A vida de um cão vale menos que a de uma formiga

Foto meramente ilustrativa Fonte

Ontem li uma postagem no Facebook sobre a morte de uma cadela. Não é, infelizmente, caso único: não faltam por lá relatos das maiores atrocidades cometidas contra animais indefesos, domésticos ou selvagens. Escrevo sem acreditar que alguém possa ler e ajudar a encontrar o selvagem que atacou uma cadela prenhe, apelo que foi feito. Duvido que alguém de Mora passe pelo meu blogue, aliás, duvido até que possam aparecer informações em Mora que conduzam à punição do criminoso. Esta é, assim, apenas uma tentativa de limpar a minha cabeça de mais esta injustiça.

A dona da cadela, uma jovem, escreveu o desabafo a desfazer-se em lágrimas e eu, ao ler, só me imaginava no lugar dela, se, por azar do destino, um dia a cadela me fugisse e a fosse encontrar jazente junto a uma pilha de lenha, no terreno contíguo ao da minha casa. É que se ela foge, nunca mais a apanho. Ando sempre com mil cuidados e mesmo assim, ladina que é, por vezes troca-me as voltas. (A cadela não é minha, é da minha irmã, mas eu tomo conta dela muitas vezes.) Uma vez aconteceu. Ia pelo passeio fora e sem perceber como, tropecei e caí. Foi de tal forma que fiquei com o meu queixo rente ao chão. No impacto a minha mão abriu-se e soltei a trela. Fiquei na pedra, em aflição, ao a vê-la afastar-se. A cadela nem se apercebia que estava solta, continuou a caminhar em linha recta, arrastando a trela.  Levantei-me e, com tal susto, só depois é que me apercebi de como estava dorida!  Chamei-a com firmeza e ela voltou.

Mora é uma bonita vila alentejana, onde, certamente há população amiga de animais e população que se se cruzar na rua com cães vadios, ou não,  é como se fossem invisíveis. Como noutros lugares, os animais ficarão eternamente a vadiar até se lhes verem as costelas sob a pele, sem que alguém se interesse muito com o seu destino. Talvez ali não existam tantas associações que zelem por eles como em zonas mais citadinas. Tenho também a leve desconfiança que talvez amem mais os touros do que os cães, mesmo sendo zona onde a caça também é tradição, sendo os cães "braço direito" destes homens. A memória do delicioso queijo de Évora, logo, a existência de ovelhas, faz pressupor, mais uma vez, a presença desse auxiliar guardador por aquelas paragens: o cão. Mas, a falar verdade, é uma realidade que não conheço, pois vou ao Alentejo quando o rei faz anos e as minhas amigas alentejanas há muito que o trocaram pela vida em Lisboa, e é lá que as visito. Mas a forma como os cães de trabalho e os cães de companhia são tratados e pesada a sua "utilidade" na opinião dos respectivos donos sempre foi - e será - um pouco diferente, embora a todos se deva igual dignidade. A fazer fé no que diz a dona amargurada, e outros testemunhos, parece que há quem ande a envenenar cães por ali há muito tempo, cada dia aparece um cão morto. Que razões motivarão este comportamento? Ataques de cães a galinheiros? Rivalidades entre caçadores? Receio pela segurança de pessoas e cães? Pura malvadez, que todos sabemos também existir nos seres humanos?

O que é certo é que o veterinário já afirmou que esta  cadelinha sofreu várias pancadas na cabeça que lhe ditaram a morte.  O pai terá deixado a janela da cozinha aberta: a cadela da filha escapou-se para o terreno, onde não existe uma vedação a separá-lo do terreno do vizinho. O sortilégio até pode ter acontecido à noite. O local, talvez isolado, não propício a que alguém tenha testemunhado a bárbara ocorrência. A GNR já disse que não fazia nada porque não há provas, mas mandou ir ao veterinário para averiguar a causa da morte pois só com o relatório poderá receber a queixa. A jovem desconfia de um velho e chega a nomeá-lo. Afinal ele já tinha ameaçado os seus cães e a cadela apareceu morta no seu terreno. Diz que ele é pai e avô, espanta-se deste homem nem assim demonstrar sentimentos pois foi capaz de matar uma cadela grávida à porrada, ouvi-la chorar e mesmo assim não parar. Se não haverá desculpa parece haver explicação para  a falta de senso: ela diz-nos que este velho infeliz e triste, sobretudo consigo mesmo, zangado com a vida, passa a vida a beber pelos cafés de Mora, onde isso é um quadro comum. "Não há nada de mais normal que isso", escreve. Ora, como sabemos, o álcool facilmente dilui os melhores sentimentos e anima os homens de loucuras que nem eles conseguem medir. Sob os seus efeitos, homens mataram homens, ao longo da história. Porque não cães? Interrogado esse homem, reunidas provas, negará? Se se sentir na obrigação de confessar, o que responderá? Que teria sido a bebida a causadora da barbárie, que não terá tido a noção do que fazia, que pensava tratar-se de um animal selvagem, que era de noite e que apenas se defendeu? Ou até que  a culpa foi de quem não prendeu a cadela e que assim a não protegeu devidamente, podendo até ter morrido atropelada? Será realmente um homem de má índole? Um a quem seria indiferente bater num cão ou num tarro?

A jovem interroga-se sobre o que levará uma pessoa fazer uma coisa assim, diz que nunca irá perceber. Para ela, os seus cães são como família e a morte deste animal é um crime. Uma cadela meiga, que decerto terá dado a pata ao seu agressor, diz. A quem passeava sempre pela trela por perto daquele terreno para não ter problemas. Desconfia que não haverá uma punição à espera deste velho, que a Justiça em Portugal mal serve as pessoas, quanto mais um cão cuja vida parece ter importado menos que a de uma formiga. Entretanto a solidariedade chega em forma de centenas de comentários, muitos emoticons chorosos e outros de enfurecimento. Muitas pessoas sugerem até que se faça justiça por mão própria, listam  sugestões de como essa justiça devia ser feita, olho por olho, que a lei que temos será inútil. A meio do rol aparece um comentário tresmalhado de alguém que podia ter deixado a sua militância para outras luas, soubesse ser mais empático:  "Choras o teu cão mas comes carne?"  Até onde li ninguém lhe deu troco. Está certo. O desprezo era o tratamento que se impunha porque já se adivinhava vão o esforço de tentar explicar ao vegano militante o que quer que fosse. Aquela jovem estava em sofrimento e, por muito que isso lhe pudesse parecer contraditório ou, quem sabe, ridículo, a dor era real e merecedora de mais respeito. E quem nos diz que ela não era, também, vegana? A indiferença é, aqui, a maior lição. Mas até eu fiquei a ferver e com vontade de lhe ir virtualmente ao focinho de garras afiadas. Mas não, não era o lugar, não era o momento. 

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