O síndrome dos restaurantes chineses e o E621

This photo of Restaurante Chines Kang Le is courtesy of TripAdvisor

Já conhecem o Sr. Basílio? Não, evidentemente que não é chinês. Travei conhecimento com ele ontem, num corredor de supermercado. Apareceu com um tabuleiro cheio de batatas fritas polvilhadas com pimenta preta das Índias. Vinha  de camisa às riscas engomada, laço, colete e avental,  bigodaça sorridente e "palhinhas", bem escoltado  por duas naus portuguesas com a Cruz de Cristo nas velas enfunadas. Trouxe-o comigo. Só quando cheguei a casa é que li o rótulo. A Batata Pimenta Preta das Índias - Batatas Fritas Lisas continha glutamato. Na rotulagem indicava-se que são Batatas (63,8%) fritas em óleo de girassol alto oleico (31%)  e 4, 2% de aroma de 4 pimentas, farinha de trigo, especiarias (pimenta preta, pimenta de Sichuan, e pimenta branca), sal,  intensificador de sabor - E621, i.e, glutamato monossódico, levedura em pó, pimento vermelho, açúcar, cebola em pó, extrato de levedura e extrato de especiarias (pimenta preta e pimenta rosa) e sal (1,0%). Alerta-se que podem conter vestígios de leite, soja, aipo e mostarda.

O Sr. Basílio lança uma boa piscadela de olho a quem passa pelas prateleiras repletas de sugestões. A embalagem é gira. E eu, uma aficionada por pimenta em todas as suas variedades, deitei logo a mão ao Sr. Basílio. Mas custava assim tanto zelar para que as informações acima estivessem escritas de forma mais cuidadosa? Do lado da frente lê-se "Pimenta Preta das Índias", do lado de trás é "aroma de 4 pimentas" mas a seguir referem-se três pimentas quando referem especiarias -  pimenta preta, pimenta de Sichuan, e pimenta branca - e, mais adiante, "extrato de especiarias ((pimenta preta e pimenta rosa)."  Ora, tanta repetição não abona a favor do produto, sobretudo para picuinhas como eu, a quem, por vezes, já coube escrever rótulos. Mas o que me causa maior cisma é isto: para quê juntar glutamato às batatas se elas já estão carregadas de pimentas, pimento e cebola? Não é tudo isso aroma q.b.? Desde que me lembro que polvilho as minhas batatas fritas com pimenta, o que até já tem causado alguma surpresa em convívios no restaurante. Uma só qualidade de pimenta já empresta bastante aroma às batatas fritas. Ora, o Sr. Basílio diz que são quatro qualidades de pimenta, e pimento vermelho, e cebola, e até açúcar! E o glutamato. Para quê juntar o glutamato, sr. Basílio? Havia alguma necessidade?


A SIA Aperitivos é a responsável pela marca Sr. Basílio

Qual a história do glutamato? No início do séc. XX, Kikunae Ikeda, um professor de química japonês, identificou uma substância natural capaz de realçar o sabor a partir da análise de algas marinhas, onde ela está naturalmente presente. Também se encontra em queijo parmesão, carne de porco, frango,cogumelos, espinafre, espargos, repolho e cebola, caranguejo Kamchatka, ervilhas e milho, mariscos, queijo cheddar, cavala, tomates maduros, sardinha, queijo emmental, presunto, bacon, molho de soja e algas kombu. Mais tarde isolou os cristais de ácido glutâmico e depois conseguiu criar o aditivo sintético MSG - abreviatura de glutamato de sódio - em larga escala na sua fábrica - Ajinomoto, (que significa essência de sabor) - que é agora o maior produtor mundial de MSG. O aminoácido glutamato (ácido glutâmico) é o responsável pelo gosto umami (うま味), considerado o "quinto" gosto básico, além dos doce, amargo, ácido e salgado, e que em japonês, significa saboroso ou gostoso. O MSG não tem exactamente um sabor mas parece que cria a ilusão de sabor. O ingrediente, levado para os EUA por emigrantes chineses, não se difundiu nos Estados Unidos até depois da II Guerra Mundial, quando as forças armadas dos EUA perceberam que as rações japonesas eram muito mais saborosas do que as versões norte-americanas por causa do MSG, que também aparece nos rótulos como ácido glutâmico e extracto de levedura.

Uma pessoa já não pode realmente confiar naquilo que compra para comer e o melhor é evitar alimentos processados, alimentos preparados para durar anos, entre outros, ou consumi-los com moderação, e optar ao máximo por confecionar em casa. Por exemplo, batatas fritas quentinhas, acabadas de fazer, e cheias de pimenta! Mas nem sempre nem nunca. Esta compra foi uma excepção: cortaram-me o gás e andei a improvisar refeições com alguns produtos que habitualmente nunca compro. Na minha opinião, não é por ter comprado um pacote de batatas fritas com glutamato que vou colocar a minha saúde em risco, mas preferia comer batatas sem este aditivo, desde logo por não ver a necessidade de mais sabor. Será razoável a minha decepção? É assim tão invulgar que apareça glutamato nos produtos alimentares? E será  realmente mau ingerir glutamato?

O assunto não é pacífico. Há quem defenda que o glutamato monossódico, conhecido pelo código E621 na lista de aditivos alimentares, é inócuo, e até benéfico, por exemplo, na dieta de pessoas que sofrem de hipertensão. Para eles, o sal é contra-indicado podendo a adição do MSG ser uma alternativa de sabor. E621 é um E-número. Isso significa que ele é um agente ou aditivo aprovado e autorizado na União Europeia. Existem mais de 300 números diferentes e todas estas substâncias podem ser adicionadas aos alimentos na UE para preservar de micro-organismos ou da oxidação, para dar cor, para adoçar, etc. No caso de E621 pode ser usado um máximo de 10 gramas por quilograma de alimento e os fabricantes estão obrigados a indicar na embalagem que esta substância foi adicionada. Usando de moderação no consumo desses produtos talvez possamos não nos preocupar assim tanto com o uso de aditivos até porque, infelizmente, estes E-Coisos entram em quase tudo o que está nas prateleiras dos super.

Há também quem diga que o MSG  pode ser tóxico, que é viciante, que engorda, aliás, mais até, que pode ser  "um assassino silencioso." A abundância de informação na internet é tal que, por vezes, já nem sabemos o que é ou não verdade. Já ouviram falar do "síndrome dos restaurantes chineses" ou "MSG Symptom Complex"? Um tal de um desconforto geral relatado por algumas pessoas, que seria uma espécie de alergia ao MSG, dores de cabeça e dormência no pescoço, rubor, palpitações, sentidos após a refeição? Pois. É uma falsidade. Foi uma brincadeira com autor e data  conhecidas. A história pode ler-se na Colgate Magazine. Uma carta publicada no New England Journal of Medicine (NEJM), em 1968, com o título Síndrome do restaurante chinês dava conta do mal estar de alguém após ingerir comida no chinês, atribuindo a causa a algum ingrediente no molho de soja, e ainda referia que havia quem dissesse que tal se devia ao alto teor de sódio ou de MSG. Assinava Robert Ho Man Kwok, MD, Senior Research Investigator, National Biomedical Research Foundation, Silver Spring, Md, pedindo pesquisa sobre o assunto à classe médica. As edições subsquentes dos jornais publicaram respostas a essa carta por parte de outros médicos que denotavam um racismo latente mais pronto em estigmatizar a identidade chinesa e ridicularizar a sua gastronomia do que questionar o uso do MSG. LeMesurier, investigou e publicou a sua análise do sucedido, e um dia foi contactada pelo autor da carta, Howard Steel. Steel, um jovem ortopédico, explicou que decidiu escrever a carta após uma refeição bem regada de cerveja num desses restaurantes para ganhar uma aposta com um colega: a de que os ortopédicos nunca conseguiam publicar nada num jornal médico. Assinou com um trocadilho no nome fictício e referiu até uma instituição falsa. Mas ninguém notou e o próprio jornal não lhe deu qualquer atenção quando ele ligou a relatar que a carta era apenas uma brincadeira: tudo falso.

Ora, por anos frequentei restaurantes chineses, entre muitos o Kang Lee, e nunca me sucedeu sentir-me mal. Mas o facto de nada me acontecer não significa que não possa suceder a outros. Só que o tal "Síndrome dos Restaurantes Chineses" não existe. Mas não falta quem ainda hoje divulgue a sua existência em postagens de blogues - onde puxam e lustram este assunto para depois tentar vender ebooks sobre regimes e  produtos saudáveis no final da postagem - e até em artigos de jornais online, onde até se lêem testemunhos de enfartamento, dormências e tonturas depois de ter ido "ao chinês". Acreditam e juram a pausinhos juntos que  vão ao restaurante chinês e saem de lá muito mal. Lamento informar que terão de procurar outra justificação que não o tal sindroma do restaurante chinês. Podem, muito certamente, ser alérgicos a qualquer das coisas que ali ingiram, devendo até fazer uns testes para despistar uma evntual alergia, que tanto pode acontecer ali, como em casa ou num banquete. O que quer que seja que acontece a essa gente sofredora não é isso: talvez muita Lao Tse, muito gelado flambé e licor de arroz ajudem a explicar o transe, mas tal sindroma não existe, mesmo se o MSG parece ser ali um dos ingredientes obrigatórios, desde logo está presente no molho de soja, sim. Reparem que o MSG também pode ser encontrado na comida dos restaurantes não chineses, e até na nossa cozinha em temperos em cubos, carne e peixe congelados, sopas enlatadas e temperos para saladas. É um sal universalmente utilizado na indústria alimentar como intensificador de sabor. A indústria dos alimentos processados já não passa sem ele, mas nós passamos, se quisermos, basta ler os rótulos. Foi o que eu não fiz, não é verdade, Sr. Basílio?


Comentários