Uma carta a Madonna




Cara Madonna

Acabo de ver um vídeo teu onde revelas que o teu novo disco, Madame X, é inspirado por Portugal e uma carta de amor ao nosso país e sua bela cultura. Madonna, és uma querida. Não era preciso fazer essa declaração. A gente percebeu, assim que surgiste com essa pala à Camões a cobrir-te um olho, que te demos a volta à cabeça com o fado, as mil maneiras de cozinhar bacalhau e o cavalo lusitano.

Era eu aluna no liceu, no final dos anos 80, quando apareceste na MTV vestida de noiva a rebolar-te no chão do palco e a cantar a exaltação do sexo com uma voz gaiata e pura que entretanto cresceu. Meio mundo ficou cego de indignação, outro meio percebeu que estava a presenciar o nascimento de uma estrela da música pop e da controvérsia. Não sei quando é que, depois desse momento icónico, disseste que querias dominar o mundo. Foi com frases assim que penetraste insolentemente no ouvido das pessoas por décadas, da mesma forma que os teus soutiens cónicos perfuraram a sua  imaginação para sempre.

Um amigo meu comprou o teu primeiro LP, Madonna, e eu fiquei chocadíssima. Julgava que ele tinha bom gosto musical, pois até tocava guitarra e fazia uns biscates de voz num bar local, onde, uma vez, até me dedicou o You're the sunshine of my life. Assegurou-me que o disco não era mau e que tu havias de fazer sucesso.  Hoje acumulas prémios, títulos, records, números enormes com que se medem sucessos de vendas, fortuna, talvez talento, ou não, e se comparam artistas: és a Rainha da Pop, és e serás enquanto fores viva, conquistaste essa coroa. Hoje não há ainda quem a possa herdar. Hoje seria inocente rebolar no chão com um vestido de noiva. Hoje o mundo já não se choca com coisa nenhuma, a não ser com a tua idade.

Não sou tua fã, Madonna, mas, que importa isso,  fãs não são de fiar para aferirmos da influência de uma artista. Caíram sob o feitiço da mesma e os seus juízos envolvem sempre muita subjectividade. Faz parte. Não te aborreças, mas eu apenas comprei o Ray of Light, aquele CD que fez de ti também a rainha da electrónica. Estava em Paris, a minha primeira viagem ao estrangeiro, sozinha, e num ecrã montado para mostrar os jogos do Mundial de 98, apareceu o teu frenético vídeo. As pessoas que andavam por ali começaram a juntar-se e a dançar, e eu também, feliz por estar ali. Depois disso, quando comprei e tocava o Ray of Light, lembrava-me sempre daquele dia na praça de l’Hôtel-de-Ville. Também comprei o single My beautiful stranger e o CD American Life, que já tentei vender no OLX ao preço da uva mijona, mas sem êxito, pois ninguém o quer nem para jogar frisbee. É o disco que menos vendas registou e nem eu sei porque o comprei. É deste CD que saiu Hollywood, tema ao som do qual beijaste a Britney Spears nos MTV Awards. Sempre soubeste acercar-te de quem andava nas bocas do mundo, ou nos ouvidos do mundo. Outra explicação não há para esse beijo nem para os duetos que formaste em Madame X, senão uma estratégia de penetração de mercados e públicos.

O teu palco é em 2019 uma mesa de banquete num vídeo exuberante: de novo vestida de noiva, a sussurrar cha-cha- cha candidamente e a lamber o dedo do pé do macho latino, de novo as opiniões a dividirem-se. Foi assim que sempre triunfaste: não eras a melhor cantora do mundo, não podias apenas usar a tua voz para o conquistar. Sempre usaste o teu corpo. Construiste a tua fórmula de sucesso e  tornaste-te mulher-espectáculo, uma entertainer de topo. Agora já te queriam reformada do desejo e da loucura. Os homens e mulheres que te aplaudiram a ousadia nos anos 80 não perdoam que sejas uma sexagenária-mãe-solteira de 6 filhos e andes a proclamar a tua sexual - idade como se tivesses 25 anos. Chamam-te vaca, velha, nojenta, ridícula. Mas tu, Madonna, sempre foste uma artista da provocação. Insubmissa por natureza, sempre gostaste de estar no comando, de desejar e ser desejada. Nada disto é novidade. Em Madame X és apenas Madonna a ser Madonna. A tua missão até à morte é ir até onde te levar a tua ambição loura e desafiar o preconceito.

Já lá vão dez discos, - e muita experimentação na música, no cinema, e na moda, - desde que dançaste e cantaste ao vivo no Live Aid, de casaco de chumaços, sapatos pretos e peúgas brancas. As tuas modas nunca me serviram, por exemplo, longe de mim pendurar crucifixos ao pescoço, nos ouvidos ou no nariz. A tua adoração pela iconografia religiosa andou sempre a par da rejeição do conservadorismo religioso. A Blond Ambition Tour,  um show de coreografias sensuais e cenas apimentadas, caiu mal no Vaticano mas era um espectáculo de diversão bem oleado, um circo diabólico, terá dito o Papa. Incendiaste cruzes, fizeste-te crucificar, usaste uma coroa de espinhos, promoveste a mística da cabala e o Papa mobilizou os fiéis contra ti como se tivesses o diabo no corpo. Madonna, o teu nome sempre foi ou sinal de insolência religiosa ou de afronta sexual. Até a MTV  baniu o vídeo Justify my love: era demasiado sexo para tão pequenos ecrãs. Outros vídeos teus seriam banidos. Mas todos nós vimos os vídeos indecorosos mesmo sem termos comprado os teus discos. Anos mais tarde, um documentário pungente sobre o Malawi, que revelava a tua faceta humanitária, terá quase passado despercebido aos teus fãs. Outros documentários alimentavam melhor o terreno fértil das polémicas: Truth or dare, filme sobre os bastidores da tournée Blonde Ambition, onde discorrias sobre sexualidade e prazer e desmontavas tabus. A saída do LP Erotica fez-se acompanhar de mais uma bomba polémica:  o livro Sex: "Este livro é sobre sexo. Sexo não é amor. Amor não é sexo.", escreveste. O livro Sex foi o escândalo total. Ninguém no universo da pop tinha ido tão longe, e até hoje ninguém se atreveu a sequer passar perto. Também escreveste The English Roses, - que eu comprei - um livro infantil. Mas não tinhas nascido para tais empreendimentos, não nos iludamos: um dia, o teu epitáfio há-de ser "Rainha da libertação sexual".  E quando  assumiste a defesa das pessoas infectadas pelo HIV, estigmatizadas e isoladas por todos, num tempo em que ser gay era sinónimo de doença e morte, divulgando a importância do sexo seguro num momento crucial em que o medo do sexo se instalou na sociedade? Como sempre gostaste de te re-inventar, também tiveste umas fases em que resgataste o pudor. Até  sacaste um Globo de Ouro interpretando Evita. Mas, deixa-me dizer-te, era mesmo um sacrifício ver-te no cinema. Com o filme Evita lá deste a volta ao texto e até conseguiste portar-te bem num género esquecido. Uma canção que escreveste, Sooner or later, que ninguém mais ouve, a não ser eu, porque costumo ouvir colectâneas de canções oscarizadas, ganhou-te um Oscar.

Madonna, Madonna, que mulher diabólica. Sempre a testar os limites dos outros e os teus próprios! Apoiaste as Pussy Riot em Moscovo pelo direito à liberdade de expressão, mesmo sabendo que o Putin já te tinha ameaçado mandar para a prisão. Não satisfeita, irritaste o Trump. A quem passaria pela cabeça dizer que lhe apetecia fazer explodir a Casa Branca, ainda que metaforicamente?  Depois do teu discurso  na Marcha das Mulheres, em Washington, o líder chamou-te "repugnante" e radios baniram a tua música do ar. Confessa, Madonna, por vezes não escolhes muito bem as palavras. E daquela vez em que disseste que preferias morrer do que ser a Mariah Carey? Olha, eu também não queria ser a Mariah. Mas também não queria ser a Madonna. Porquê? Porque não é fácil ser como tu, nunca foi, nunca será.

Para muitos portugueses não passas de mais uma estrangeira a desfrutar do hype que Lisboa atravessa e que, por acaso, não viaja em low-cost, em todo o caso não merecedora de tanta atenção por parte dos media. Talvez porque não te conheçam bem ou porque julguem que te conheçam bem demais. Pela minha parte espero que um dia  possas escrever na tua auto-biografia que viveste 10 anos em Lisboa e que estes foram os melhores anos da tua vida. Talvez um dia vá de viagem à capital e te encontre às compras com os putos no Chiado, como uma qualquer  sexagenária-mãe-solteira de 6 filhos. Fica tranquila, não te irei pedir nenhum autógrafo ou selfie. Não sou tua fã, não vou comprar o Madame X. Bastar-me-á poder regressar a casa e dizer, à mesa do café, como se te conhecesse muito bem: "Olha, sabes quem eu vi no Chiado? A Madonna!"

Cumprimentos e votos de sucesso, Madame X.


Sugestões de leitura

Documentário :

Madame X - teaser
MADONNA - I AM BECAUSE WE ARE  (2008)



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