Cinema: Midsommar - O ritual




( Contém spoilers.)

Festivais do solstício. Sempre achei que tínhamos o melhor deles e agora que vi Midsommar, é claro que não troco o meu S. João, no Porto, por nenhuma “trip” à Suécia para celebrar o dia mais longo do ano e bendizer as dádivas que o Sol nos dá. Eis um lugar entre muitos na Europa onde os ritos imemoriais do solstício de Verão continuam a ser lembrados, embora sem traços de barbárie, os nossos conjugados com a religião cristã na celebração do S. João Baptista, que até era um tipo sério e metido consigo, não sei o que ele pensaria de tamanha folia. Momento único do calendário em que a noite é igual ao dia, a luz a desafiar as trevas, Portugal é de longe mais hospitaleiro que aquele fim do mundo onde a noite nunca chega, e onde o mal não tem onde se esconder: Harga, um território algures na Suécia ainda pagã do nosso tempo.

Nenhuma mistela alucinatória preparada com ervas e água da nascente num almofariz é melhor que um bom vinho, e eles que fiquem com as tortinhas - onde se esconde um pelo púbico especialmente enfeitiçado - incapazes que me parecem de superar qualquer travessa de sardinhas assadas e salada de pimentos. As coroas de flores na cabeça, que já vi no Porto a serem usadas por alguns turistas, espero que não acabem importadas e a substituir manjericos e ramos de cidreira. Em tempos mais recatados que os modernos, mas ainda próximos, no solstício portuense talvez não houvesse sexo numa cama de flores induzido ao som de um coro de mulheres nuas, mas haveria, sem dúvida, muito mais namorico do que hoje. Era noite de folguedo e de dar largas ao erotismo. Mas pelas ruas circula ainda uma energia estranha, magnética, que atrai as multidões, mas não de sortilégio, como em Midsommar. Não admira que depois do segundo filme de Ari Aster mais turistas voem para o Porto e não para a Suécia em Junho. Quem garante que regressarão de lá?

Evidentemente que estou a reinar. Para os suecos, a festa do solstício é fortemente comemorada: é a Midsommarafton. Realiza-se entre 20 e 26 de Junho. Contrariamente ao nosso S. João, do Porto, que faz as pessoas das redondezas confluírem para a Invicta, os seus habitantes abandonam as cidades e dirigem-se para o campo. Uma das suas características mais tradicionais, além da coroa de flores e folhas, são as danças em círculo, a imitar saltinhos de sapo, ao redor do majstången (mastro de Maio) , um mastro colocado no centro da aldeia. É, obviamente, um símbolo de fertilidade. As moças solteiras também constroem arranjos de sete ou nove flores de espécies diferentes e colocam-nos sob o travesseiro na esperança de sonhar com o futuro marido. A comida e a bebida fazem parte da festa, e também o bailarico.

Ainda não vi Hereditário, vi Midsommar porque a aclamação crítica daquele foi tão grande que, quando me convidaram para uma "noite de horror” aceitei, embora este não seja o tipo de cinema que prefiro. Dizia-se que o realizador tinha, então, reinventado o género. Agora que vi Midsommar penso que Ari Aster tem alento para criar ambientes mas que talvez, aqui, a história que nos conta não seja assim tão extraordinária. O filme é longo e por vezes desejei que chegasse ao fim mais depressa: depende do acumulo de impressões para nos saturar a mente e os sentidos e provocar a nossa repulsa. Não, não é para pular nas cadeiras. Quer provocar antes a nossa agonia através do choque. E começa com uma cena que nem parece pertencer ali, de morte, para nos sintonizar com o tipo de feridas que a protagonista tem de sarar. Mas, de forma excessiva, talvez até já a prenunciar a cena final, que vem lembrar o dito "curar mordida de cão com pelo do mesmo cão": o remédio para curar a dor que Dani sente em virtude da morte de entes queridos, seria provar de mais morte.

A pesquisa pelo folclore nórdico forneceu pano para mangas a Ari, e desde logo pano para as vestes brancas bordadas dos habitantes da comunidade de Harga, que são os anfitriões de alguns amigos americanos e ingleses, ali deliberadamente atraídos por nativos para serem candidatos a sacrifício. O ambiente recriado nos prados suecos – o filme foi filmado na Hungria – e num morro adequado ao suplício, é caprichado e transporta-nos, realmente, mais que para outro lugar, para outro tempo, sem sequer necessitarmos de ingerir cogumelos mágicos ou bebidas psicotrópicas, que são parte dos hábitos daqueles indivíduos, jovens e anciãos, homens e mulheres de cabelos entrançados, - até as trancinhas são entrançadas de malevolência. Mas, se, por exemplo, em The Witch ( que partilha com este o produtor) temos uma impecável reconstituição histórica a par de uma história muito mais matura e bem construída, aqui impera um certo absurdo que é uma interferência não exactamente benigna, e um certo tom de comicidade que preferia ausente.

Em ambos os filmes existe também uma protagonista notável. Dani (Florence Pugh) é outro dos trunfos de Misdommar no papel de uma jovem em luto e em luta contra a depressão, ora mal conseguindo conter as suas emoções, ora em choro compulsivo, que se apoia num namorado - que vive rodeado de amigos sem grande substância moral - um egoistazeco, algo patético, cujo fim vagamente ligado à taxidermia a gente nem chega a lamentar. Sem família, nem perspectivas de uma, acaba por adoptar aqueles ritos e ser adoptada, as suas dores, finalmente, sentidas por todos, as suas alegrias vividas por todos. Finalmente consegue apaziguar os seus fantasmas graças à intuição de Pelle, o amigo sedutor do namorado, que sabia bem mais do que parecia, quando os convida a presenciar algo único que só acontece na comunidade onde cresceu - eu disse "onde cresceu" e não onde nasceu deliberadamente - a cada 90 anos. A segunda presença notável no filme é a banda sonora. O filme trabalha a insustentável leveza do silêncio como forma de provocar o nosso desconforto. À partida Harga é um reduto campestre de tranquilidade idílica. Metade da mística e desconforto no filme surge da forma como o som se intromete naquele silêncio.

Não é, para mim, um filme inesquecível. Não tem material que se agarre a nós, - claro que tudo isso é muito relativo de medir - nem medos nem provocações sérias - como acontecia em The Witch, sim, já devem ter entendido, eu adorei esse filme. Talvez a ideia mais provocatória seja o facto da comunidade aceitar controlar a duração da vida humana, considerando a velhice um estado de indignidade. Resta o choque e isso é pouco, quanto a mim, para o tornar memorável. É, no entanto, interessante que Harga seja também, em si, uma entidade, a comunidade é o mal, não um monstro, ou uma pessoa. É a comunidade unida pelos seus rituais que é a força capaz de atrair e absorver os estranhos. Possui uma dualidade intrínseca, de paraíso, para os que lhe pertencem, temem, respeitam ou amam, e de inferno.

No nosso repositório de imagens do cinema, Midsommar contribuirá com algumas bem curiosas que remetem para o mundo natural. Outras dele ainda, mesmo que alterado psicadelicamente, demonstram o uso parcimonioso e eficaz dos efeitos especiais, algo que valorizo bastante.Também as pinturas que aparecem por todo o filme repletas de pistas, autênticos spoilers sobre o que vai acontecer, merecem um olhar mais atento, são bem interessantes, e por isso fui procurá-las na internet e aqui as deixo no link, algumas, e sua exploração. São da autoria de Ragnar Persson, em colaboração com o artista sueco Nille Svensson. Elas estão nas paredes e tectos de edifícios em Arga e até numa espécie de painel ao ar livre, relatando visualmente "uma história de amor", que se desenrolará à moda de Arga, claro.


I


Impossível assistir às cenas finais de Midsommar sem lembrar Nick Cave, Soundsuit (2015) ©Nick Cave.

Photo by James Prinz Photography. Courtesy of the artist and Jack Shainman Gallery, New York.









Sugestão de leitura:

An exclusive deep dive into Midsommar’s eerie paintings - para ler, aqui.


Comentários

Valerie-Jael disse…
I haven't heard of this film here. Midsummer is celebrated here in some places with dances and old traditions, and in England I often saw such celebrations. Thanks for sharing, hugs, Valerie
Paulo disse…
Excelente post.
Parabéns.
Bom domingo ;)
Beatriz Sousa disse…
Ahahaha essa do pelo na torta matou-me xD
Não conhecia este filme e verdade seja dita, sou medricas para ver filmes de terror. No entanto, vou tentar ver este hoje que agora fiquei curiosa.
Beijocas!