Turistas destroem tudo à sua passagem!



Encontrei um artigo no Der Spiegel, foi escrito em Agosto de 2018, mas continua actual. O que me despertou a atenção foi a fotografia que acompanhava o texto: um campo de lavanda repleto de turistas entretidos a fazer selfies. Visitar uma quinta de produção de lavanda, foi, em tempos,  uma das viagens que gostava de fazer, e que cheguei até a programar. A produção de lavanda não é um exclusivo da Provença, vejam, por exemplo, esta, no Sussex, Inglaterra, mas na Provença é que é a valer. Existe até um museu, fazem-se festivais dedicados à planta. Conheçam aqui as rotas da lavanda e as datas em que é possível observar os campos com a tonalidade magnífica da lavanda em flor: azul, roxo, lilás e violeta.

Ora, fiquei a saber que uma série chinesa - Dreams Behind a Crystal Curtain - conseguiu motivar  uma multidão de chineses a voar até à Provença e para fazer o quê? Para fazer selfies nos campos de lavanda que tinham visto na televisão. No primeiro Verão após a estreia da série foram até lá uns 3000 chineses. Hoje já são 60.000 os que anualmente rumam aos campos no curto espaço da floração: entre meados de Junho e fins de Agosto. Os chineses passam velozmente pela região para colherem o seu troféu e no processo os locais tentam tirar máximo proveito dessa afluência adequando e expandindo a oferta tradicional com toda a espécie de produtos, investindo no domínio da língua chinesa para informarem e promoverem toda a região, ou mesmo servindo noodles em vez de pratos da Provença. Mas eles chegam num pé e voam no outro. E mesmo avisados arrancam as flores, sujam os campos com lixo diverso e causam um impacto negativo que não é bem vindo aos olhos de ninguém, e em especial  censurado pelos que não se adaptaram - porque não puderam ou não quiseram, - e não abriram a sua quinta à lógica dos souvenirs.

Para minha surpresa o texto do Der Spiegel começa com a descrição do que se passa na livraria Lello, no Porto. Tudo o que ali está descrito foi experimentado por mim quando quis mostrar a livraria ao meu sobrinho, talvez há já uns três anos atrás."Ninguém mais procura entre os livros que ali estão, todos estão entretidos a tirar fotografias", lê-se a dado ponto. A fama da Lello correu veloz a partir do momento em que o fenómeno Harry Potter ganhou popularidade:"They bought Harry’s school books in a shop called Flourish and Blotts where the shelves were stacked to the ceiling with books as large as paving stones bound in leather; books the size of postage stamps in covers of silk; books full of peculiar symbols and a few books with nothing in them at all." Segundo consta, J.K. Rowlins ter-se-ia inspirado na livraria Lello quando escreveu sobre a loja onde todos os estudantes de Hogwarts compravam os seus livros de magia. Podemos apenas especular se é só por isso que multidões se acotovelam lá dentro, ou se, em todo o caso, a extrema beleza da livraria sempre acabaria por fazer dela  um ponto de visita obrigatório para os turistas. Sem internet e sem viagens de avião low-cost talvez o panorama não fosse tão apinhado, com ou sem livros de Harry Potter. Quantas vezes ali entrei e a livraria vazia, que privilégio! Mas se era bom para mim não seria assim tão bom para o proprietário. Agora vamos para a fila internacional para tirar um bilhete do outro lado da rua e depois é "Excuse me", "Com licença", "Pardon", sobe e desce a escada, acotovela aqui, empurra ali, abana o leque, bufa, que está abafado, espera e desespera para ir daqui a ali, e enquanto isso a beleza de tudo o que nos envolve esconde-se, envergonhada, como se tivesse culpa, atrás daquele corropio de corpos e de poses e selfies. À saída, na caixa ao fundo, sob a escada, fui atendida por um funcionário que tinha uma cara de completo abandono, como se não estivesse ali em espírito. Impecável na sua camisa branca e calças pretas, foi com gestos mecânicos que registou e me passou o livro escolhido para descontar o valor do bilhete, e o troco: era a história da livraria Lello para crianças, a versão  inglesa do livro, pois era para oferta. Creio que se animou e esboçou um leve sorriso quando, à minha despedida,  se apercebeu que  éramos portugueses: devíamos ser os únicos ou dos únicos nacionais a visitar a Lello naquele dia, é verdade.  O texto do Der Spiegel interroga, e bem, sobre se os locais também têm de ir para a fila e comprar bilhete para entrar na sua livraria ao mesmo tempo que não esconde a ressurreição da cidade do Porto da crise em que vivia pré-boom turístico servido pelos voos low-cost. 

Quem está longe destas realidades não tem a noção do que é isto e invariavelmente chama "mal agradecidos" aos locais. Talvez não consigam abranger o insólito de existirem áreas de cidades transformadas em quase parques temáticos onde os locais vão trabalhar mas não vivem, onde os restaurantes se enchem de turistas que observam outros turistas e a cor local desapareceu. É o Der Spiegel que escreve mas eu mesma já constatei isso: quem é que nunca, em tempos recentes, almoçou num restaurante em Lisboa sentindo-se em Londres? Estas multidões movem-se de um continente para o outro à caça do tesouro: a memória daquele desejado momento eternizada numa selfie, seja nos campos de lavanda da Provença, seja na escadaria vermelha da Lello. O impacto negativo é real. Não se pode mais ser insensível a estes sinais. O equilíbrio entre local e estrangeiro quebrou-se, a velha hospitalidade corrompeu-se, o valor da experiência artificializou-se. Há indícios de que a manutenção deste estado de coisas não será eterna e que urge intervir. Neste sentido, o artigo refere o caos recente vivido em alguns aeroportos alemães incapazes de dar resposta ao intenso tráfego aéreo: atrasos, cancelamentos, o pedido de comparência 3 horas antes do embarque! No reverso desta estupenda democratização de um comportamento que longamente foi privilégio e luxo de apenas uns, acumulam-se vítimas. Algumas dão voz ao seu descontentamento, outras conformam-se. Não se podem ignorar as greves dos pilotos da Ryanair em protesto pelas condições laborais  e baixos salários. Afinal foram estas agências low-cost e a facilidade com que internet veio permitir a escolha de acomodação aos muitos viajantes, tornando os preços sempre mais acessíveis, que foi decisiva para o boom turístico europeu. O drama dos locais que deixaram de encontrar apartamentos para viver a rendas acessíveis e se deslocaram para a periferia não abranda e é notícia frequente. São forçados a usar o carro intensivamente ou então transportes públicos também eles a abarrotar de turistas. As lojas da sua antiga vizinhança oferecem agora bens nacionais a preço "para turista" a par de souvenirs importados da China.

Se o rei Midas transformava em ouro aquilo que tocava, também o turismo pareceu, durante anos, ser senhor de idêntico poder. Mas agora os turistas actuais destroem os lugares que amam à sua passagem. Se visitam é porque gostam, não é? Quando a gente gosta, é claro que a gente cuida, canta o Caetano Veloso. O óbvio deixou de ser óbvio tanto que o texto se refere a este movimento de massas como "turismo predatório" e a expressão "Tourist go home" aparece cada vez mais vezes  escrita nas paredes das ruas da Europa. 

Sugestão de leitura

Tourist go home, um filme de Antje Christ

Na Europa, o turismo urbano está crescendo como nunca, gerando bilhões em receita para as autoridades locais. No entanto, muitas cidades não conseguem lidar com o ataque: o caos do tráfego, montanhas de lixo, apartamentos de férias em vez de casas. Não há fim à vista para o boom de viagens. Muito pelo contrário, na verdade: graças ao baixo custo das viagens e a um boom no setor de cruzeiros, os números de visitantes devem aumentar implacavelmente. Os destinos mais populares da Europa poderão ser salvos do colapso?

Is tourism harming Venice?

Com uma infraestrutura cada vez mais adaptada às necessidades do turismo, os moradores remanescentes da cidade sentem-se deixados para trás. Durante a alta temporada, um fluxo de até 130 mil turistas por dia significa que as autoridades municipais têm escassos recursos para atender às necessidades mais mundanas dos moradores. Uma flotilha constante de pequenos barcos transporta passageiros entre as etapas de pouso da cidade e navios de cruzeiro gigantes atracados na lagoa. A qualidade do ar em Veneza é muitas vezes pior do que os centros das cidades. Dentro da última geração, o número de residentes caiu quase um terço. A Ponte Rialto e a Praça de São Marcos tornaram-se as principais atrações deste parque temático veneziano, proporcionando aos habitantes locais empregos no setor turístico, mas pouco mais. Os alugueres são muito altos, o Airbnb governa o lugar. Mais e mais edifícios históricos foram tomados por hotéis. Lojas, bares e restaurantes atendem quase exclusivamente aos turistas. Mas os moradores estão reagindo e agora há mais de 30 iniciativas locais tentando conter as ondas do turismo de massa.

TERRAMOTOURISM | O Documentario

A 1 de novembro de 1755 um terramoto destruiu a cidade de Lisboa. O seu impacto foi tal que deslocou o homem do centro da criação. As suas ruínas legitimaram o despotismo esclarecido.
Lisboa hoje treme novamente, abalada por um sismo turístico que transforma a cidade a velocidade de cruzeiro. O seu impacto desloca o morador do centro da cidade. Que novos absolutismos encontrarão aqui o seu álibi?


Enquanto o direito à cidade derruba-se, afogado pelo discurso da identidade e do autêntico, a cidade range anunciando o seu colapso e a urgência de uma nova maneira de olhar-nós, de reagir a uma transformação, desta vez previsível, que o desespero do capitalismo finge inevitável.

Left Hand Rotation é um coletivo estabelecido em Lisboa desde 2011.
Terramotourism é um retrato subjetivo de uma cidade e a sua transformação ao longo de 5 anos.


Provenciar - Um blogue sobre a Provença

Comentários

Konigvs disse…
São inúmeros os casos de peças que foram destruídas por causa dos auto-retratos! Há uns dois anos estive no Mosteiro de Tibães e a guia contou mesmo que um aluno de uma escola, pendurou-se numa escultura com não sei quantos séculos e partiu-lhe o pescoço. É um tremendo vírus o do querer mostrar, e os auto-retratos digitais já matam mais que ataques de tubarão! E não deixa de ser muito irónico que antigamente muitas pessoas diziam que deveria ser um horror viver numa aldeia porque "tudo se sabe" e afinal hoje, são as próprias pessoas, cada uma delas a querer dar a saber aos outros como é perfeita a sua vida.
Quanto aos turistas, Em Barcelona, no Porto e em Lisboa as pessoas começam a ficar fartos de turistas, mas "se não gostas que te façam a ti não faças aos outros". E certamente que as pessoas que vivem nestas cidades e que não gostam de turistas estrangeiros, vão elas, depois, ser turistas nas cidades dos outros!
E ainda há a questão da sustentabilidade. Uma pessoa pode ser vegetariana, pode reduzir e reutilizar e reciclar, mas há uma atividade que se a fizer, faz imediatamente dessa pessoa umas das mais poluidoras do planeta: andar de avião! Contudo, as viagens de avião estão cada vez mais baratas, e os políticos fingem estar preocupados com o ambiente, atacando as palhinhas e as beatas!
É complexa, a questão. Num dos links, o documentário sobre o que se passa em Veneza, e a propósito da poluição, é triste constatar que a cidade está a sofrer o impacto poluente dos navios de cruzeiro. Deviam fundear ao largo e as pessoas serem levadas em barcos até Veneza. Nem entendo como os deixam aproximar tanto. Apesar de haver legislação para tornar os carros cada vez mais verdes, "esqueceram-se" de criar regulamentação para aqueles gigantes. O avião polui que se farta mas é rápido. E é isso que as pessoas querem. Chegar depressa porque tempo é dinheiro. Gostava da rapidez e conforto do avião mas agora o que eu faria se pudesse era uma grande viagem de comboio, a entrar e a sair em estações por toda a Europa. É difícil dizer a alguém que vive o drama em Veneza que não pode ir visitar Barcelona, que deixou de ser bem vinda lá. São ambos legítimos: o direito à indignação pelo que estão a viver e o direito a viajar um lugar tão magnífico. Tem de ser corrigir o desequilíbrio e já vai tarde. Quanto à doença das selfies, bem, é algo que não consigo entender e muito menos essa tal exposição de tudo e mais alguma coisa ao mundo.
Konigvs disse…
Eu não sei se os carros estão a ficar mais verdes! Há vinte anos andavam-nos a vender a ideia que o futuro eram carros a gasóleo!, que eram os motores que mais evoluíram e em Portugal até se taxou mais a gasolina por forma ao gasóleo ser mais competitivo. De repente, alguém se lembrou que afinal o gasóleo é o pior dos males e que os carros elétricos (com uma pegada ecológica brutal!) é que são o futuro, e eu pergunto-me como é que seria se neste momento todas as pessoas tivessem um carro elétrico em casa a carregar durante a noite, onde é que se ia buscar toda essa energia toda! Vamos construir centrais nucleares, vamos fazer mais barragens? E depois quando um carro elétrico entrar em fim de vida - que vamos fazer com as suas baterias de metais pesados?!
Esta discussão do turismo é mais ou menos como a discussão do tabaco. Permite-se que um fumador estrague a saúde fumando, e depois o SNS terá que pagar os seus tratamentos se tiver um cancro do pulmão, e enquanto isso coloca-se nos maços que "Fumar Mata"! Mas porque não se proíbe simplesmente? Porque dá dinheiro! No entanto se não houvesse cigarros também não havia beatas no chão!
Quanto às selfies é isso mesmo, o mundo anda muito estranho!
Mas claro que estão mais verdes. Não é preciso falar de carros eléctricos, nem estava a pensar neles. Comparando um carro a gasolina da Toyota dos anos 70 e um actual, o novo tem de estar mais apetrechado para poluir menos. Há também que olhar para o processo de fabrico, sinceramente, não faço ideia. Sou daquelas pessoas que não consegue passar junto de um Tesla sem parar, em Leiri já identifiquei uns 4. No entanto levantam-me algumas questões, essa das baterias é uma, a sua fabricação e reciclagem. Quanto ao abastecimento do carro eléctrico é possível que no futuro ele seja feito só com energias renováveis. Sei que a nossa energia eléctrica vem dessas fontes numa percentagem de mais de 50% e deve haver países com maior percentagem. Não estou muito por dentro deste assunto, mas sei que sim, que o carro de gasóleo já foi considerado mais poluente que o de gasolina, depois não, agora deve ser a mesma coisa, para veículos novos, e se não é devia ser, pois já temos tecnologia para isso. Evidentemente que quer no turismo quer na indústria automóvel o vilão maior é sempre esse: o dinheiro. Um dia vamos comer dinheiro, respirar dinheiro, plantar árvores em dinheiro...
Konigvs disse…
Haja alguém com dois dedos de testa. Hoje no Público:
“A solução não é trocar um diesel por um eléctrico, a solução é menos carros”.
Só li o título porque o artigo é para assinantes, mas assino por baixo. A solução não é trocar formas de poluir, a solução é deixar de poluir!
Menos carros é uma ideia atractiva até não termos carro. Vendi o meu há muitos anos e em algumas alturas constato que é difícil contornar a situação. As pessoas não vão desistir do seu transporte próprio. O colectivo não está à altura das necessidades da vida moderna que exige agora mais mobilidade do que há uma geração. A solução é encontrar um meio de transporte individual não poluente e melhorar o transporte colectivo. Como passo a vida a entrar e a sair de autocarros e comboios, vejo que há muita margem para melhorias, e por vezes são coisas simples, como ajustes de horários.
Beatriz Sousa disse…
É verdade!!! As pessoas hoje em dia vivem obcecadas com a Internet e a necessidade de mostrarem que estiveram em y e x. Se todos nós vivêssemos sem nos preocupar com as aparências e se não fossemos tão arrogantes não íamos para campos de lavanda estragar tudo só para tirar uma foto. Nem para a Lello estragar a magia da livraria só para tirar mil fotos. Tenho imensa pena, porque só lá entrei uma vez quando era de graça, mas já tinha tanta gente que vim embora rápido, porque não gosto de sítios assim cheios de gente. Agora sei que tão cedo nunca a visitarei e todos os dias quando passo por lá é uma fila enorme só para dizerem que foram à livraria do harry potter :(