Cinema: A arte da defesa pessoal


Pertenço à geração que viu The karate kid nos cinemas. Entre nós o filme chama-se O momento da verdade. Era, no fundo, um filme sobre bullying mas em Portugal, à data, ninguém usaria o termo que infelizmente se popularizaria muitas décadas depois. Foi um enorme sucesso. De tal forma que originou três sequelas. Em 2010 vi, creio, a mais recente versão do filme com o meu sobrinho. Desta vez a história acontece na China e trata não de karate mas de kung fu. O argumento é semelhante ao primeiro mas o filme resultou inferior. Esta estratégia de espremer uma ideia vencedora até ela não ter mais suco para dar é o que mais acontece no cinema hollywoodesco mais comercial. Felizmente não faltam pequenos filmes que vão passando despercebidos e que apostam na insegurança da originalidade.


Vídeo da série (trailer, de que me recordo, muito deteriorado, e aqui, em boas condições. )

É claro que vi todos os episódios a preto e branco. Não havia TV a cores em Portugal. A acção de Lin Chung, o Justiceiro ou O rebelde de Liang Shan Po, decorre na China no século XII.  O tirânico Kao Chiu, comandante em chefe do exército imperial, persegue o respeitável oficial Lin Mate Chung. Lin foge para o deserto montanhoso e encontra os rebeldes de Liang Shang Po. Neles repousam as almas dos ex-combatentes da liberdade com poderes extraordinários. Juntos, o galante espadachim Hu San-Niang, o veloz Tai Sung, o forte Lu Ta e outros guerreiros com Lin entram nas batalhas contra o dominador exército imperial. Com cenas de luta elaboradas, bom guarda roupa, canções fantásticas, personagens inesquecíveis. O que mais poderia uma criança desejar da sua TV?

Ainda há pouco encontrei um kimono de karate perdido num armário. Era dos leves, o que significa que era de iniciantes. Se puderem comprovar, um kimono de um mestre, 100% algodão, é muito mais pesado. A minha irmã praticou a modalidade, chegou ao cinto verde e por vezes assisti a treinos e demonstrações. Nunca me senti atraída pela prática e se não fosse este facto nunca teria entrado num dojo. Gosto de ver artes marciais no cinema desde que me lembro.  Tudo começou em criança quando assistia religiosamente a uma série de TV: Lin Chung. Não é, pois, de admirar, que o filme com o Jesse Eisenberg que se chama A arte da defesa  pessoal tenha logo na minha mira. Era apontado como algo original. Vi-o há um par de semanas.

Eisenberg é Casey Davies, nome algo feminino de um contabilista introvertido, solitário e contraído. O homem já passou dos 30  e parece uma ratazana assustada, a sua casa, a sua toca, partilhada com um dachshund, uma TV e algum mobiliário esparso. Uma noite, quando vai comprar ração para o seu cãozinho,  o pobre homem  leva uma sova na rua que o leva ao hospital e fica, a partir daí,  transido de medo do escuro e dos homens: quem não ficaria? Procura então um meio de recuperar a antiga confiança, e obviamente, compra uma pistola. Mas o destino acaba por conduzi-lo até um dojo, onde assiste a uma aula. Na parede, num cartaz, podem-se ler algumas regras, sendo que, a última é: as armas são para os fracos. Os dados estão lançados e não vou contar-vos nem mais um pouco sobre a trama deste filme - e aconselho a que evitem ler na internet já que o efeito surpresa acrescentará pontos à sua visualização -  que umas vezes ostenta um tom de comédia, outras um de incursão no terror. É uma comédia negra sinistra. O filme gira em torno da cor negra e amarela, dos cinturões, presentes no poster. Não é o tradicional filme sobre a capacidade que o desporto tem de promover a sensação de pertença a um grupo e de melhorar a nossa auto-estima e, embora estas ideias estejam presentes, é como se estivéssemos a ver um karateca que passou para o lado negro da força a recrutar e treinar o seu exército. Apesar da comédia e da incursão pelo absurdo, que o espectador tem de aceitar como regra do jogo para não o rejeitar, o karaté enquanto modalidade aqui desvirtuada, não deixa de ser respeitado pelo filme.

Casey é um sujeito muito contido pelo que Jesse representa uma personagem muito mais calada do que as que lhe conheço, por exemplo em The hummingbird project . O contabilista vai transformar-se  graças à prática do karate embora não da forma virtuosa tradicional. É que este Sensei não é o senhor Miyagi do filme de 1984. Como irão ver ele é um monstro manipulador. O filme podia bem chamar-se A arte da manipulação. Tanto Eisenberg como Alessandro Nivola, que não me recordo de ter visto em algum filme, dão bem conta dos seus papéis. Ao observar o Sensei imaginamos que a mente daqueles  mentores de cultos que cativam e depois aprisionam as pessoas levando-as a cometer actos insanos, sobre si, e por vezes sobre outros, deve funcionar mais ou menos assim.

Davies que não era um indivíduo dotado para as artes marciais. O Sensei sabia-o perfeitamente, mas sabia também que ele iria sucumbir aos seus encantos e servir os seus desígnios. O  Sensei é um predador e Casey apenas mais uma vítima. No dojo ele vai  aprender a confrontar os outros quando isso era exactamente o oposto do seu carácter submisso. Parece, por largas cenas, que nunca irá conseguir. Ele luta para digerir o que está a acontecer ao mesmo tempo que se sente contagiado pela atmosfera e testosterona que impregna aquele dojo e cativado pelo espírito de superioridade e dominância que o Sensei lhe procura instilar. Inicialmente as suas vitórias apenas são possíveis junto de outros mais fracos que ele - um velhote que lê o jornal -  ou que não estão dispostos a oferecer resistência por tão pouco: os colegas de escritório. Para se sentir mais homem, é essa a campanha em curso naquele dojo, o Sensei sugere que Casey adopte um novo estilo de vida trocando os seus hobbies por outros mais masculinos, e, quando não o faz, o Sensei dá uma ajuda, nada ética, por sinal.

Neste mundo de homens, nada saudável, bem pelo contrário, absolutamente tóxico, onde os fracos idolatram os fortes e os fortes diminuem os fracos, também luta uma mulher, Anna. Se as mulheres não se sentirem afastadas deste título poderão encontrar aqui um filme quase feminista. Agora é moda logo escrutinar se um filme é machista ou feminista e isso logo suscita polémicas e aparta públicos. Por isso até é receosa que o escrevo. Alguns dirão que é machista. Pois eu digo que é feminista mesmo se o Sensei diz a Casey que nuna conseguirá fazer um homem de Anna.  Pois bem, a personagem que ficou a cargo de Imogen Poots é responsável pelo treino de crianças por deliberação evidente do Sensei que achou ideal porque ela é mulher. Isto é apenas um indício da sua misoginia. Ela possui uma personagem forte e sensível, é inteligente, e luta para sobreviver naquele dojo, taco a taco, com os outros, mesmo quando isso implica esconder a sua superioridade. Também Anna  irá ter espaço para mostrar quem é e o que vale ao longo do filme e, apesar de estar menos em foco, tem uma presença sempre significativa e uma evolução que nos vai deixar felizes, tanto homens como mulheres.

Casey procura ser aceite naquele círculo mais do que tudo e o Sensei alimenta o seu desejo, franquiando-lhe a entrada num "clube" secreto: o das aulas da noite. Por esta altura o filme passou a fazer-me lembrar outro filme: Fight Club. Também o protagonista deste era um homem que vivia praticamente em função do trabalho e só, e que somente fingindo-se doente terminal podia encontrar algum consolo para a sua vida vazia de sentido embora preenchida de bens materiais. Depois de conhecer Tyler, o vendedor de sabonetes, tudo vai mudar: este é quem aquele queria ser, corajoso e revolucionário, com a sua filosofia invulgar consegue cativar mais e mais seguidores para o seu Clube de Luta. As lutas faziam com que aqueles homens descobrissem o valor da fraternidade e se sentissem vivos e com valor através da violência e da dor que ela proporciona. Similarmente, Casey vai ao dojo e também conhece o Sensei, admirando e invejando a sua auto-confiança. Só que no Clube de Combate, como bem sabemos, Tyler e o narrador eram um só: o filme conta-nos a história de um homem em luta contra si mesmo, no limite perturbado mentalmente,  que inventa um amigo, uma outra personalidade. Se o final de Clube de Combate não é inteiramente claro, A arte da defesa pessoal apresenta um desenlace inequívoco e, sobretudo, esperançoso. E mais não digo para não estragar a vossa sessão de cinema.

Comentários

Paulo disse…
Recordei, em 86, uma série que passava no Canal 1: "Kung Fu".
Era tão gira.