Cinema Sueco: Na fronteira, um filme de Ali Abbasi




Tina: "As a child, I thought I was special. I had all these ideas about myself, but when I grew up, and I realized I was just a human being. An ugly, strange human with a chromosome flaw."

Vore: "Humans are parasites that use everything on earth for their own amusement. Even their own offspring. The entire human race is a disease, I'm telling you."


Cabeleiras, dentaduras e maquilhagem: EffektStudion AB.

Ontem vi um curioso filme de um realizador iraniano, Ali Abbasi: Na fronteira, ou Gräns, na língua sueca. É baseado num conto de John Ajvide Lindquist, que se tornou conhecido por Let the right one in, também adaptado ao cinema, com muito êxito. O filme de Abbasi recebeu uma nomeação na categoria de Maquilhagem e cabelo, nos Oscars de 2019, a par de Mary Queen of Scotts e Vice: Vice levou a estatueta.  Na fronteira é um filme  sobre uma mulher, Tina, funcionária dos serviços fronteiriços suecos, que tem uma habilidade particular: ela consegue "farejar" a culpa ou a vergonha nas pessoas, sintomas que indiciam que estão envolvidas em algo ilícito. Um dia, um homem chamado Vore, desembarca naquele porto chegado da Finlândia, e trava conhecimento com ela. A partir daí Tina inicia um processo de descoberta da sua identidade que vai abalar toda a sua forma de vida e obrigá-la a fazer escolhas.

O hábito não faz o monge é uma expressão conhecida. Significa que não devemos julgar as pessoas pela aparência e vem bem a propósito desta alegoria sueca. De igual forma não devemos de imediato pensar que boas próteses são garantia de personagens bem compostas. Apesar dessa transformação plástica é sempre o actor ou actriz que as anima que é o grande obreiro do milagre da transformação. No presente caso, os dois actores são exemplares: Eero Milonoff, que interpreta Vore, e sobretudo Eva Melander, que interpreta a personagem Tina sob camadas de maquilhagem aplicada ao longo de 4 horas e com mais 18 kg em cima do seu peso regular. Garanto-vos que a partir do momento em que Tina aparece em cena monopoliza a 100% o nosso interesse no seu mistério. Ela consegue demonstrar emoções e chamar imensa expressividade à superífice de centímetros de silicone. A linguagem corporal dos dois actores  combinada com expressões faciais fazem-nos realmente esquecer, sobretudo quando interagem, que são humanos.

Se  o aspecto neandertalesco das personagens principais destas fotografias acima já vos causa alguma espécie de constrangimento, preparem-se para alguma bizarria pois em  Gräns existem alguns momentos não inteiramente à prova de repulsa. O filme consegue ser perturbador na sua transgressão a vários níveis,  mas também comove. Para alguns será demasiado e é compreensível. Já passaram uns anos sobre o filme Anomalisa que continha uma das mais invulgares cenas de sexo filmadas até à data. É que as suas personagens eram de plasticina. Gräns traz uma cena de sexo igualmente invulgar. O tema do sexo, a sua celebração ou as suas diversas problemáticas - a reprodução, a perpetuação de uma espécie, a pornografia -   percorre todo o filme.

Se precisarem de motivação para ver este filme sueco, pensem numa espécie de universo de Guillermo del Toro, mas verdadeiramente para adultos, sem cosmética nem complacência pelo espectador forçado ao confronto cru com cada revelação. Embora Guillermo não se atreva a ir tão longe, pressentem-se, por exemplo, no filme que lhe deu mais Óscars, A  Forma da água, alguns pontos em comum com este:  quer Eliza Esposito, quer Tina são pessoas diferentes das outras e que vivem o seu dia-a-dia habituadas, e conformadas, a serem olhadas com estranheza em virtude da sua diferença. Mas Tina, em Gräns  e o monstro aquático, no filme A Forma da água, pertencem também a uma espécie à parte, uma minoria,  perseguida pelo homem. Por outro lado, ambos os filmes exploram a atracção e relacionamento entre as duas personagens principais. Os amores aquáticos de Eliza e o anfíbio foram muito incompreendidos pelo público: um romance entre uma pessoa desajustada e uma aberração, mas, sobretudo, duas espécies diferentes, que não se deviam misturar. A metáfora era bem difícil de aceitar. Pois bem, em Gräns , o romance é mais "normal" já que Vore e Tina são da mesma espécie mas não menos grotesco,  no entanto, muito mais real e "bestial" do que alguma vez foi o enlace entre o monstro aquático e Eliza.  Mas se no filme A Forma da água encontramos uma sensualidade animal estranha,  em Gräns  existe antes uma sensualidade animalesca fantasticamente credível.

Apesar do seu argumento não ser perfeito, e de o filme começar e progredir melhor do que termina, é muito menos incoerente do que o idílio do monstro aquático e da empregada de limpeza. Guillermo recuou ao passado, aos anos 60, em muito beneficiando da reconstituição histórica para nos cativar para a sua história fantástica, enquanto Abbasi filma uma ancorada no presente: o elemento fantástico inscrito no nosso quotidiano tem o condão de nos fazer sentir mais próximos e implicados nos eventos e  de interpretar a sua implicação alegórica. Se o monstro aquático era simultanemanete objecto de perseguição e afeição pelos humanos, aqui são os humanos que são perseguidos no presente. Mas, para nossa tranquilidade, ficamos a saber que nem todos os que não são como nós estão contra nós, nem todos desejam vingança, sobretudo os que conviveram de perto connosco e se aperceberam de como podemos ser diversos,  carrascos mas também verdadeiramente humanos.

Apesar de ter ido buscar estas considerações sobre o filme de del Toro, A forma da água,  foi para mim uma decepção, ainda mais depois do fogo de artifício criado em torno dele com 13 nomeações ao Oscar. Muito se escreveu sobre a poesia visual do filme, a forma como subverteu o tradicional conto de fadas, o facto de ser um hino à diversidade e à voluntariedade feminina. Mas no seu todo é uma pequena e frágil história mascarada de próteses que lhe conferem grandiosidade mas a que falta corpo, e, sobretudo, alma. Também me pareceu que na sua homenagem ao cinema provoca o nosso afecto fácil, já estamos um pouco cansados disso, em especial também porque se inspira mais do que inova em imaginários que já vimos em cinema de monstros de outras eras, e tão escusadamente pois del Toro tem génio para mais. A sua história fica atrás do argumento de O Labirinto do Fauno, de cujo universo também me recordei enquanto observava Tina a deambular pela floresta. A beleza existe, apesar de tudo, em Gräns, em momentos especiais em que Tina exulta de contentamento, por exemplo, e também na floresta que rodeia as residências de Tina e Vore, repleta de árvores entrelaçadas, musgo, cascatas, animais e sons de um exotismo mágico. Vemos e sentimos a floresta segundo a percepção de Tina: as cores, os sons, as texturas são mais ricas do que esperaríamos, o que logo indicia que Tina tem uma ligação especial ao mundo natural - tal como Eliza teria em relação ao Submundo -, e os seres que ali habitam, com quem comunica melhor que os humanos. Lembro que no filme de Toro a floresta era um elemento essencial, o abrigo de criaturas mágicas e poderosas, habitantes de um reino subterrâneo repleto de encantos e horrores. É esse o filme que melhor representa a paixão de Del Toro pela fantasia e é um filme totalmente coeso, um verdadeiro conto de fadas para adultos. Quer O labirinto do fauno quer Gräns têm um fundo surreal, o do realizador iraniano remete possivelmente para o folclore nórdico, os seus mitos e criaturas, sobre o qual pouco conheço.

Já lá vai o tempo em que escrevia sobre um filme resumindo quase a sua história na totalidade enquanto detalhava as minhas impressões. Ultimamente deixei-me disso. Parece mais complicado abordar o filme sem o fazer, ou mais desinteressante e menos arrumado para o leitor, ou até apenas preguiçoso.  Na realidade é um péssimo serviço que se faz aos leitores, sobretudo aos leitores que são potenciais cinéfilos. Há muito que deixei de ler as críticas e opiniões antes de ver qualquer filme mas continuo, por vezes, a escrever desvendando mais do que devia.  No entanto, escrever em jeito de sinopse e ficar-me apenas pelo suficiente para vos dar a ideia do que poderão ver sem estragar o impacto da experiência, não é fácil, sobretudo quando um filme me entusiasma, o que foi o caso. Não sei se a questão última deste filme, Gräns - A fronteira, não será onde se traça a fronteira, mas não a da Finlândia com a Suécia, antes a que separa o que é humano do que não é.  O que definirá, então, a humanidade de alguém?

Comentários

redonda disse…
Gostei deste filme e da crítica aqui sobre ele. Achei-o credível com um ambiente especial e diferente/original.
É verdade. Um filme verdadeiramente supreendente!