Só estou bem aonde não estou




Tenho pressa de sair
Quero sentir ao chegar
Vontade de partir
P'ra outro lugar

António Variações

Tardei em conseguir ir à praia este Verão. Já estava até com saudades dos banhistas insatisfeitos que sempre encontro. Não sei se é um efeito colateral do calor, mas para algumas pessoas tudo parece estar sempre mal, mesmo quando podia estar bem. Algumas dessas almas fazem sofridas contas à vida para conseguir comprar um pacote de férias na praia dos seus sonhos, outras, promessas e juras a todos os santos para que haja sol, pouco ou nenhum vento, e a água esteja temperada, limpa de salmonelas e  medusas, e, importante, muito importante, que o Wi-Fi seja forte. Mas assim que chega o ansiado momento e botam o pé na areia, em vez de desfrutar a pausa na rotina, o banho de Natureza, dão  imediatamente início a uma espécie de rabugice de Verão, que até seria mais própria de crianças embirrentas que de adultos bem encorpados.

Já todos os que somos banhistas presenciámos irritações assim. A existência de areia na toalha é sempre um problema, que fazem por tornar também dos outros, daqueles que, bem instalados na cadeira ou na toalha, os ouvem, ao redor, como se uma praia não se caracterizasse pela abundância desse granulado instável. Ah, as crianças. Essas até na toalha de praia  fazem castelos na areia como grandes arquitectos. Ora, não podiam os adultos ser mais como as crianças? Apetece sugerir-lhes que zarpem dali para fora e rumem antes à praia do Belinho, de seixos roliços. Em segundo lugar,  a 8ª maravilha que é entrar de férias e aceder à dimensão onde o tempo  não importa e se pode deixar sempre o relógio em casa era uma beleza não fosse aquele 8º pecado capital: a pressa. A pressa nunca tira férias. Só assim se entende o stress absurdo na hora de utilização dos chuveiros de praia, de sair do estacionamento ainda apinhado, de ir ao multibanco levantar dinheiro para pagar o petisco na esplanada, etc.

Uma semana antes da partida alguns desses adultos estavam sentados na cadeira giratória do escritório, olhos no calendário e em contagem mental decrescente  para as férias de Verão. Até já se imaginavam a beber umas cervejas e a comer marisco na esplanada. Agora que estão lá  recusam partir a casca do marisco com o martelo porque se sujam  todos e não trouxeram assim tanta roupa consigo. Passam no mercado local à procura de fruta para a sobremesa, a melancia em que sonhavam afogar a sede, mas não, que afinal tem demasiadas sementes e daquela sem sementes não há ali. Batem saudades do hipermercado! Aah, mas pode lá ser, que fim do mundo é este? Por outro lado, melhor assim, pois a melancia faz inchar a barriga e redonda já ela está!

Por falar em barriga, pode até estar bem redonda, mas já está vazia e a dar horas. O vendedor de bolas de Berlim, na praia, passara a meio da tarde, mas foi logo corrido a exclamações de "é frito, não posso que me faz aftas",  ou "é sempre tão indigesto", ou "ainda se fosse um copo de melancia cortadinha. Ou um granizado de melancia...Gente ultrapassada sem ideias de negócio. Se fosse eu já estava aqui a ganhar bom dinheiro com propostas saudáveis".  Meia hora depois, fora o vendedor de gelados que apareceu de branco. De imediato foi assediado: "Venha cá, psst! Pssst!, ó senhor"! A guardar o troco, os gelados a derreter ao sol, mas nem assim se calam com as contas às calorias. Mais uma vez, será que não podiam ser mais como as crianças que ignoram o que sejam as calorias e toda a contagem que não se possa fazer pelos dedos de uma mão ou duas? O vendedor garante num leve sorriso que aquele Solero de Morango só tem 49 calorias. Mas ainda o gelado não baixou até ao estômago e as banhistas já se sentem mais gordas na barriga da perna. E os adoçantes dos gelados light ? Um autêntico veneno?! O vendedor segue calando revelações amargas sobre conservantes, corantes, emulsionantes e adoçantes com um pregão, assim lhes poupando mais um drama.

Quando fizeram as malas meteram  lá dentro todos os livros que não leram num ano, mas querem lê-los em 10 dias de férias, que dois são para as viagens. Só que no final do almoço, à primeira tentativa de leitura na cama do hotel, o livro adormeceu em cima da cara deles. O culpado disso é o calor que se faz sentir no Verão, esse inesperado problema, quem diria que faz calor no Verão. Como é que alguém consegue ler com tamanha caloraça?  O ar condicionado não se pode ligar pois resseca os olhos e faz exacerbar a asma do miúdo. Nada a fazer. "Raios, que viemos tão carregados para nada! Bem que podia cair uma chuva agora: sempre refrescava!"

Qualquer sonho de uma noite de verão pode transformar-se em pesadelo, já sabemos, por exemplo,  um  jantar na varanda do apartamento arrendado especificamente com vista de mar. O sol a descer no horizonte multicolorido enquanto tilintam talheres  e se brinda no ar com vinho verde, seria idílico não fossem os mosquitos. É que não se aguenta o cheiro da citronela.  A meio da noite a comichão nas picadas impede-os de dormir e de  segurar um livro com as duas mãos. Mas se não fosse isso seria outra coisa qualquer: os livros não serão lidos, também têm direito a viajar já que todos viajamos neles, ora. E na televisão que é tudo dublado. "Dios mio! Quanto tempo falta para irmos embora?"

Alguns apostam num programa de pegada mais verde, caseirinho, nada de altos vôos. Para isso compraram uma nova mala térmica, um par de cadeiras e uma mesa de plástico, um set de pratos, copos e talheres de plástico colorido, tudo coisas leves de carregar, batida que foi a nostalgia de piqueniques no pinhal. Parecia tudo tão ideal na foto do catálogo da grande superfície que deixaram na caixa de correio ignorando o "Publicidade, aqui não!" Mas quando chegaram ao destino o pinhal tinha ardido por completo e não havia sombra alguma. E sorte tiveram em não ser multados porque a zona até tinha sido interditada: "E ninguém nos avisou disto: é o país que temos". Podiam ter oferecido um roteiro das zonas queimadas na aquisição da mala térmica, lá isso podiam. Rumam ao parque de merendas, mas também ardeu. Então rumam ao parque urbano, nas saias da cidade, e logo ficam horrorizados com a meia dúzia de excursões de fim de semana que, chegadas sabe-se lá de que região remota de Portugal, invadiram o recinto verde com a sua profusão de coloridas malas térmicas: "Vão encher isto de lixo, tu vais ver a estrumeira!" Pois. "E já viste quanta formiga?"

Anda um par de jovens descalços a saltar os repuxos dos aspersores do parque entre risos e gritinhos histéricos, tantas as cócegas que a relva faz: ai que barulhentos. Mas de onde é que terá vindo tanta gente? "O que é que estão aqui a fazer estas famílias? " E há crianças de pés de molho, a chapinhar no espelho de água, alegremente: ai uma verdadeira falta de civilidade, estes pais modernos não sabem dar educação. É um lago não é uma banheira. "Água! Água é diversão!," vem um moço pregando e gingando enquanto distribui um folheto do aqua-parque e piscina de água com ondas ali próximos: " Campanha de descontos em curso, senhores e senhoras. Poupar é ganhar."  Mas estes são dos que reviram os olhos ao cloro para não falar da repulsa ao mijo alheio, não, não, é melhor não, obrigada. "Para o ano temos mesmo de marcar uma semana na praia, não achas? Qualquer lugar longe daqui."

Carregando a mala térmica, fazem-se ao carro e estacionam numa berma de estrada, sob enormes eucalíptos, onde devoram o frango churrascado picante e engolem a batata Pala-Pala a trote de Coca-cola, enquanto se entretêm a contar os carros que passam, ele os pretos, ela os brancos. Quem somar mais carros não ganha nada neste verão a preto e branco. Para terminar, e após curta viagem, assentam arraiais na primeira esplanada de um café que surge na sua mão. Mas os lugares à sombra dos pára-sóis estão ocupadíssimos. O sol a ferver na cabeça pede um chapéu de palma mas ficam bem é a decorar o interior da viatura, sob o vidro traseiro. Ai, este calor todo que nos deixa abaixo sem dó: "A minha tensão arterial já deve estar...". O empregado tarda e já se sentem a desmaiar. Receiam uma insolação. Tão bem que se estava agora no fresquinho da sua casinha. "E se fôssemos tomar um Nespresso a casa? Afinal já se vê daqui o nosso rico telhado".


Comentários

:D Muito bem descrito, Belinha, que situações bem apanhadas!
Felizmente, já me livrei disso. Nem sei as horas, nem sei que dia é !... O único horário é evitar fins de semana e só ir à praia à hora de almoço (fica deserta pelas 12.30) ou ao pôr do sol.
Mas acho que 'tugas na praia' é um espectáculo deprimente que só acontece neste Verão lusitano.
Adorei esta publicação, retrata perfeitamente várias pessoas neste verão (e noutros também).
Ao ler o teu post lembrei-me desta musica dos deolinda

https://www.youtube.com/watch?v=7rNP87OYcho

Tal e qual!

PS: SObre os livros digitais, prefiro em papel. Ter aquela luz a cansar os olhos não dá. Ler, é em papel :)))
Konigvs disse…
Voltou inspirada!! Está muito bom!
Por alguma coisa se diz que é nas férias que disparam os divórcios! e certamente férias no querido mês de Agosto!