A ruptura dos diques no Mondego e as bazófias políticas

O dique que cedeu, na margem esquerda do rio Mondego, entre as pontes de Pereira e Formoselha.

João Matos Fernandes, Ministro do Ambiente, acaba de dizer que as pessoas que habitam nas povoações ribeirinhas do Mondego devem começar a pensar em mudar de lugar. Devagarinho, devem começar a pensar nisso. Não tão devagar como isso deviam começar os responsáveis a não dar autorização de construção em zonas de risco, seja perto de rios ou em zonas costeiras. (Só para dar um exemplo: em Matosinhos está para nascer um hotel em cima das dunas, na praia da Memória, que contraria o PDM municipal. As máquinas andam no local neste momento em que escrevo.)  Os planos directores municipais não foram impedimento à construção em muitas zonas de risco e agora chega o Fernandes e diz que é de considerar a relocalização de habitações e de outras infraestruturas como se as casitas tivessem rodas e atreladas a elas estivessem as vidas das pessoas! Na cabeça do Ministro a  solução não passa em investir na segurança das pessoas que ali vivem, passa em convencer as pessoas que viver ali é inseguro, que não existe alternativa, como se as povoações não existissem ali há um ror de tempo, e o Mondego só agora é que tivesse começado a inundar a zona, nem seja possível que ali continuem. Afinal parece que ainda estamos pior que Veneza e  que não poderemos nunca estar tão bem como a Holanda. Mas, por incrível que pareça, nem italianos nem holandeses andam a ponderar deixar os territórios. E digo isto com a consciência de que um dia algumas zonas costeiras possam efectivamente ser tomadas pelo mar.

Ministro diz ainda que em dois meses a recuperação dos dois diques que romperam em Montemor estará completada. Porque é que me parece improvável? Porque não somos os japoneses e vem aí o Inverno, a estação ideal para fazer obras em diques, está-se mesmo a ver. O Ministro também declarou que os diques suportaram uma pressão de água muito superior àquela para a qual tinham sido projectados e que a situação não foi mais grave pelo extraordinário trabalho de manutenção realizado no local. Mas o coordenador da Protecção Civil de Montemor-o-Velho, Hélder Araújo, parece ter opinião diversa: investimento na manutenção e conservação dos diques é inexistente. Perante este cenário, lamento muito a sorte das pessoas que vivem e exploram actividades agrícolas na bacia hidrográfica do Baixo Mondego.

Mas o pior pode muito bem ainda estar para vir. Quem o imagina talvez seja o autarca de Montemor, Emílio Torrão, que já pediu ao Governo os meios para a reparação dos diques com urgência. A população tem doravante de viver em estado de alerta e com o olho na meteorologia enquanto tal não acontece: a margem direita do canal principal do rio - que ruiu sábado levando a água do Mondego para a planície agrícola e colocando pressão no talude do leito periférico, que também acabou por colapsar - tem de ser imediatamente fechada, nem que seja com uma solução provisória. Já a Ministra da Agricultura, Maria do Céu Albuquerque, que veio com o Secretário de Estado para estar com o Presidente da CM de Montemor-o-Velho, entre outras autoridades, e representantes de associações de agricultores, ver, ouvir in loco, disse que tinha de se fazer uma avaliação, correcta, concreta, dos estragos -  por exemplo, a identificação das infra-estruturas danificadas no sistema de rega - para se perceber se a dimensão dos prejuízos justificará accionar mecanismos para assegurar as condições de trabalho dos agricultores. Para ela a causa destas situações, períodos de seca, depois muita chuva, muita água que os solos não podem absorver, está nas alterações climáticas. Enfim, a comitiva foi a Montemor dar um abraço solidário aos agricultores, " fundamental, estamo-nos a aproximar do Natal, disse a Ministra" -  e ver o castelo. Só faltou a visita do Presidente Marcelo, mas do Afeganistão até Montemor não é um pulinho, desta vez lá ficaram os abraços por dar e muitas selfies por fazer.

Armindo Valente, presidente da Cooperativa Agrícola de Montemor-o-Velho, afirmou que pode demorar meses até que a água desapareça dos campos e que quase "a totalidade da área de cultivo do Baixo Mondego, entre 5.000 a 6.000 hectares, o equivalente a mais de 8.500 campos relvados de futebol, está debaixo de água", fruto das "inundações provocadas pelo Mondego, pelos afluentes, pelo Pranto, Arunca e Foja,"estimando “prejuízos gravíssimos e bastante avultados” para as infraestruturas de regadio e drenagem da planície agrícola, quer por acção da inundação – que há 18 anos arrancou caixas de rega e entulhou valas, entre outros danos – quer pela areia arrastada pelo rio para dentro dos campos. Ou seja, a partir da situação ocorrida em 2001, é relativamente simples estimar o que tem de ser feito.

Diversos rios e afluentes convergem para o Baixo Mondego. Nem todos os rios são controlados por barragens que possam ser usadas para controlar os seus caudais. Também os incêndios, cada vez mais frequentes, despiram os solos de árvores e vegetação permitindo que as águas arrastem detritos e sedimentos que se depositam assim que a água vai perdendo velocidade ao longo do seu curso ou até nas albufeiras das barragens, quando existem, que deixam de comportar tanta água quanto podiam se não forem de lá retirados. Em caso de cheia, os detritos são transportados para fora do curso dos rios. A barragem da Aguieira disciplinou o Mondego, juntamente com a construção de canais e diques, a de Fronhas, controlou o Alva. A planície aluvial do Mondego tem um leito onde corre o rio e adjacente a este existe um espaço de tradicional inundação, onde se foram acumulando sedimentos ao longo de anos e anos. Nos terrenos férteis, cultura de arroz e milho, na zona mais elevada, plantio de árvores, oliveiras, vinha, e também há salgueiros em muitos pontos. A partir dos anos 80, as casas e estradas começaram a esticar-se por zonas que dantes eram facilmente inundadas e que se passou a  acreditar serem seguras em virtude da barragem e obras. Mas o risco de inundação estava lá. Quando chove intensamente, os sedimentos acumulam-se agora no leito novo que construíram para o rio. Os diques garantiriam que a água não transbordasse, mas se os sedimentos não forem retirados, a água vai transbordar com maior facilidade, invadir os campos e os sedimentos também serão cada vez levados para mais longe, maior que seja a inundação. Cada nova cheia originará maior alagamento caso não se façam as limpezas. Não há como controlar toda a água que se encaminha para o Baixo Mondego: há cursos de água sem barragens e ninguém sabe como é que se vai comportar a chuva. Sabemos que o nosso clima, mesmo sem quaisquer ameaça de alterações climáticas, pode sempre ter invernos muito plumosos. Há aqui dois focos de preocupação: um é Montemor, outro é Coimbra. Em Coimbra também é de referir o açude-ponte que impede que os sedimentos desçam mais abaixo, acumulando-se até aí. Coimbra recebe muita água do Ceira e muito detrito chega por aí. O Basófias, o barco,  nem sempre conseguia circular. Aí a polémica são as obras de desassoreamento, para melhorar as condições do Rio Mondego, permitindo o aumento e suporte de caudais maiores para que em situações climatéricas extremas as águas não transbordem, diminuindo o risco de inundações em Coimbra, mas não isentas de crítica. Em Janeiro e Fevereiro de 2016 o rio transbordou e agora aconteceu de novo. As pessoas viveram momentos terríveis há 3 anos e houve grandes prejuízos privados e públicos, tendo o Mosteiro de Santa Clara-a-Velha sido um dos monumentos atingidos. Por essa altura, João Pedro Matos Fernandes também dissera que aquilo não podia voltar a acontecer! Pois bem: aconteceu.



Ora, tentando saber - porque não adianta ouvir os Ministros, para eles estás sempre tudo perfeito, estamos sempre na vanguarda, bla,bla, bla - se estas obras de Regularização do Baixo Mondego, que foram feitas nos anos 80, para garantir maior produtividade no Baixo Mondego, os diques, os canais, se estão a ter a devida atenção por parte de quem deva fazer a sua manutenção, em relação à infra-estrutura e também no que toca à limpeza, encontrei a opinião do bastonário dos engenheiros, Mineiro Aires, que diz que desde a crise internacional de 2009 que houve um desinvestimento do Estado em tudo quanto é infraestrutura ( ferrovia, por exemplo) e portanto, também é de supor que os diques não tenham sido acautelados, referindo que "em 2001, altura em que (eu) era presidente do Instituto da Água, a manutenção era deficiente por falta de investimentos." Segundo ele, a obra não defenderá eternamente as pessoas, a obra foi prevista para um certo período e um certo caudal. É preciso completar a obra para que o sistema funcione. Diz ainda que "A Agência Portuguesa do Ambiente está completamente sem meios e está na altura de admitir quadros para que estes ainda possam conviver com os muito poucos que lá restam da geração antiga e que têm este conhecimento todo..." Ora bem, eis o que me parece: a obra foi bem pensada e funcionaria garantindo a segurança das pessoas contra inundações para um certo caudal se tivesse sido concluída, e tudo estivesse a funcionar de acordo com o estipulado no projecto, e feita a manutenção devida, nomeadamente em relação a assoreamentos. Só que não estava em 2001 e é possível que não esteja agora.

Em 2001 os diques não aguentaram e a água provocou graves prejuízos em Montemor: uma ponte caiu, os campos foram inundados, estradas foram danificadas, casas, estabelecimentos comerciais da vila, sofreram prejuízos. Na Ereira a água chegou ao primeiro andar das casas e isolou a povoação, centenas de pessoas ficaram desalojadas. Foram prometidas linhas de crédito para ajudar os agricultores. Mas oito anos depois um criador de gado, era um de oito empresários da região, que aguardava a condenação do INAG (Instituto da Água) que, segundo ele, teria negligenciado a manutenção dos diques do Mondego, que, face ao aumento de caudal, rebentaram, conduzindo à inundação no Baixo Mondego. A juíza deu por provado "que os diques se encontravam fragilizados em vários pontos, por efeito de assentamentos pontuais e da erosão provocada pelas anteriores cheias" ou que os "sifões de descarga situados na margem direita do leito central do rio Mondego não funcionaram na sua plenitude, não descarregando os volumes máximos de água para os quais foram projectados e construídos". Já o INAG defendia que as inundações eram inevitáveis, face à quantidade de chuva que caiu em Dezembro de 2000 e Janeiro de 2001: "As precipitações elevadas e contínuas durante aquele período de dois meses conduziram à saturação dos solos e diques". O despacho deu por provado que" a rotura do dique ocorreu por colapso, com rebentamento súbito, por efeito de liquefação dos materiais componentes do corpo do dique".

Dez anos depois das inundações de 2001, um especialista, Pedro Proença Cunha, alertava para o risco de voltar a registar-se uma cheia no Baixo Mondego com caudais idênticos ou superiores a 2001, quando a zona foi inundada, provocando avultados prejuízos materiais, enquanto o então o autarca de Montemor-o-Velho, Luís Leal, lembrava que a obra hidro-agrícola no rio Mondego e outras intervenções, subsequentes às cheias, não estavam ainda concluídas, tinha-se trocado o Mondego pelo Alqueva.

Ora, ainda há poucas semanas João Matos Fernandes escreveu a Greta Thunberg, dizendo estar grato pelo seu activismo, como forma de sensibilizar todos, gerações novas e velhas, para o maior desafio dos nossos tempos, lamentando-se de termos já perdido 13 quilómetros quadrados das nossas áreas costeiras em resultado da subida do nível do mar nos anos recentes. Que no sul do país, a seca é crónica e ainda precisamos de saber como vamos adaptar o nosso uso de recursos a esta realidade. Disse também que Portugal tem uma estratégia de adaptação nacional à mudança climática muito ambiciosa, que está a seguir rigorosamente, uma vez que para Portugal essa mudança já é um problema actual, não um problema de futuro. Não sei se Portugal tem uma estratégia para as alterações climáticas, mas sei, a avaliar por aquilo que o Ministro disse, o que Portugal não tem: é estratégia para o Baixo Mondego.  O que não deixa de ser ridículo. A Holanda consegue controlar a água do mar e nós não conseguimos controlar um rio, mas queremos estar na linha da frente do combate às alterações climáticas!  A verdade é que  a estratégia para o Baixo Mondego está a meter água, e não é pouca. Temos um Roteiro para a Neutralidade Carbónica! Duvido que seja exequível. Se nem as inundações do Baixo Mondego e Coimbra estes iluminados conseguem prevenir, vamos conseguir a descarbonização até 2050? ( N. B. Entre as inundações em Montemor, em 2001, e o momento actual decorreram praticamente 20 anos.)


Comentários

Konigvs disse…
O que o Matos Fernandes disse para as pessoas afetadas pelas cheias em Coimbra, foi o equivalente regional ao "emigrem" do Passos Coelho!
E entretanto só faltam três anos para um Comprar um Range Rover de Janeiro de 2019 a gasóleo porque depois não vai valer nada!
Beatriz Sousa disse…
Como sempre, não se faz nada e os nossos ministros só lamentam...
Nunca aprendemos :(
Konigvs, ontem em casa dos meus pais peguei no jornal de notícias, e até achei coincidência, havia uma notícia sobre o hotel que está para ser construído em cima das dunas, em Matosinhos.O Ministro, este mesmo, dizia que achava estranho que existissem quatro pareceres favoráveis, mandou averiguar, mas parecia estar tudo conforme, pelo que as obras continuavam. Fiz este aditamento na minha postagem. É só palhaços. As dunas são uma barreira às águas do mar. Quando, daqui a uns anos os hóspedes ficarem com os pés de molho, vão os ministros de então dizer que a culpa é das alterações climáticas e que vão tomar medidas em dois meses, construir um muro...Conheço a situação em Montemor. Os meus pais nasceram lá e eu até trabalhei lá uns tempos. Do que recordo de 2001, a obra do Mondego nunca foi terminada. Não é que esteja mal feita ou que não possa funcionar, mas já faltavam coisas em 2001, agora devem faltar mais, e a insuficiente manutenção só ajuda ao desastre. Seria sempre preciso remover as areias. O assoreamento do rio inicial, que era grande, manteve-se no novo leito. Ou seja, mesmo sem aumento das chuvas, sem a remoção de detritos, haveria sempre possibilidade de inundação. Deram às pessoas uma falsa segurança, já que o risco nunca desapareceu 100%, em caso de muita chuva a cheia seria uma certeza, nem que fosse de 100 em 100 anos.O Mondego seria sempre uma obra em curso, no sentido de que sempre seria preciso meter ali dinheiro. Como há dinheiro para tudo menos para o essencial, temos o resultado à vista.
Beatriz, faz-se alguma coisa, mas não o suficiente.Fazem-se remendos, é essa a minha impressão. E espera-se que o pior não aconteça.