Cinema coreano: Em chamas, de Chang-dong Lee



Os louvores a este filme, "Em chamas",  baseado numa história de Murakami e realizado pelo coreano Chang-dong Lee, têm-se acumulado desde que foi escolhido como o melhor filme em competição em Cannes (2018) e a minha curiosidade em vê-lo era enorme. Trata-se de um verdadeiro milagre da multiplicação das palavras: a breve história do escritor japonês rendeu um filme longo de quase duas horas e meia. O filme contém um par de cenas memoráveis, excelente realização e interpretações, e um fascinante tom enigmático que, sob a aparência da normalidade, percorre ambientes e personagens de igual modo.

Raras vezes me queixo da duração de um filme: não é algo que me desmotive do seu visionamento. São filmes curtos os que quase sempre são difíceis de levar até ao fim e não os mais longos. A duração longa é um factor que pode, no entanto, desincentivar quem queira ver e, neste caso, talvez tivesse sido possível cortar um pouco aqui e ali sem prejuízo. Mas esse é o único apontamento negativo que lhe faço. Para outros, além desse, a ambiguidade em que o filme evolui pode ser exasperante e não justificar a espera pela sua conclusão clímax.

"Em chamas"  foi um exercício incrível em que dei por mim, como raras vezes acontece, a ser uma jogadora e uma interveniente muito activa naquilo que estava a observar.  O filme  faz-nos questionar o que nos é mostrado pela óptica de um dos protagonistas, até mesmo após a sua conclusão. Apenas num curto espaço de tempo inicial nos podemos dar ao luxo de sentar confortavelmente o nosso olhar e  descansar o cérebro. Depois as questões não cessam, acumulam-se pistas e indícios, e também nós somos consumidos pelo fogo da dúvida. (Ou não será melhor antes dizer pela paranóia do protagonista narrador?) É de tal forma que se pode realmente chegar ao final do filme e perguntar: mas o que é que acabei de ver? O que é que aconteceu de verdade?

Poderia até ser um filme sobre uma única personagem real, um escritor, e não um trio: então assistiríamos ao desenrolar da materialização daquilo que escreve no seu computador. Pode ser.  Mas também podemos pensar que é um verdadeiro triângulo de ciúme - amoroso e de status -  e vingança: sendo o tema da vingança um tão presente no cinema coreano, este filme seria mais um a abordá-lo. Sob nós pesa a responsabilidade de encontrar as respostas para as incessantes questões que surgem na nossa cabeça, - e  muitas permanecerão irrespondidas, - e condenar ou ilibar as personagens dos seus crimes. Aliás, uma das primeiras cenas em que a rapariga faz uma pantomima, descasca uma laranja, e revela que o truque para fazer aquilo não é fingir que a fruta está ali mas antes esquecer que ela não existe, tem de intrigante o suficiente para nos fazer logo despertar da nossa acomodação na cadeira: é que o filme vai brincar com a nossa percepção até final, é esse o seu jogo. Tal como acontece ao jovem escritor com um gato que parece existir e não existir ao mesmo tempo, - é o "gato de Schrödinger", - no apartamento cúbico da rapariga.

"Em chamas" não é apenas um filme de possibilidades, um exercício cinematográfico abstracto: existe nele uma fatia de realidade bem palpável, a geografia, o terreno social, político, onde tem lugar o encontro acidental dos três jovens mostra-nos uma vida em tempos conturbados, até mesmo internacionalmente, geradora só por si de ansiedades, angústias e desconfianças. É evidente a existência de uma divisão de classes na Coreia, de jovens de famílias ricas e outros remediados, diferentes modos de vida, uns mais suburbanos, ou mais rurais, outros mais consumistas e geradores de dívidas do que de subsistência, uma juventude que, ainda que qualificada, com estudos, tem de lançar mão a trabalho esporádico e pouco qualificado, enquanto outra não se coíbe de esbanjar o dinheiro dos pais em operações plásticas e turismo caprichoso, e até um certo machismo indicador da pressão da sociedade coreana sobre as mulheres. Em comum às três personagens do filme existe um mal-estar, uma fome por alguma coisa: uma procura o sentido da vida, outro anda à procura de uma história para escrever, outra em busca de entretém para a sua vida de luxo. É sabido que a insatisfação é como palha seca que se vai acumulando nos dias em que nada de especial acontece a não ser uma alienação crescente. E depois a  raiva é a faúlha que se pode rapidamente transformar num incêndio.


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