Dizer palavrões faz bem, porra!

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No livro A cidade dos prodígios, de Eduardo Mendoza, havia um ministro que era muito livre e criativo no falar. No entender dos delegados que o consultavam, achando-o sempre ocupado, bem que podia não desperdiçar tempo precioso a dizer graças como «estar com as horas coladas ao cu» (por estar muito apertado de tempo), «andar com a pila de fora» (por estar assoberbado de trabalho), «andar a largar ou a cagar leites» (por ir a toda a velocidade), «São Foda-se calhou a uma segunda-feira» (com o que se convidava a ter paciência), «arriar as cuecas a peidos» (de sentido duvidoso), «Até à ceifa do pepino!» (quando se pretendia despedir.) Ora, se os delegados eram simpáticos e diziam que o ministro soltava "graças", já muitos de nós podem até achar que o emprego de tais expressões configura um carácter no mínimo deselegante. E se fosse uma ministra? Seria essa sua escolha de palavras considerada ainda mais deselegante? Praguejar ou usar calão parece ser considerado um atributo não feminino e nem sequer se trata de uma invenção feminista recente. Alguém andou a fazer estudos e estudinhos para tirar esta conclusão e Emma Byrne, autora do livro Dizer palavrões faz bem, diz que é verdade: também no acto de dizer palavrões as mulheres são discriminadas. Ora, isso não interessaria muito não fosse o caso de ela defender que o palavrão faz bem. Se assim é, basta. Quero ter o direito a dizer palavrões em igualdade de circunstância com os homens.☺

Emma, a investigadora - autora, defende o uso do calão e do praguejar baseando-se na sua  investigação científica em áreas como a neurociência, a antropologia, a psicologia e a sociologia. Diz que o palavrão pode contribuir para reduzir o stress, para consolidar o trabalho de equipa e amizades e até para ajudar a lidar com a dor ou evitar o recurso à violência física: esta pode ser sublimada pelo poder de um palavrão proferido com gana e no tempo certo.  Um dia destes vamos assistir à chegada de mais um franchising: os "palavrásios". Estes serão locais onde o pessoal poderá ir treinar o palavrão para se libertar do stress.

Hoje até as crianças já nascem ensinadas no uso do palavrão. Mas eu não fui uma criança precoce e demorei a aprender o efeito catártico do palavrão. Eu ainda não tinha 6 anos e o meu pai trilhava-me os dedos com as portas com frequência. Aconteceu duas ou três vezes, era demasiado: achava eu que tais incidentes nunca deviam acontecer, não aconteceram a mais ninguém meu conhecido. Sempre que ele fechava uma porta a minha mão estava apoiada algures no ponto errado no momento errado e eu desatava num berreiro de dor. Daí a semanas uma unha caía do dedo mártir. Esta perseguição maléfica das portas aos meu pequenos dedos e unhas marcou a minha infância. Quando passei a dominar o palavrão o meu pai já não me trilhava os dedos nas portas. Ainda assim duvido que um "foda-se"  tivesse tido melhor efeito do que a água fria a correr no dedo pulsante de dor ou o gelo embrulhado num pano turco com que a minha mãe acorria à filha lavada em lágrimas. Mas a Emma diz que não tenho razão: parece que o palavrão é um eficaz analgésico.Nem sei porque é que continuamos a comprar paracetamol à dúzia: afinal um par de "foda-se" resolvia a dor de garganta. Ou, pelo menos atenuaria a dita ou dar-nos ia coragem para a suportar. Mas o palavrão não criará habituação? Sim, é verdade: cria habituação se for usado sem parcimónia e assim se reduz o potencial farmacológico do dito. E será que o seu uso tem efeitos secundários? A quem devo perguntar? A um médico ou a um estudioso da língua?

Também já não faltará muito para o recurso ao uso do palavrão nas dinâmicas de grupo nas empresas para obter o fortalecimento de laços entre colegas de trabalho ou o reforço do sentimento de equipa. Já estou a ver aquelas estratégicas batalhas de paintball a serem substituídas por torneios de impropérios entre os participantes.

Tenho é algumas dúvidas em entender como é que o recurso ao palavrão estanca a violência: posso não dar uma estalada ao meu namorado quando descubrir que ele me traiu com o vizinho musculado da frente, mas se lhe chamo "mariconço dum caralho" ainda me manda um piparote valente, e eu, apesar de mindinha não serei de me ficar, e retribuirei com pontapé ao centro nevrálgico da sua masculinidade, antes mesmo de me soltar da língua de novo. Imagino-nos, pois, numa escalada de violência física muito pouco domesticada, ainda que pontuada a palavreado colorido.

Ora, esta matéria, como todas, apenas é simples à superfície. Quando começamos a escavar deparamo-nos com coisas misteriosas e apaixonantes. Descobrimos que os palavrões nascem na cave do nosso cérebro, numa zona inicialmente descoberta por Paul Broca, cirurgião e antropólogo, uma região localizada nas proximidades da glândula pineal, ou melhor no limbo, i.e, na margem, a região do lobo límbico. Daí o seu nome, - sistema límbico - porque o sistema se situa no limbo - ie, na margem - de outras estruturas já conhecidas até aquele momento. O sistema límbico, é o conjunto de estruturas envolvidas nos processos emocionais. As estruturas anatómicas do sistema límbico são as responsáveis por processar as nossas emoções e regular a nossa conduta: o sistema límbico do cérebro funciona como o centro das emoções. O neocortex e essa zona interagem de forma complexa. O sentido denotativo (pénis) das palavras é comandado aqui e pelo lado esquerdo do cérebro, o sentido conotativo (pila) é-o pelo sistema límbico e hemisfério direito. Aí têm respostas involuntárias e emocionais, sem filtro. Diz-se que aí situa-se o nosso lado animal, primitivo e impulsivo.


Os palavrões podem pertencer a quatro categorias: religião, sexo, excrementos ou calúnias e que podem mudar de importância ao longo do tempo. A basfémia é agora de pouca ou nenhuma importância. Se eu mandar o meu namorado para o inferno por ter dormido com o bonitão do meu vizinho, a pila dele mal estremece. Há muito, muito tempo atrás, quando a Humanidade vivia sob as saias da dominadora igreja,  temente a Deus, a pila ter-lhe-ia caído ao chão. O medo de não ir para o céu era uma coisa séria na Idade Média.  Actualmente, nos EUA, em zonas onde a religião tem ainda uma forte presença, a blasfémia é ainda fortemente censurada. Ainda há pouco lia uma crítica de uma norte-americana ao filme Can you ever forgive me?, sobre a vida da escritora Lee Israel , onde a senhora se declarava ofendida pela profanidade no filme, profanidade de que eu não me tinha apercebido de todo nem consegui localizar. Os termos sexuais estão tão presentes na linguagem do quotidiano que já mais se confundem com sinais de pontuação. É claro que isto varia de país para país, e até dentro do país, por exemplo, escutem-se as pessoas no Porto e em Coimbra e vamos observar alguma diferença. Quer o sexo quer os excrementos são fonte de medos e nojos diversos (a violência do estupro e doenças que transmitem) e é por isso que deram origem a palavras que têm um significado desagradável. Actualmente são os palavrões que mexem com o status do indivíduo que parecem levantar o maior clamor: palavrões sexistas, racistas e homofóbicos geram reações fortes, tabus até.


Podemos usar o palavrão para festejar um êxito ou para lamentar uma contrariedade. O palavrão uma vez solto é como a pedra que se atira: não tem volta mas nem sempre causa dano. O palavrão liberta transgredindo mas nem sempre é automaticamente ofensivo. Há que perceber com que intenção foi lançado. O receptor reage consoante a sua cultura, a relação que tem com o emissor. Pode sentir-se agredido, cúmplice, pode ser-lhe indiferente. São sentimentos e emoções que estão em jogo. O uso do palavrão percorre todas as culturas e estratos sociais. Mas, de acordo com Emma, se perguntarmos às pessoas o que elas pensam sobre o calão ou os palavrões, elas tendem a insistir que a sua utilização  diminui a credibilidade e persuasão do orador - especialmente se o orador for uma mulher. Num estudo de 2001, Robert O'Neil, da Louisiana State University, mostrou uma amostra de 377 homens e mulheres e transcrições de discursos contendo várias instâncias da palavra “f * ck”. Quando ele disse aos voluntários que o orador era uma mulher, eles classificaram o uso do  palavrão como mais ofensivo do que quando ele lhes disse que o orador era um homem. Emma perguntou a Robert porque é que ele achava que isso acontecia. Ele respondeu: "Os homens devem ser agressivos, durões, auto-confiantes, sempre procurando sexo e, o mais importante, não serem efeminados". Emma também refere uma conversa do Presidente Nixon quando alguém, Bob Haldeman, Chefe de pessoal, lhe diz que as raparigas já dizem palavrões. Nixon observa: "Oh, elas o fazem agora? Mas, no entanto, isso retira algo delas. Elas nem percebem isso. A um homem bêbado e um homem que diz asneiras, as pessoas vão tolerar e dizer que é um sinal de masculinidade ou alguma outra coisa. Todos nós fazemos isso. Nós todos dizemos palavrões. Mas mostre-me uma garota que diz asneiras e eu verei nela uma pessoa muito pouco atraente. Quero dizer, toda feminilidade se foi. E, aliás, nenhuma garota suficientemente esperta dirá asneiras."

Em 1673, o capelão Richard Allestree publicou The Ladies’ Calling, um tratado misógino cuja conclusão era nenhum ruído deste lado do inferno pode ser tão extraordinariamente odioso quanto o palavrão que sai da boca de uma mulher. Emma diz-se escandalizada por constatar que ainda hoje, passados 400 anos, os ecos do pensamento deste Allestree, e de outros como ele,  persistam a contribuir para a formação de preconceitos e barreiras ao uso por parte das mulheres de palavras fortes para expressar emoções fortes! 



Amigas: devemos exigir o nosso direito ao uso do palavrão redondo e grosso. Mesmo se nos dizem continuamente que dizer asneiras é sinal de pouca educação, de pouco domínio da linguagem e baixa erudição em geral. Basta. Asneirar não pode mais ser visto como o recurso pobre de quem não sabe expressar-se. A palavra é uma arma mas o palavrão desarma. E quanto mais inteligente for o sujeito e mais vasta a sua linguagem, melhor conseguirá empregá-lo. Esta coisa dos dois pesos e duas medidas tem de ser combatida. Seria injusto se assim não fosse. Porque, tal como Emma afirma, o palavrão faz bem. Nenhumas outras palavras têm semelhante poder. Os palavrões nascem numa zona do cérebro muito diferente daquela onde nasce outro discurso, por exemplo, aquele que usamos para contar histórias.  É essa a razão por que Emma diz que podemos sofrer um AVC e esquecer as palavras bonitas, mas ainda assim seremos capazes de mandar alguém à merda. É triste, desculpem, é triste que eu sofra um AVC e já não possa dizer ao meu namorado querido que o amo mas ainda possa mandá-lo à merda. Será então que devemos acarinhar o palavrão como se da mais bela prosa se tratasse? Ou mesmo poesia? É triste mesmo que possa ser verdade, não vos parece?

Sugestão de leitura

What the fuck? Steven Pinker

"For language lovers, the joys of swearing are not confined to the works of famous writers. We should pause to applaud the poetic genius who gave us the soldiers' term for chipped beef on toast, shit on a shingle, and the male-to-male advisory for discretion in sexual matters, Keep your pecker in your pocket. Hats off, too, to the wordsmiths who thought up the indispensable pissing contest, crock of shit, pussy-whipped, and horse's ass. Among those in the historical record, Lyndon Johnson had a certain way with words when it came to summing up the people he distrusted, including a Kennedy aide ("He wouldn't know how to pour piss out of a boot if the instructions were printed on the heel"), Gerald Ford ("He can't fart and chew gum at the same time"), and J. Edgar Hoover ("I'd rather have him inside the tent pissing out than outside pissing in").

When used judiciously, swearing can be hilarious, poignant, and uncannily descriptive. More than any other form of language, it recruits our expressive faculties to the fullest: the combinatorial power of syntax; the evocativeness of metaphor; the pleasure of alliteration, meter, and rhyme; and the emotional charge of our attitudes, both thinkable and unthinkable. It engages the full expanse of the brain: left and right, high and low, ancient and modern. Shakespeare, no stranger to earthy language himself, had Caliban speak for the entire human race when he said, "You taught me language, and my profit on't is, I know how to curse."

Elle on What the f***

"Those really bad words have always been my favorite ones. With just one definitive syllable and a cacophony of dueling consonants, they hit the air hard and fast, like a battery of quick blows. Even closing my eyes and envisioning the four letters, f to k, in cutesy bubble type makes my jaw tighten and my shoulders twitch. That's because swear words seem to be stored in the frontal cortex, which is linked to emotion; ordinary language resides on the left side of the brain. (Knowing that makes it easier to understand why stroke victims who lose the ability to talk can sometimes still spew swears as deftly as Samuel L. Jackson.) Whoever coined the term F-bomb captured both the original word's phonetic power and its resounding quality. And in my opinion, one well-enunciated expletive always trumps strafing a listener with a string of them."


Comentários

Beatriz Sousa disse…
Não sei se fazem bem, mas que de vez em quando sai-me um, lá isso sai e não posso mentir xD
Konigvs disse…
Aos vinte anos eu era bastante eloquente. Mas depois, mal comecei a trabalhar com um senhor que teria uns cinquenta, e que em cada frase dizia duas caralhadas, a coisa complicou-se!
Acho que há tempo e espaço para tudo e que se deve adequar a linguagem consoante as pessoas com quem estamos. Eu por exemplo trabalho numa empresa, em que ouço constantemente os trabalhadores da empresa ao lado mandarem-se uns aos outros para aquele sítio! E se calhar até se dão todos muito bem! Não sei! Agora ninguém vai atender um cliente com linguagem de calão não é?
Outra coisa engraçada. Por vezes, quando vejo pais tratarem os filhos de três anos por você, imagino logo como é que aqueles casais farão sexo!
"Olhe querida, agora, você, por favor, introduza o meu pénis na sua boca, e proceda de forma a executar um felatio". Isto deve ser tremendamente animador! Mas quem não os diz também não está errado e não tem que os dizer. Ainda que, por exemplo, "caralho" é o mastro do barco. Daí a expressão: "põe-te no caralho"!

Aahhahah! Sim, sim, a gávea, a parte do mastro que fica para além daquela plataforma onde os marujos iam para ver mais longe. A cesta da gávea. Quando o capitão os queria punir mandava-os para a casa do caralho - cesta da gávea- , o local mais extremo e desagradável do navio. Isto foi-me contado por um amigo do Porto. Quando era adolescente tive uma fase em que que usava muito calão. Depois deixei-me disso mas como resultado o seu uso não me incomodava, o que foi bom, pois nas peças de tribunal têm de se escrever as asneiras todas e dizê-las também, em casos diversos. Algumas colegas ficavam meio encabuladas com aquilo. Eu, em virtude da minha "experiência", nem por isso. Mas, de facto, não o usava muito e em momentos mais exaltados é que não mesmo. Quando fui viver para o Porto pela primeira vez estranhava que o pessoal falasse com tanta liberdade, mas também nunca me senti incomodada. Acho que hoje digo mais asneiras do que quando vivia no Porto, mas, como bem diz, não uso o calão no tratamento quotidiano e muito menos junto de qualquer um. Não acho que seja educado fazê-lo. Se duas pessoas sempre usaram o termo pénis e não outro, acredito, que tenha o mesmo valor para eles que pau ou pila ou pepino, embora me soe meio erudito. Mas já ouvi um puto aí de 4-5 anos, sei lá, na praia, a dizer asneiras como gente grande. Ia-me dando uma coisa! Nem 8 nem 80.