Uma carta aberta a Laurinda Alves sobre as "minorias de estimação"


Vale a pena ler a Carta Aberta, de Rita Alves, em resposta ao artigo que Laurinda Alves publicou no Observador a propósito do despacho, publicado no passado dia 16 de Agosto, que visa aplicar às escolas a lei da identidade de género aprovada no ano passado, e onde são previstas algumas medidas que visam “assegurar o respeito pela autonomia, privacidade e autodeterminação das crianças e jovens, que realizem transições sociais de identidade e expressão de género”. Entre elas figura a seguinte determinação: "As escolas devem garantir que a criança ou jovem, no exercício dos seus direitos, aceda às casas de banho e balneários, tendo sempre em consideração a sua vontade expressa e assegurando a sua intimidade e singularidade."

A meu ver, muitas das críticas feitas a qualquer medida neste âmbito das questões de género partem de pessoas que, mais do que adversas à abordagem dessas questões, se revelam liminarmente  incapazes de colocar na pele dos outros, o que se lê desde logo nas justificações que dão, as mais das vezes, mais mesquinhas do que realisticamente fundadas, e no seu exame, nunca facilitador do esclarecimento e sempre no sentido de acrescentar mais um espinho a um problema onde já se contam pelo menos dois. Por isso li e partilho a carta da Rita Alves com interesse já que é um assunto que poucos de nós conhece  - ou se presta a conhecer - "por dentro".

Não está em causa, como é evidente, um uso livre de espaços [casas de banho e balneários] por qualquer um/uma, mas sim a salvaguarda da privacidade e intimidade de crianças e jovens em situações muito particulares. O assunto já seria delicado e polémico sem confusões, mas há sempre que goste de confundir os outros - a tal página Viriato, no Facebook - mais um pouco e de provocar o alarmismo social. O Governo não obriga as escolas a deixarem que "um rapaz, de qualquer idade, que se identifique como rapariga, possa utilizar os balneários femininos mesmo tendo os órgãos sexuais masculinos" e vice-versa. O que é assegurado através do referido diploma é que um rapaz que se identifique como rapariga não seja obrigado/a a utilizar os balneários masculinos, ou que uma rapariga que se identifique como rapaz não seja obrigada/o a utilizar os balneários femininos.  Bastará que a escola garanta forma de crianças/jovens que o desejem possam utilizar a casa de banho e balneário (masculinos ou femininos) quando não estão a ser utilizados por outras crianças, cuja presença possa colocar em causa a sua "intimidade e singularidade". É o que se depreende a partir do disposto no diploma do Governo. Esta ou outras soluções serão equacionadas pelas escolas, se e quando necessário.

O despacho "é sobre os direitos dos alunos, independentemente do nível de ensino",  e destina-se a " proteger todos os jovens que, por algum motivo particular relacionado com questões de género, necessitem de ver a sua privacidade e segurança protegidas.” As medidas previstas "contemplam questões como o direito do uso do nome auto-atribuído [escolhido pela criança ou jovem em transição de identidade]" e o seu acompanhamento "por adultos formados para o efeito". No diploma estabelece-se também que as escolas devem identificar um responsável "a quem pode ser comunicada a situação de crianças e jovens que manifestem uma identidade ou expressão de género que não corresponde à identidade de género à nascença". O ministério refere a este respeito que todo o despacho aponta para "uma estreita articulação com as famílias, pelo que não se prevê qualquer obrigatoriedade de comunicação, mas sim a protecção dos alunos".

Sobre o artigo, publicado hoje no jornal Observador, a Mãe Rita Alves, apesar de não pertencer à AMPLOS,  pediu, pois, que a entidade publicasse a sua carta aberta a Laurinda Alves. O texto foi retirado da página do Facebook da AMPLOS, na íntegra.

Cara Laurinda Alves,

Já houve tempos em que achava graça ao que escrevia. Foram passando e hoje passaram de vez.
Explico já o que motiva a minha carta e o porquê de ser aberta. Assim, se quiser, pode pô-la já de parte. Chamo-me Rita e sou mãe da Leonor. A Leonor é transexual. Ela existe. É a minha filha, por muito que, para si, ela seja uma “minoria de estimação”, para si um mero trocadilho com “animal de estimação”.
A Laurinda Alves nem sonha, nem imagina o que vivem estas crianças e as suas famílias. Está tão longe do seu mundo de anjinhos e coisas fofas que, percebo bem, a sua única via é falar do que não sabe e discorrer sobre casas de banho nas escolas.
Não sabe o que é viver no corpo errado. Não sabe o que é ser mãe e ter um filho que logo aos três anos diz a chorar que não é menino, que não percebe porque insistimos em tratá-lo por menino. Não sabe que os punimos por isso, que os repreendemos e que rejeitamos. Porque nós, pais, tal como a Laurinda Alves, não sabíamos o que era. Para nós, tal como para si, o nosso querido filho era afinal o quê? Um deficiente? Uma aberração?
Aprender a amar é tão duro quanto isto. Voltar a amar aquele que rejeitámos. Sabe o que é o peso de nós, pais, termos contribuído para a rejeição?
E sabe como é ir para a escola? Onde os professores, coitados, têm de lidar com uma situação também para eles completamente nova e para a qual não têm qualquer formação? Sabe o que é ir ver as notas da sua filha e a pauta ter o nome em branco, como se não existisse, porque era, até agora, a única forma legal de não usar o nome que já não usávamos? Sabe o que é ter uma filha em pânico por não saber se pode ir a uma casa de banho, por ter de se despir em frente a outros? Sabe o que é tê-la no colo a chorar e a perguntar porque é que nasceu assim e angustiada por viver a solidão mais profunda? Não sabe nada disto. Não tem como saber porque não terá nenhum filho trans. Não viveu. Viveu apenas a vida da mãe dos filhos privilegiados que cabiam na norma da maioria.
E é tão confortável viver como a maioria. Até permite falar das “minorias de estimação “.
Ao contrário do que diz, havia e há legislação para as crianças deficientes e até houve uma escola onde a minha filha só encontrava privacidade na sala dos autistas. Digno, não é? Mas para si os autistas são uma minoria que vale a pena. A minha filha, para si, não merece a atenção do governo, que só peca por tardia.
Não vou descrever tudo pelo que a Leonor passou por olhares como o seu. É e será sempre um olhar cheio de preconceito e de certezas. Que sorte que tem! Os pais de uma criança trans nunca têm certeza nenhuma. Mas a senhora está cheia de certezas. Parabéns! Acredite que é mesmo uma felizarda.
Deixe-me, porém, dar eu umas opiniões sobre o que está a fazer. Como jornalista, ficava-lhe bem não embarcar nas primeiras notícias de um qualquer Viriato, que se especializa em propagar mensagens anti-Islão. Até lhe ficava bem fazer um elementar fact-check. Até já estava feito pelo Polígrafo, mas isso a si não interessou. Qual foi o método de trabalho? Viu na rede social, entre as fotos dos gatinhos e das mensagens com pôr-do-sol, e pensou: cá está. É sobre isto que escrevo amanhã. Não ouviu crianças trans, não ouviu pais, nem sequer ouviu os legisladores. A todos tratou como lixo. Dirá que este era um texto de opinião e não uma peça jornalística. Muito bem. Mas eu esperava mais de si.
Está a ecoar as vozes mais perigosas da sociedade portuguesa. Os que criticam a legislação sobre igualdade de género são os mesmos que defendem a não aceitação de refugiados ou a pena de morte. São os que lutam pela defesa da vida, mas só até ao nascimento. O direito à vida digna da minha filha não lhes interessa nem a eles nem à Laurinda Alves.
No seu caso, reconhecemos todos qual é a sua actividade principal. As causas solidárias nas revistas giras, a foto das férias na capa cor-de-rosa, as campanhas queriduchas, o livro de auto-ajuda que vende bem no supermercado, tudo isso lhe dá a consciência tranquila para olhar para si e pensar como é boa. E até lhe dá a legitimidade pública para chamar à minha filha minoria de estimação. Pois é, a minha filha talvez não encaixe bem nos padrões de silicone das suas revistas cor-de-rosa nem dos lacinhos das causas da lágrima de crocodilo. Mas encaixa na minha vida. E não tem de levar com o seu desprezo e com a sua ignorância.
Não a acuso nem culpo de nada. A Laurinda Alves não conhece o amor puro, o que se constrói na aceitação de uma norma que não é a nossa. O amor que nos questiona. A sua preocupação com a sua filha, se tem alguma, foi se o lacinho no dia da festa era azulinho ou laranja. A minha foi saber se havia humilhação em cada saída à rua.
Se a minha filha tivesse leucemia, talvez chorasse a sua lágrima e comesse o seu croquete solidário. Como é trans, tem de ser escondida e o estado tem de fazer de conta que ela não existe. É assim a espiritualidade e a humanidade das Laurindinhas.
Sabe o que me anima, Laurinda Alves? São os jovens. A felicidade da minha filha tem sido assegurada pelos amigos e amigas que a têm apoiado e ajudado, tantas vezes contra adultos que pensam como a Laurinda.
Parabéns por ter escrito. É a prova de tudo o que está por fazer.
Rezo por si. E sabe porque o faço? Porque a Laurinda, tal como a minha filha, não é para mim uma aberração, mas alguém perturbado e que precisa de apoio.

Rita Alves

Para leitura complementar:

Governo obriga escolas a deixarem as crianças "escolher a casa de banho e o balneário de acordo com o seu 'género'"? - O  Polígrafo esclarece

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