Desafio de escrita dos pássaros #4 - A Beatriz disse que não. E agora?

Corvo ( Corvus corax)

Dois levaram-na até à mesa quadrada e forçaram-na a sentar na cadeira. À sua frente, sentado noutra, o homem vendado sorria de boca fechada. O Outro, que não mais pararia de andar à volta deles como um cavalo num redondel, acercou-se dela pelas costas e, puxando-a pelo queixo com uma mão, penteou-lhe os cabelos para trás com os dedos da outra, quase carinhosamente.

- Sim ou não, Beatriz?

Silêncio.

- Arménio, continua.

O homem ergueu a mão direita acima da cabeça grande.

- Ouço dizerem que torturamos pessoas. Fico triste. Nós apenas as convencemos a dizer a verdade.

Beatriz estremeceu.

- Vamos. As duas mãos sobre a mesa. Dedos bem abertos. Olha, assim, como estrelas do mar. Já falámos disto antes.

Em Beatriz nem os olhos pestanejam.

- Vamos lá, Beatriz. Não me obrigues a usar de novo a força.

Beatriz cumpre. Levanta os braços que lhe pesam toneladas e deslisa-os sobre a superfície de madeira. Então o homem vendado baixa o seu braço sobre a mesa e um estrondo ecoa pela sala mal iluminada. Ela sentiu o choque entrar-lhe pelas mãos. Todos os ossos tremeram dentro de si. O coração queria fugir dela, fugir dali. De novo o impacto. Impossível gritar, respirar já doía que bastasse. Os nós dos dedos alteavam-se-lhe, mas as suas cabeças estavam coladas com medo à superfície da mesa marcada e suja. O enorme martelo imobilizara-se entre o indicador e o polegar.
Um breve alívio.

À pergunta de sempre Beatriz deu a resposta de sempre.

- Ouviste, Arménio? A Beatriz disse que não. E agora?

Arménio sorria como se nem estivesse ali. Limitava-se a erguer o braço telecomandado e a deixá-lo cair pesadamente na mesa, uma e outra vez.

Os Dois vieram buscá-la.

Beatriz sentou-se na cama a chorar. Soprou ar quente nos dedos feridos. Jamais voltaria a conseguir tocar piano como dantes. Adormeceu fetal, de mãos recolhidas nas axilas.

Uma mosca insistente batia na vidraça. O sol nascera. Beatriz culpou-a por ter despertado mais cedo para o horror. O insecto pousou na mesinha de cabeceira. Ela desferiu um golpe que sobretudo a magoou. Daí a pouco os Dois voltaram para levá-la à arena.

- Beatriz. Sou paciente, como já deves saber. É uma pergunta simples. O Arménio só está aqui para te ajudar a lembrar.

O braço no ar. Um baque seco. A lâmina do cutelo aterra bem longe da mão nervosa de Beatriz.



Tema da semana - A Beatriz disse que não. E agora?

Comentários

Valerie-Jael disse…
This is a very dramatic and rather scary story! Like a film noir! Hugs, Valerie
Sarin disse…
Também entraste na história em vários capítulos? Quero saber a continuação :)
E que maldade, torturares a Beatriz por dizer não... e a nós por não sabermos como ali foi parar, como irá dali sair! :))
Beijocas, Belinha, bom fim-de-semana.
Paulo disse…
Bravo: forte e intenso, como gosto.
Alexandra disse…
Arrepiante!!
silvioafonso disse…
O que eu acabo de ler me dá a certeza de ser uma
obra inacabada de uma grande escritora. Vamos publicar
esse livro, minha cara?
Beijos,
Ah, estou te seguindo, sim!
A M disse…
Gostei muito Belinha!
Beijinhos

Ana Mestre That's It
FatiaMor disse…
Duro! Diferente! Gostei!
Que medssss! Adorei. Estava a ler, a imaginar e a sentir o coração sufocar como o de Beatriz.
Ana de Deus disse…
muito bom <3
José da Xã disse…
Eu sabia, eu sabia porque deveria esperar.
Faz lembrsr Tarantino. Muito bom. Muito bom mesmo.
redonda disse…
E fiquei curiosa, porquê? e o que vai suceder depois? Está muito bem escrito e enquanto lia queria que alguém a salvasse