagem interpretada por Catherine Deneuve, uma jovem rica que frequenta um bordel. Em 2005 deu origem a um livro que se tornaria um best seller: The Intimate Adventures of a Call Girl  A identidade de Belle de Jour  foi  motivo de enorme especulação entre leitores, jornais e gente do meio literário. A autora do blogue, onde ela escrevia sobre a sua experiência como acompanhante de luxo, revelaria a sua identidade em 2009, ela era Brook Magnanti, uma oncologista e que vivia na cidade de Bristol. 

O enorme sucesso do blogue conduziu ao livro e a uma série lançada em 2007, Secret Diary of a Call Girl , estrelada por Billie Piper, que vi na televisão portuguesa, altura em que trocámos alguns emails. Da série recordo pouco: que a personagem gostava do que fazia, que era inteligente, bem humorada e espirituosa e que estava no comando das operações. Levava uma vida dupla, escondendo a sua verdadeira identidade, o segredo era um peso para ela. Tinha mais amigos do que amigas, que a apoiavam, era tudo muito civilizado e dentro da norma. A sua vida estava longe de ser sórdida, não havia drogas nem proxenetas. Os clientes eram cultos e respeitáveis, ela gostava do sexo e do dinheiro, e gastava uma fortuna em lingeries...

Entre 2003 e 2004, Brooke foi uma prostituta de luxo, agenciada, em Londres, que se referiu à sua actividade de 14 meses "bem mais agradável" do que um outro emprego que mantinha, de programadora de computador, não tendo quaisquer remorsos por essa escolha.  Acusada de glamourizar a prostituição, afirmou que não teve problemas de violência mas reconheceu que muitas trabalhadoras do sexo enfrentam situações terríveis. A agência cuidara bem da sua segurança, disse. Fez o que fez  para pagar os estudos para PhD: sem este não conseguia trabalho na sua área. Recorreu a algo que podia fazer sem ter de treinar, que lhe desse tempo para continuar a estudar e pagasse as despesas: a prostituição.


Em 2003, mas em Portugal, um grupo de mulheres ficaria conhecida como "As mães de Bragança", quatro mulheres, fizeram um abaixo-assinado que entregaram a várias instituições: câmara municipal, governo civil e autoridades. A cidade tinha de ser salva da onda de loucura provocada por uma invasão de imigrantes brasileiras que ali se dedicaram à prostituição.:"(...) Somos agora invadidas e fustigadas por dezenas de prostitutas aquarteladas em 'boîtes', mesmo durante o dia, em bairros residenciais, em todo o canto e esquina da cidade". A onda, o flagelo da prostituição que assolava a cidade, tinha de ser combatida e travada:"Não podemos continuar a permitir que Bragança seja conhecida como a cidade número um em vida nocturna, em droga, em consumo de bebidas alcoólicas e em prostituição". As "mães" referem os "comerciantes sem escrúpulos", referindo-se àqueles que as trazem do Brasil para as casas de alterne, e que depois as "passam" a homens, que pagam os custos das viagens e ficam com elas, em alguns casos também para as explorar. Mas não era tanto a cidade que precisava de salvação: as esposas afirmavam ter os lares e o que construíram durante uma vida desfeitos pela "onda de loucura" que atingiu também os maridos que gastavam o dinheiro, criavam dívidas, descuravam compromissos, dormiam fora, tratavam-nas mal, tendo até deixado algumas delas. Apenas desejavam "contribuir para um mundo mais justo, uma sociedade mais saudável e feliz". As prostitutas brasileiras tinham apresentado queixa na polícia contra agressões diversas mas a polícia desconhecia outros impactos. O caso foi a inspiração para uma série que a RTP passou em Outubro chamada Luz Vermelha.


Entre 2000-2003, um casal de brasileiros, na casa dos 30 anos, montou um esquema para recrutar mulheres de Goiânia, (Brasil) onde tinham uma angariadora, que se prostituíam num apartamento em Leiria e numa vivenda na Mata do Urso, próximo da Figueira da Foz. Pagavam 4000 euros para o bilhete de avião e outras despesas. Depois contribuíam com dez euros por dia para a alimentação e manutenção das casas. Os montantes cobrados pelos serviços sexuais eram divididos entre as prostitutas e o casal. Entregavam os documentos de identificação quando chegavam a Portugal e estavam impedidas de sair das casas sozinhas, até pagarem os quatro mil euros. Tinham de obedecer a um horário  para acordar, comer, e até para tomar banho. Quando as regras eram violadas, havia uma tabela de multas. Se demorassem mais de 25 minutos com o cliente tinham de pagar 15 euros. O Tribunal deu como provado que os dois montaram um negócio de prostituição, em Leiria e Mata do Urso, Figueira da Foz, e angariavam mulheres no Brasil para se prostituírem por sua conta. Não ficou demonstrado o tráfico de pessoas e auxílio à imigração ilegal. Foram condenados a dois anos de prisão por lenocínio. O homem somou mais três meses de prisão pela posse ilegal de arma. A ausência de antecedentes criminais e o facto de terem um filho bebé determinou a suspensão da pena.

O preconceito como fonte de violência

O Dia Internacional Contra a Violência Sobre Trabalhadores do Sexo é assinalado no próximo dia 17 de Dezembro. A prostituição, aceita-se, é maioritariamente feminina e as agressões a que as mulheres estão sujeitas assume muitas formas e consequências. O caso de Belle de Jour é uma excepção, não significando necessariamente que as acompanhantes de luxo estejam imunes à violência. O "caso das Mães", é demonstrativo  da percepção da responsabilização sobretudo da prostituta pela existência da prostituição mas não tanto do cliente e do proeminente valor da defesa da moral e bons costumes de uma cidade. As brasileiras foram acusadas de usarem feitiços para amarrarem os pobres maridos incapazes de resistir a esses truques, eles, desculpados. A dependência económica feminina também não deverá ser alheia a esta atitude. Algumas casas de alterne fecharam, as "meninas" deixaram a cidade e cruzaram a fronteira: os homens passaram a ir a Espanha. O caso da rede exemplifica o tipo de controlo suportado pelas prostitutas apanhadas numa situação de exploração deixando aos leitores a imaginação do tipo de violência psicológica a que estão sujeitas.

A imagem negativa da mulher prostituta percorre a história. A "mulher da vida" é  intrinsecamente indigna, a sociedade faz pesar sobre ela um julgamento moral que é, em si mesmo, violência subreptícia. Considera-se que vender favores sexuais é desprezível e esse pequeno grande pormenor é o rótulo pelo qual é julgada toda a sua conduta. É assim contestado que tenham dignidade para serem mães ou companheiras fiés. Ou aceite que não têm perfil para trabalhar noutra área porque vão dar má imagem da empresa. Acredita-se que não têm capacidade de se auto-determinar, que não são capazes de reconhecer o mal que causam a si mesmas, ao persistir na "vida", à semelhança do que se passa com o toxicodependente.  Esta qualidade de cidadã de segunda dificulta, influencia a forma como são atendidas as suas necessidades nos mais variados serviços e instituições. Mas ao falar-se de violência sobre trabalhadores do sexo pensa-se sobretudo, numa mais explícita, verbal, física, psicológica, sexual, roubos, raptos, etc, e não neste julgamento que informa o preconceito e alimenta o estigma. A violência tem, portanto, diversas origens: no cliente, por exemplo, por entender que o pagamento lhe dá direito a fazer tudo, no proxeneta, que procura maximizar o negócio à semelhança de qualquer patrão sem escrúpulos, no traficante e angariadores que as aliciam com falsas promessas, nos criminosos que abusam da sua vulnerabilidade para fazer denúncias, nas forças de autoridade que não as levam a sério, mas também no cidadão comum, ao reagir de forma preconceituosa e até discriminatória, muitas vezes transferindo esta sua sensibilidade para serviços e instituições.

Não deixa de ser surpreendente que este preconceito seja ainda  tão forte nos tempos da democratização virtual da pornografia em tantas montras da internet, - aliás, uma profissão do sexo regulamentada, onde o acto sexual filmado não levanta idêntica celeuma -, em que se realizam salões eróticos, com sexo ao vivo, em que se anunciam festas de sexo, com ingressos caríssimos,  em que as redes sociais são forçadas a  tomar medidas contra o revenge porn, em que proliferam classificados em jornais oferecendo serviços sexuais sem parecer incomodar ninguém, em que proliferam conteúdos sexualizados em formato de imagem ou texto nas livrarias e  páginas de tanta publicação online, ou nos telemóveis de qualquer um. Tenho participado num desafio de escrita semanal e os textos com conteúdos sexuais têm sempre suscitado o agrado fácil e entusiasmado. O corpo nunca foi tão livremente sexualizado.

Além disso, o exercício da prostituição, sobretudo feminina, trans, mas também masculina, faz-se um pouco por todo o lado, o que quer dizer que há muitos homens que se cruzam connosco na rua, com quem até convivemos, que são pais, irmãos, filhos, maridos, companheiros de alguém, que compram esses serviços na berma da estrada, na rua, em hotéis, motéis, apartamentos, casas de alterne, agências de acompanhantes, restaurantes, bares gay, etc. A actividade é bem tolerada, não há outra forma do o interpretar. Por isso, maior que o preconceito histórico contra a prostituta, só mesmo a hipocrisia de tanta gente que com as suas opiniões e atitudes declara a prostituta como uma mulher indigna.

De tempos a tempos alguém vem suscitar a necessidade de um debate alargado sobre a prostituição. Antes de mudar a legislação do nosso ordenamento jurídico falta fazer a revisão de mentalidades. Isso é algo que está na mão de todos e de cada um de nós. Começa no nosso esforço para encarar o assunto de frente, sem preconceitos e moralismos. Continua no rigor para perceber quem são e o que querem estas mulheres e termina na nossa acção, por mais discreta que seja, no combate ao preconceito, qualquer que seja a nossa decisão, apoiar a legalização da prostituição ou a sua regulação.

Os argumentos do debate sobre a prostituição

Contra a legalização da prostituição

- não é uma profissão que dignifica quem a pratica

-  a prostituta é sempre uma vítima forçosa das circunstâncias mesmo sendo legal o que faz

- é um incentivo à indústria do sexo

-  não vai determinar o fim do tráfico

- sempre haverá prostituição clandestina

- pode até aumentar o tráfico pois o mercado passa a ser maior e sem constrangimentos

- a legalidade fará aumentar os seus números pois o negócio é rentável e logo aparecerão mais empresas

- pode aumentar as DST pois a obrigatoriedade de exames médicos não significa que os infectados se abstenham de sexo

- cria uma falsa segurança acerca da propagação das DST na ideia dos clientes (regulamentação=controlo de DST)
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A favor da legalização da prostituição

- direito à auto-determinação sexual
- direito à liberdade individual para escolher o tipo de trabalho que quer fazer
- o Estado tem de ser neutro em termos de moral
- a clandestinidade não promove a segurança pessoal de quem se prostitui
- o princípio constitucional da subsidiariedade do Direito Penal - de minimis non curat praetor (o pretor não trata de insignificâncias) 

"Na verdade, para a criminalização ser legítima é necessário não só a existência de um bem jurídico dotado de dignidade penal como igualmente verificar-se uma efectiva necessidade ou carência de tutela penal, pelo que "a violação de um bem jurídico penal não basta por si para desencadear a intervenção, antes se requerendo que esta seja absolutamente indispensável à livre realização da personalidade de cada um na comunidade. Nesta acepção o direito penal constitui, na verdade, a ultima ratio da política social e a sua intervenção é de natureza definitivamente subsidiária." - (in JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Direito penal, Questões Fundamentais, A doutrina Geral do Crime, Coimbra editora, 2004, pp. 121).

 "Uma vez que o direito penal utiliza, com o arsenal das suas sanções específicas, os meios mais onerosos para os direitos e liberdades das pessoas, ele só pode intervir nos casos em que todos os outros meios da política social, em particular da política jurídica não penal, se revelem insuficientes e inadequados. Quando assim não aconteça, aquela intervenção pode e deve ser acusada de contrariedade ao princípio da proporcionalidade, sob a precisa forma de violação do princípio da proibição do excesso (...) Tal sucederá, p. ex. quando se determine a intervenção penal para protecção de bens jurídicos que podem ser suficientemente tutelados pela intervenção dos meios civis (...), pelas sanções do direito administrativo (...), Como o mesmo sucederá sempre que se demonstre a inadequação das sanções penais para a prevenção de determinados ilícitos (...)" — (in id. lbid.).



- quem se prostitui deve ter acesso a direitos sociais e laborais em pé de igualdade com outros trabalhadores ( desemprego, sindicatos, greve, reforma)

- exercer uma actividade na clandestinidade não contribui para uma vida condigna, sendo fonte de estigma social, stress, violência, descriminação que afectam os trabalhadores e seu círculo familiar

- recorrer a uma actividade clandestina também é um estigma para quem procura o serviço

- fiscalização pode garantir mais condições sanitárias aos profissionais do sexo para o desempenho da actividade

- a fiscalização combate a impunidade dos abusos dos clientes e proxenetas

- facilita o combate da prostituição sob coação e do tráfico de seres humanos, actividades que se aproveitam e são facilitadas pela clandestinidade

- regulação sobre higiene e segurança no trabalho combate as DST e assegura mais saúde pública

- punir o lenocínio torna a actividade mais insegura e a prostituta vulnerável pois a actividade passa a ser clandestina

- substituição dos criminosos que actuam na promoção da prostituição por homens/mulheres de negócios
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Sugestão de leitura

 Sex Workers Were Murdered This Year—We Can Prevent Those Deaths in 2016, para ler, aqui.

Discurso feminista normaliza violência contra prostitutas, diz líder de grupo, para ler, aqui

A dona do bordel dos ministros que deixou a fortuna à Misericórdia, para ler, aqui

PROSTITUTAS 'MULTADAS' POR DEMORAREM MUITO, para ler, aqui e continua aqui.

Sexo por 20 euros na berma da estrada, para ler, aqui

Trabalho sexual de rua perde quota de mercado e passa-se para apartamentos privados e para o alojamento local, para ler, aqui.

"Mães de Bragança" acusam brasileiras de provocar "onda de loucura" na cidade, para ler, aqui.

Dr Brooke Magnanti, forensic scientist and columnist, site

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