Cinema da Dinamarca: A rainha de copas, de May el-Toukhy



"Sometimes what happens and what must never happen are the same thing." 

(Contém alguns spoilers)

Quem não conhece aquela fala de Hamlet, alusão à corrupção, à traição, ao incesto, à vingança e mortes que ocorriam no reino:"Algo vai mal no reino da Dinamarca"? Rainha de Copas, ou Dronningen, no original, simplesmente, A rainha, é um filme de May el-Toukhy, co-produção dinamarquesa e sueca. Quem anda por aí, quase em pé de guerra, a exigir mais mulheres a filmar, mais papéis femininos de relevo, encontrará neste filme a resposta às suas preces. Ou talvez não. Em tempos de #metoo que uma realizadora tenha tido a coragem de mostrar uma predadora sexual em acção pode não ser pacífico. Pode até ser entendido como uma traição.

Algures no norte escandinavo, vai desenrolar-se um drama familiar, entre a Dinamarca e a Suécia. O filme começa mostrando-nos uma mulher que, vestida com um longo casaco de inspiração militar, atravessa uma floresta, regressando a casa, após um passeio com o seu cão.

Era uma vez, ladeada por muitas árvores e um lago, uma bela casa de linhas modernas, quase um palácio aos olhos de muitos, um lar confortável e bem decorado. Aparentemente, uma família da classe média-alta vive ali como num conto de fadas: a mãe extremosa lê Alice no país das maravilhas às filhas gémeas na hora de dormir, a rotina familiar e profissional seguindo o seu curso normal, com sobressaltos controlados. Desde o início é bem claro quem é a poderosa naquele lar.  Um casal de meia idade convive entre festas de amigos e partilhas de responsabilidade parental mas está em rota de desapego emocional e físico, ainda que tão bem sucedidos profissionalmente, ela advogada de menores, ele médico. Neste  cantinho privilegiado da Europa suspeitamos cedo que algo menos bom está prestes a acontecer no seio da família aparentemente perfeita, desde  logo porque as  "rainhas" dos contos são nossas velhas conhecidas e logo desconfiamos das aparências.

Neste reino, vivem Annie, uma mulher que conquistou o êxito mas que guarda para si marcas de um passado menos feliz, - onde "o que aconteceu e o que nunca devia ter acontecido, foram uma e a mesma coisa" - mas também jovens, de ambos os sexos, no presente, relatam histórias de abuso sexual ou de maltrato. De igual forma, também um jovem difícil, Gustav, foi expulso de uma escola sueca e de casa da progenitora. Uma relação paternal foi há muito perdida e parece difícil de reatar. 

A Rainha de Copas tem uma realização segura, com aproveitamento magnífico do cenário e natureza. A bela fotografia e banda sonora compõem um ambiente ambíguo e inquietante. Existe uma tensão que percorre todo o filme e que foi bem trabalhada. Algumas cenas não parecem, no entanto, resultar, como uma em que Annie dança num jantar. É o momento em que a advogada  assume que pode fazer tudo, uma em que ela ensaia fazer uma má escolha: ser uma má anfitriã em vez de estar à altura da situação. E porquê? Porque pode. Escolhe assim enjeitar a responsabilidade que lhe cabia. Como voltará a fazer depois, mas com consequências muito mais desastrosas. Todavia, é uma cena idiota demais para ser levada a sério, mesmo que pensemos que está com os copos. Também gostaria que mais história pudesse ter sido filmada. Dão-nos as pistas mas isso é insuficiente. O que é mais importante não é a motivação para certos actos, são as consequências das más escolhas de Annie e observar até onde poderá  ir esta rainha para se auto-preservar. Já sabíamos que ela era uma sobrevivente. O filme promove o questionamento, mais do que as conclusões.

Destaca-se a interpretação soberba da actriz Trine Dyrholmque, que já vi noutros filmes, num papel exigente: prestável e charmosa,  Anne, não tem escrúpulos, e tal como a Rainha de Copas, de Alice, não tem contemplações. Esta mulher de meia idade, que tem o ar e a energia de uma Glenn Close em Atracção fatal, e algo do temperamento e segurança de Huppert, em Ela, seduz um menor, o seu enteado. Primeiro, usa-o sem comiseração. Gustav não passa de um brinquedo sexual, um garoto rebelde mas vulnerável, imaturo ainda, incapaz de lidar com tanta manipulação emocional, irremediavelmente caído na toca de uma loba. No momento em que ele se torna uma ameaça ao seu domínio e conforto, sendo confrontada com o seu erro, as suas palavras não são ordens para que lhe fosse cortada a cabeça, mas dá no mesmo.

Anne, na sua ânsia de libertação sexual ou em nome da juventude que ainda acha que possui e quer testada, ou de puro e simples exercício de conquista, ou porque julga que tudo pode e que escapará impune, perde o norte a quaisquer valores e códigos morais ou ética profissional, colocando em risco a sua carreira, a sua família, tudo aquilo para que parecia viver até então. Incapaz de assumir  a sua conduta, o que a destruiria, é com ferocidade que nega tudo. Hábil, dá a volta ao pai de Gustav, seu marido, que nunca foi oposição séria, também ele habituado a ser dominado. O médico toma o seu partido contra o rapaz, a parte mais fraca. E, previsivelmente, a rainha vence o jogo.

Mais uma vez, o que aconteceu e o que nunca devia ter acontecido, foram uma e a mesma coisa,  mas agora foi Anne a deter o poder. Nada podia correr bem, há muito que o sabíamos, mas o final é mais negro do que aquilo que se imagina. Não irei revelá-lo. Digo apenas que a rainha madrasta sobreviverá, deixando-nos, quando o filme termina, entregues ao espanto.

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