Desafio de escrita dos pássaros #3 - Um momento marcante

Fonte  Rabirruivo preto (Phoenicurus ochruros)

2007. Estavam juntos há 453 dias, 2 horas e 34 minutos. Ela adormecera à sombra do guarda-sol, ele banhava-se de luz, os corpos a desenharem um ângulo recto. Os pés de Isabel descansavam sobre o azul dos calções de praia dele. José soerguera a cabeça ao assobio do nadador-salvador. O seu olhar encalhara nos pés morenos dela.

Uma nuvem tapa o sol e o ar arrefece. A sombra percorre vagarosamente o areal. O apito soa de novo. José ergue o tronco apoiando-se nos cotovelos. Um incauto que mergulha com a bandeira vermelha hasteada. Ajeita-se para se deixar ir ao encontro da toalha quando repara nela. Como é que nunca a tinha visto? O banhista sai das ondas de calções colados ao corpo e o nadador-salvador aproxima-se. José não os consegue ouvir e a sua atenção retorna ao pé de Isabel.

Até àquele momento imaginava-se capaz de navegar o corpo daquela mulher de olhos fechados. Num segundo, o pé direito de Isabel envolvera aquele final de tarde num mistério. Talvez um acidente em criança? Estranhava que ela nunca lhe tivesse contado. Uma queda? A sua pequena Isabel beneficiava-se do uso diário de sapatos arriscados que calçava com a leveza de uma bailarina e a segurança de uma modelo. Inicialmente, ao final do dia, descalça, ele admirara-se com o desnível do seu abraço. A altura ideal para escutar o teu coração, dizia ela.

Isabel, despertada pelo toque fresco do vento, a pele arrepiada e os pelos dos braços eriçados como o estorno das dunas, retira sem aviso os pés das pernas de José e senta-se na toalha desconsolada.

-Vamos embora?

José não queria sair da praia sem actualizar a sua carta de marear. A zona desconhecida que avistara, virgem, tinha de ser conquistada. Mas receava o melindre. Deveria ignorar aquela ilha? Se ao menos o nadador-salvador içasse uma bandeira sinalizadora para si! Arriscou, de supetão, a pergunta, apontando os 2cm de pele enrugada a meio do pé direito, do lado de fora, perto da palma.

- O quê?! - questionou Isabel, com espanto. - Isto? É da vacina do BCG.

- No pé?! - admirou-se ele.

- Sim! Um episódio muito marcante da minha curta vida de bebé! Alguém que não sabia o que fazia. Tive imensa febre. O pezinho ficou no dobro. Possivelmente um abcesso! É assim que tenho estes bracinhos lindos sem cicatrizes! Como é que nunca reparaste neles, José?!


Tema da semana - Uma aventura/momento que te tenha marcado

Comentários

Valerie-Jael disse…
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FatiaMor disse…
Pequena curiosidade: a minha mãe também levou a vacina no pé! Mas parece impossível que se repare na marca, e se ignore a perfeição dos braços.
Ana de Deus disse…
tenho marca de vacinas num pé e num braço.
abraço apertaduxo e bom fim-de-semana, querida :*
Valerie-Jael disse…
Love your story. Thanks for putting the app on your blog, it makes a huge difference. Ah, the wonders of technical progress and possibilities! Hugs, Valerie
Gostei da volta que deu ao tema. E ainda deu para rir. :)
José da Xã disse…
Pode parecer um pormenor, mas as damas têm sempre um olho viperino para este tipo de coisas. Os homens nem por isso.Mas achei piada e tive saudades da praia.
cantinhodacasa disse…
Desconhecia a vacina no pé.
Aprende-se umas coisas com este desafio.
Bom texto.
Miluem disse…
Olá Belinha Fernandes 💐🌷
Outra história muito boa! 🌻
As minhas vacinas são à moda antiga, nos braços.
Beijinhos 🏵️
A M disse…
Belinha, gostei muito.
Beijinhos e bom fim de semana.

Ana Mestre

Blog that's it
Paulo disse…
Excelente!
Parabéns por manter esta bela capacidade de escrever, cativando-nos.

Abraço,
P. do Insensato
Sarin disse…
Caramba, somos mesmo exigentes! os homens emudecem pela beleza do nosso corpo, e nós cobramos-lhes a falta do elogio.

Muito bons, Belinha, a história e o texto :)
Aahahah! Sarin, é uma maneira de ver as coisas. Mas existem outras. ;)
Estava o homem "concentrado" a mirar o pé da menina e a menina reclama porque ele nunca reparara nos braços. Claro que ele reparara, mas o que lhe tocava agora era aquele pé diferente em que nunca reparara. Mulheres!! Gostei!
Anónimo disse…
A arte de tornar grande o detalhe... Muito bem, Belinha!