Amor e filmes: não procures o que não existe!


"I'll have what she's having" é, provavelmente, uma das falas mais conhecidas pelos cinéfilos da minha geração. Em 1989 todos fomos ao cinema ver a comédia romântica When Harry met Sally- Um amor inevitavel. Após uma boleia e um encontro, o par reencontra-se passados anos e somados relacionamentos falhados, e dá início a uma amizade que se acaba por transformar em algo mais, mesmo se ambos estão desapontados com os seus respectivos passados de falhanços amorosos e relutantes em estragar o seu conhecimento de longa data com um envolvimento romântico.  Custa a acreditar que já se passaram 30 anos sobre a estreia desta comédia. As suas estrelas, Billy Crystal e Meg Ryan, reuniram-se para festejar o aniversário do filme que fez história e inovou o género, amado por uns e desprezado por muitos: a comédia romântica.

Este é o cartaz de Plus one, uma comédia romântica acabada de estrear. Sim, é verdade. Elas ainda andam aí. O rapaz do poster é filho da Meg Ryan, essa mesmo, que há 30 anos interpretou a Sally ao lado de Billy Crystal. O pai de Jack Quaid é o actor Dennis Quaid, que vi em mais filmes do que Meg: The right stuff ou The big easy, são os que mais rapidamente me ocorrem. Desconhecia completamente que os dois tivessem sido casados. É típico. Não ligo nadinha aos que os actores fazem ou desfazem fora dos ecrãs. Aliás, se fosse a concursos de TV do género Perguntas e Respostas na Ponta da Língua, e me saísse a pergunta "Com quem é que Meg Ryan é casada", responderia, "Com Billy Crystal", evidentemente. Tal é o poder das "rom-com".

A comédia romântica é, indubitavelmente, um tipo de filme que perdurou agarrado a certas fórmulas, aliás, como tantos outros e as estafou até ao limite. Há muito que todos as prenunciavam ameaçadas de extinção como os musicais que outrora encantaram audiências. Nos últimos anos quase desapareceram das salas. Em 30 anos mudou muita coisa no cinema e na vida real. Os novos tempos não lhes foram favoráveis. Por exemplo, as feministas há muito que apontaram o dedo à forma sexista e estereotipada das "rom coms". O #meetoo pode ter sido voz definitiva neste assunto. A própria ideia, muito divulgada, de que se trata de filmes feitos para mulheres passou a ser totalmente incómoda, já que, afinal, as protagonistas destes filmes não revelam grandes ambições: a sua grande cruzada é sempre encontrar o homem ideal e dura 100 minutos de atribulações, findos os quais: bingo! A maioria das "chick flicks" celebra o homem como o grande conquistador e a mulher como a criatura que bendiz a hora em que foi encontrada pelo seu príncipe. Parece, pois, que as "rom com"  propagam esta ideia redutora de que uma mulher sem um homem ao lado só pode estar miserável. Se por acaso a mulher estiver solteira e feliz é apenas porque o filme não é uma "rom com". Se for uma "rom-com" ela então estará doente e precisada de tratamento urgente.

Por outro lado, lê-se com frequência que, de geração em geração, parece haver menos receptividade ao casamento, acontecimento clímax de muitas "rom-com": o casamento parece ser um objectivo menos desejado hoje do que há 30 anos, e tende a ser relegado para mais tarde no rol das prioridades. As jovens mulheres do Ocidente crescem com a liberdade de acreditar que são capazes de viver sozinhas e de prosseguir a sua independência emocional e material; por outro lado, ambos os sexos se sentem confortáveis em dilatar no tempo a chegada de responsabilidades familiares. As relações outrora longas são hoje encurtadas. Se em tempos passados os casais se esforçavam muitíssimo para reparar danos no seu relacionamento ou se mantinham as aparências de felicidade conjugal, em nome do status, ou da família, ou da religião, hoje o divórcio é visto não tanto como o mal menor mas a solução, e aceite com menos estigma do que então. As normas tradicionais mudaram radicalmente e surgiram novas formas de vida e de família: muitos mais casais passaram a coabitar sem formalizar qualquer vínculo, a união de facto ganhou maior substância legal,  e as famílias deixaram de ser somente heteronormativas. Surgiu a pratica de relacionamentos abertos e até se tolera o poliamor, essa coisa louca que contempla uniões a três. Não se pode negar que também a internet e as redes sociais tiveram um impacto nas práticas românticas de  sedução, no namoro e mesmo no sexo casual desafiando algumas normas sociais e até morais, que orientam a interação humana, quanto mais não seja pela simples introdução de uma velocidade e facilidade na forma como conhecemos e interagimos com os outros. E na forma como terminamos os nossos contactos também. Tudo isso e mais faz com que, para muitos, o dia mais feliz da sua vida tenha há muito deixado de ser o dia da boda. Talvez o enorme sucesso de muitas comédias dos anos 90 que culminam invariavelmente em casamentos felizes já não fosse hoje possível.

E eis que estreia  Plus one. Dois amigos, Ben e Alice, estão solteiros e têm pela frente um Verão de casamentos. Ela, sem acompanhante porque a relação que tinha fora terminada, ele, porque termina todas as relações por não encontrar a mulher ideal. Juntam-se para tamanha empreitada e assim evitar terem de ficar na temível "mesa dos solteiros". Não me vou alongar em explicações mas creio que já adivinharam o final. Mesmo  não gostando particularmente do género, que quase sempre me decepcionava, sempre vi bastantes comédias e persisto na procura daquela nova "When Harry met Sally" ou "Annie Hall". Sou como o protagonista de Plus One, Ben, que vê todos casarem ao seu redor, enquanto ele continua sozinho e à procura da namorada perfeita.

Para mim, ainda mais que a história do "amor romântico", uma ficção que já não devia iludir ninguém, é a  previsibilidade da maioria dos argumentos que me enfada. Qualquer um de nós, após assistir a duas ou três, já se sente capaz de escrever um argumento similar. Tudo começa quando A encontra B numa circunstância mais ou menos caricata ou então até banal. Podem ser dois estranhos ou serem amigos há muito sem contacto. À primeira vista, A e B não se acham mutuamente particularmente interessantes e podem até passar parte do filme a desdenharem das qualidades e habilidades um do outro ou a exacerbarem os seus defeitos e falhas. (São sempre invulgarmente atraentes, porque os pobres estafermos nunca querem ser actores. Isto é um aparte, parvo, mas verdadeiro.) Ocorrem então peripécias várias, que invariavelmente significam o afastamento e aproximação de A e B. Aqui pode haver concurso dos respectivos familiares ou amigos. Inevitavelmente, A e B descobrem no decurso do tempo que são únicos e excepcionais. Pode ser enquanto olham para a Lua ou atam os sapatos ou ficam fechados no elevador. Qualquer momento dá desde que o guião assim o estipule. Por magia do amor todas as falhas e defeitos, que antes julgavam ver no respectivo outro, são esquecidas num abrir e fechar de olhos: a verdade esmagadora é que não conseguem viver um sem o outro. Por vezes o filme acaba logo aqui com casamento e filhos feitos aos pontapés na barriga da mãe, e tudo. ( É amor instantâneo, provado e comprovado, para toda a vida. Nunca fazem sequelas, por exemplo, Quatro divórcios e uma separação de bens, poderia ser um título giro. Outro aparte parvo, mas verdadeiro.) Mas também pode acontecer que A ou B se arrependam de ter sucumbido às graças do Cupido e um deles decida ir à sua vida, para dormir sobre o assunto por um tempo, deixando um dos protagonistas a sentir-se miserável com a sua sorte e sem vontade sequer de bater punhetas. Ou, então, não, e vemos uma descida aos infernos do dating numa busca por novo amor romântico capaz de sanar a ferida. Então acontecem peripécias destinadas a fazer o A ou B que deu à sola perceber que está a ser idiota e que não pode mandar às urtigas aquele amor ideal que aconteceu de forma extraordinária e, quem sabe, irrepetível, na sua vida. Ela/ele é o TAL. A e B reencontram-se, claro. Umas vezes o reencontro acontece de forma ridiculamente simples, outras obedece a umas boas curvas e contracurvas do argumento, mas, por mais sinuoso o caminho, há perdão, juras de amor eterno e reunião, e então o filme acaba numa tradicional aura de "cinderelidade". The end.


Inicialmente, até, pelo menos ao séc. XII, o conceito do casamento, em si mesmo, não envolvia amor algum, e muito menos o amor romântico, ou amor-paixão, visto como uma coisa diabólica e  incontrolável, capaz de criar instabilidade. Servia para procriar ou era um negócio. O amor ligado a paixão estava destinado ao plano de relações ilícitas fora do casamento. Nada de mais indesejável quando o casamento era entendido como uma instituição económica e social bem séria,  destinada a fortalecer influências familiares, mediante aumento de poder e dinheiro, ou até a pacificar territórios, pelo menos nas classes aristocratas e nobres. Foi usado na Europa medieval como modo de formar e manter alianças políticas e militares. Nem sempre a táctica corria a contento. No séc. XIV, Portugal e Castela entraram em guerra porque Afonso XI não ligava nadinha à mulher,  D. Maria de Portugal, nem a Pedro, seu filho com ela,  preferindo a amante e bastardos. Quando ele morreu, D. Maria mandou matá-la.

As aventuras e desventuras de personagens totalmente romantizados, cujo quotidiano não era marcado por nada mais que pensamentos e efeitos de uma enorme paixão, enlevos e sofrimentos, exaltações e achaques românticos,  encheram páginas de livros no período do Romantismo: neles há, via de regra, uma idealização da mulher amada, tida quase como um objecto de desejo perfeito e inatingível. Foi assim no séc. XIX, uma epidemia monumental do sentimento e das emoções.  Mas o mito do amor romântico enquistou-se na sociedade Ocidental de uma forma doentia a partir do séc. XX, veiculado pela cultura pop, sobretudo em filmes e canções delico-doces.

As comédias românticas reinaram nos anos 40-50, e na minha adolescência vi a maioria desses filmes clássicos na TV: It happened one night, Roman Holiday, The Phildaelphia Story, Adam's rib, Some like it hot, The lady Eve, His girl Friday, The apartment. Os actores e actrizes tinham todos imenso estilo e elegância. Adorava o guarda-roupa, claro. Além disso, alguns dos argumentos eram bons exercícios de diálogo, quase sempre uma batalha onde a linguagem era usada quase como uma arma. Era outra época e isso também era um ponto a favor. As personagens femininas eram determinadas e carismáticas e ambas, femininas e masculinas se equivaliam, e iam à luta, em termos iguais. Nos anos 80, já nas salas de cinema, vi Kathleen Turner e Michael Douglas, fazerem um par romântico dentro desta lógica no filme de aventuras Romancing the stone. Os anos 90 foram férteis em comédias: As good as it gets, Groundhog Day, For Weddings and a funeral, French kiss. Talvez tenham entrado em declínio partir do ano 2000, com péssimos argumentos e o progressivo afastamento -por envelhecimento ou desinteresse? - das estrelas que tinham alimentado esse universo sem que surgissem substitutos/as.

Qualquer outro tipo de amor é ainda, para alguns, suspeito de não preencher os requisitos mínimos de garante da felicidade mas sabemos hoje que a paixão é um fenómeno neuroquímico, uma resposta do nosso corpo à atracção por alguém. Sim, sim. O chão pode até parecer fugir-nos sob os pés, podemos até bailar como borboletas em volta do nosso jacinto, o que queiram. Infelizmente esse estado de graça é temporário. São as hormonas, estúpido. O amor romântico não dura para sempre, não é maior que a morte, um fenómeno ao jeito dos amores lendários de Tristão e Isolda, uma paixão tal que até na morte deu fruto -  na campa dos amantes infelizes foram plantadas uma roseira e uma videira que depois cresceram entrelaçadas.  O amor-paixão não é mais aquela coisa inexplicável, provocada por deuses, mormente o tal Cupido. Nem sequer é capaz de gerar uma cumplicidade perfeita.  Mas sob o filtro rosa do mito romântico tudo fica perfeito: os vícios são menorizados, as virtudes são exageradas. É assim que as comédias românticas funcionam: distorcendo a realidade. Na vida real a perfeição não existe. Será difícil que alguém possa garantir a nossa felicidade de acordo com um formato ideal. Ninguém tem super-poderes. Culpamo-nos então por termos falhado na nossa escolha; culpamos esse alguém por não servir no molde que lhe fizemos mas nunca culpamos o legado medieval que vem sendo cultivado ao longo de séculos pela cultura popular aprisionando-nos na sua lenda. É apenas um conto de fadas e nós já não somos crianças. O mito do amor romântico não pode mais servir de referência a produções cinematográficas e muito menos ao filme da nossa vida. 

Em pleno séc. XXI tudo mudou. A tradição, o formalismo, as regras, foram substituídas pelo novo, pela liberdade, pela flexibilidade. À conta de tanta novidade a deriva emocional é também muita: não falta quem neste mundo de liberdade e possibilidades se sinta hoje mais incompleto e perdido que uma heroina romântica no séc. XIX! Era importante que os argumentistas da comédia romântica começassem a ajudar as pessoas a refletir sobre a mudança através das suas histórias em vez de persistirem na fidelidade a velhas fórmulas que nada podem transmitir a toda uma geração que já não se pode rever nelas. Basta observar o que sucede em alguns dos filmes que mais gente atrai aos cinemas nos últimos anos: são os filmes de super-heróis. Onde é que está o romance? Não está. Nos livros dos maiores escritores contemporâneos não há, também, qualquer traço de sentimentalismo exacerbado, em sintonia com os sinais dos tempos. Há que dizer, todavia, que algumas "rom-coms" , em especial na chamada zona indie, têm desafiado as convenções da comédia romântica e explorado novas perspectivas. O Netflix também tem apresentado propostas que misturam amor, drama e humor e que tentam evitar os clichés dass "rom-com" tradicionais. Estão a tentar fazer com que nos apaixonemos de novo por este género que se tornou tão mal amado. Mesmo assim, ainda não encontrei nenhuma ideal o suficiente para conseguir entrar no meu "Top dos melhores filmes ". Talvez eu seja como o Ben, de Plus One, sempre a mudar de namorada porque todas têm defeitos: tal como ele, ando à procura de algo que não existe.



Comentários

Beatriz Sousa disse…
Eu acho que hoje em dia as comédias românticas são sempre a mesma coisa, não há inovação xD
R: Sim!!! Eu lembro-me de falarem sobre as barragem no telejornal! Apesar de haver uma convenção não me admirava nada que eles um dia se precisassem de água fechassem. Este livro vale mesmo a pena, muita gente ficou desiludida com o fim, mas sinceramente ele fez-me pensar tanto que não pude não lhe dar 5 estrelas.
Sim!! Boa ideia. Vou fazer a explicar como uso e que sites é que uso e tudo mais.
Beijinhos!!