Amor é estar apaixonada pelo meu hidratante


E se cada blogger só tivesse direito a 100 palavras por dia? Anda aí um livro nas mãos de muita gente, Vox, que alguns dizem fazer lembrar Crónica de uma serva, de Margaret Atwood, mais conhecido a partir da adaptação da Hulu para televisão, The handamaid's taleVOX é sobre a chegada ao governo dos Estados Unidos de um homem misógino que transforma as mulheres em cidadãs de segunda categoria, sem acesso a emprego, passaportes, livros. O tal misógino decreta que as mulheres não podem dizer mais do que 100 palavras por dia, nem sequer as meninas. Cada palavra a mais é recompensada com um choque eléctrico, cortesia de uma pulseira obrigatória que têm de trazer no pulso. Já li leitoras que dizem que o livro é bué de bom, até aposto que nunca leram a Crónica de uma serva, e outras irritadas porque quem vem tirar o mulherio do apuro é - SPOILER!! - um homem. Não tenho interesse em ler o Vox nem é dele que aqui trato.

Quantas palavras é que acham que a gente fala diariamente? 10.000? E quantas escrevemos? É sabido que as mulheres falam mais do que homens. Será que escrevem mais do que eles? Felizmente o Blogger não é o Facebook, aqui ainda não há regras a reprimir fotografias de mamilos femininos ou de mães a aleitar bebés, aspectos por demais indecorosos para os púdicos frequentadores da rede e que os guardiões da moral zelam esconder. Será que o Facebook é machista? Este tal VOX ainda pode dar ideias à equipa do Zuckerberg para impor um limite de palavras na rede social, claro que por razão que não vislumbro, tal como nunca acreditaria que pudesse existir uma que permite banir fotografias de mães a amamentar.

Estava bem tramada com esse tal limite das 100 palavras. Vamos só ver o que são 100 palavras em termos de mancha gráfica: são cerca de meia dúzia de linhas, aquelas que sublinhei a negrito no início do texto. Não dava nem para fazer o aquecimento. Já me disseram que escrevo postagens demasiado longas por diversas vezes. Não costumo dar resposta a esses comentários mas o que penso é que não são as postagens que são longas, a vontade de ler de quem comenta é que é curta. Não sei como é que esta gente faz com a leitura de um livro. Já agora, também podia ir por aí fora de blogue em blogue a manifestar a minha mágoa pelo facto de usarem as palavras de forma tão  repetitiva. O português é uma língua rica mas na boca desta gente até parece miserável. Esta vaga de meninas que ficam apaixonadas por tudo e por nada, por exemplo, ou melhor, por cremes é um pouco melosa. Abra-se qualquer desses blogues que parecem um mostruário de produtos cosméticos de uma qualquer Balvera e logo aparece, acima ou abaixo de uma fotografia de boiões a declaração de amor: "Meninas. Eis um dos cremes por que ando apaixonada! É o Creme Esfoliante Facial X." Umas autênticas pinga amor. A seguir segue-se uma descrição das qualidades maravilhosas do creme. No caso deste esfoliante as microesferas eram o máximo permitindo afinar a textura cutânea pelo atrito. O melhor do produto era não ser testado em animais. É muita crueldade testar produtos em animal ou mesmo fazer produtos derivados de animal, escrevia a blogger. O rótulo tranquilizava: o creme tinha 0% animal. Seguem-se mais louvores à marca que se ama de paixão. (Mas, meninas,  então as microsesferas não são diabólicas para os animais marinhos?)

Passando depois aos comentários pós-postagem, a enxurrada de amor continua: todas amam produtos para a pele, amam a resenha da blogger, adoram conhecer novos produtos, amam a dica e já estão desejando a hora de poder experimentar o creme esfoliante X porque o produto é super interessante. Quem já conhece logo afirma que a marca é óptima, que já testou e amou, e usa; e vem mais uma que amou o texto.

Em postagem anterior, porque se recusa, claro, uma nova marca, que a blogger diz que sempre inova, desta vez é um verniz para unhas de tom rubro. A menina logo escreve que está apaixonada por aquele esmalte - ou não fosse a cor da paixão - e passa a descrever a razão de tanto amor. Seguem-se os comentários das meninas que também se derretem pelo esmalte, que sim, que é um tom que está na moda, e que é o máximo, que adoraram, o esmalte e a postagem, é tudo tão divino, como não amar.

Mudo de blogue. Este é de alguém do lado de cá do mar,  e lá vem mais uma menina a adiantar que ficou completamente apaixonada pela base que está a testar: com surpresa, revela que não estava nada à espera de ter gostado tanto. Não há comentários. Estranho o amor não correspondido. Sigo  para o próximo blogue, onde uma jovem rapariga bonita faz o passo-a-passo de uma maquilhagem. No final das muitas fotos e descrições de tipo de pincéis, produtos e técnicas, pergunta às meninas o que acharam. A primeira a responder revela que está apaixonada por aquela make, de tal forma que não consegue parar de pensar naquela paleta. Termina em desespero: "vou ficar doente de tanto querer". Já dizia Camões, que não usava maquilhagem, que o amor era uma ferida que dói e não se sente, um contentamento descontente,  uma dor que desatina sem doer. É muito mal de amor que se contrai nesta coisa das "makes". E parece ter um jeito epidémico além de epidérmico.

Além dos produtos em si, as meninas também curtem a embalagem e enchem linhas e linhas na sua descrição e avaliação. Por exemplo, esta blogger diz a propósito do produto Y que por se tratar de um produto de farmácia, que normalmente costuma ser mais simples, mas ela até achou a embalagem super bonita. Diz ela: "A embalagem é de vidro e possui aplicador pump, que eu adoro! O packaging é muito fofinho mesmo!" Estou quase em delírio a imaginar o aplicador pump. E vocês?

Se o uso e abuso desta linguagem melíflua contribui para uma experiência no mínimo amorosa da visita a estes blogues, o uso intensivo da língua inglesa transforma a sua leitura numa experiência no mínimo internacional. Se esta escalada continuar, dentro de uns anos, irei precisar do Google Translate para conseguir destrinçar o que querem dizer tantas palavras em estrangeiro.  "Admito, sou uma fashion lover, adoro que curtam meus outfits e hoje vou mostrar mais um look, acabado de sair do meu closet. Assim que terminei de ler esta frase, passei ao blogue seguinte. Adoro o inverno, é a minha estação do ano favorita. Posso usar cozy outfits! Só me apetece escrever na caixa de comentários: " Oh, really?" Insisto. Desta vez é uma postagem sobre acessórios, ou seja aquelas peças mágicas que ajudam a dar um "up" ao nosso outfit ! Um cinto pode fazer milagres nas nossas jeans. Quais são as que preferem? Mid waist, high waist, regular fit, push-in, push-up ou mom jeans? Skinny jeans? Olha, eu prefiro mesmo é entrar numa loja, escolher um par, ir provar e comprovar que servem. Isso deixa-me verdadeiramente happy! Estas postagens tutti-fruti que misturam a língua inglesa com erros ortográficos em português, e, pior, de sintaxe, make my day. Também não entendo os títulos em língua inglesa e o corpo de texto da postagem em português, it puzzles me. É suposto dar mais style? Esse detalhe faz o quê pelo texto que se segue?

Sigo para mais um blogue da lista. A blogger parou de escrever no primeiro dia do ano de 2019. "A primeira review do ano 2019 é sobre os meus 4 lápis de lábios favoritos, que são um must-have na minha necessaire."  Não havia necessidade de ter tantos lápis, my dear,  mas pronto, é apenas a minha humble opinion...Estas meninas têm mais lápis de maquilhagem que eu tenho lápis de minas,  meninas . "Ando a precisar de comprar lip liners, "responde logo uma nos comentários. A seguinte: "Ah, fiquei super hiper mega contente ao encontrar esta review: adoro essa marca." Também fiquei Supercalifragilisticespialidoce, quem é que não fica.

Adiante, na postagem anterior, a blogger ensinava a preparar os nosso lábios para receber aquele batom que nos apaixonou. (Neste momento já dou por mim ouvir Love, love, love, em loop, na minha cabeça. Obrigada, Beatles.)  Desta vez aproveitei para aprender alguma coisa. Estaria mal se chegada a esta idade ainda não tivesse conseguido aplicar batom nos lábios. Mas o saber não ocupa lugar e pode sempre haver uma maneira melhor de fazer algo bem feito. Vamos a isso. Primeiro é preciso passar um Lip Balm ou hidratante labial, para cobrir as rachaduras e descamação de seguida é preciso aplicar base e esta deve incluir a boca, e depois pó, depois é preciso contornar os lábios com um lápis de boca num tom parecido com o batom que vamos usar, agora é seguro passar o batom e depois é preciso cobrir os lábios com uma camada bem fina de pó compacto, e em cima desta camada bem fina de pó compacto, voltar a passar o batom. Resta depois limpar o excesso com tissue ou cotonete. Sinceramente! Mais valia tatuar a porcaria dessa cor nos lábios! Para cumprir este ritual eu necessitaria de um post-it  no espelho com todos esses passos. A idade não perdoa: arruína a nossa memória e a nossa paciência.

Depois de ler este tutorial fiquei mesmo very sad, quase como quem teve um desgosto de amor. Parece que andei quase meio século a aplicar mal o batom. Agora entendo como é que os meus namorados o roubavam sempre ao primeiro beijo. Tal como as meninas, os meus meninos também amavam de paixão aquele batom.


Comentários

Beatriz Sousa disse…
Para limite já temos o twitter. The handmaid's tale é um livro muito bom mesmo, mal posso esperar para ler o segundo. Dizem que o VOX é muito aborrecido, mas sinceramente estou mortinha de curiosidade para o ler.
Se eu só pudesse falar 100 palavras bem que estava mal, sou uma fala barato xD mas nem vou falar do quão ridícula e infelizmente real é essa ideia, senão iam as 10 mil palavras.
Beijocas!!
Ahahah, uma "Fala barato"! Já fui mais faladora do que hoje mas prefiro pessoas faladoras a caladas. O pior, dentro deste tipo de pessoas, são aquelas que são incapazes de manifestar a sua opinião acerca do que for. Até parece que têm medo de ser julgadas como se não tivessem direito a pensar e a defender as suas ideias. O oposto, aquelas que estão sempre a dizer que tem direito a dar a sua opinião também me causam alguma irritação. Como sempre, nem 8 nem 80!
Beatriz Sousa disse…
É terrível quando por alguma razão conheces uma pessoa e tentar falar com ela sobre qualquer coisa e a pessoa não desenvolve...