Bichinho de conta, e outros poemas de Sidónio Muralha


Bichinho de conta

Bichinho de conta
conta…
E o bichinho de conta
contou
que um dia
se enrolou
e parecia
um berlinde pequenino
de tal maneira
que um menino
de brincadeira
com ele jogou…

Bichinho de conta
conta…
E o bichinho de conta
contou.

Cãozinho

Eu tenho um cão
muito pequenino
que me cabe na mão
e não é ladino...
Só se põe a correr
se o seu menino
lhe mexer...

Não come carne nem peixe
mesmo que o deixe...
Nem trinca chocolates e bolos
como os cães tolos...
Nem come sopinha
por mais que lha dê...

E não bebe leite
antes que se deite
na sua caminha...
E que coma açorda
ninguém se recorda...
Nem papa farinha...

E sabem porquê?
Ninguém adivinha?

-- é que o patetinha
é um cão de corda.

Joaninha

A joaninha bonita
que mora a meio do caminho
da rua das violetas
tem um vestido de chita
todo ele encarnadinho
e cheio de bolinhas pretas.

E quando a gente lhe diz:
-- «Joaninha voa, voa,
não me digas que tens medo,
se voas serás feliz
que o teu pai está em Lisboa
foi lá comprar um brinquedo...»

A joaninha responde:
«Se és amigo verdadeiro
não me digas voa, voa,
-- voar sim, mas para onde? --
o meu pai não tem dinheiro
para ter ido a Lisboa...»

E a joaninha bonita
lá se fica no caminho
da rua das violetas
com um vestido de chita
todo ele encarnadinho
e cheio de bolinhas pretas...


O livro Bichos Bichinhos e Bicharocos pode ser comprado online, na WOOK. 

A obra Bichos, Bichinhos e Bicharocos, de Sidónio Muralha, cuja primeira edição data de 1949, foi reeditada posteriormente e assim permitiu que fosse redescoberta e acarinhada por novas gerações de leitores. Foi um acontecimento literário que estes nove poemas repletos de jogos de palavras, protagonizados por oito animais - Bichinho de Conta, Papagaio, Estrelinha, Pato Marreco, "Cãosinho", Joaninha, Macacos, Sapo Sapinho e Grilos e Grilões - e uma estrelinha, no entender de João Lobo Antunes, que escreveu o prefácio da reedição de 1977, "um bichinho do céus", voltassem às mãos e aos olhos deslumbrados das crianças. "Muitas vezes, Sidónio Muralha encontra no animalismo o caminho para levar alegria e poesia ao mundo dos mais pequenos, sem deixar de ter olhos para o que se passa no mundo e não se pode ocultar às crianças." (Breve História da Literatura para Crianças em Portugal, Natércia Rocha)

Muito curiosa é a errata sobre a gralha "Cãosinho": "Gralha, que é por sinal um pássaro muito barulhento, quer também dizer erro tipográfico. Uma dessas gralhas entrou no índice do nosso livro e só assim se explica que a palavra cãosinho apareça escrita coms,quando, na verdade, deverá escrever-­se com z. O cãozinho, que ficou muito triste quando viu a gralha, pede a todos os seus amiguinhos o favor de lhe corrigirem o nome."

Um dos percursores do movimento neo-realista em Portugal, a par de Alves Redol, Sidónio Muralha, que repartiu a sua vida entre Portugal e Brasil, onde se fixaria em definitivo até final da sua vida, marcou o universo de literatura infantil portuguesa, ao realizar este livro, um entre a dezena e meia que publicou, com Francine Benoit e Júlio Pomar, artista plástico também ele em sintonia com a estética neo-realista na pintura portuguesa.

Do site da Wook, sobre Bichos, Bichinhos e Bicharocos: "Esta é uma reedição muito especial: vamos ouvir pela primeira vez as três canções escritas pela musicóloga Francine Benoit sobre os poemas de Sidónio Muralha, mais de sessenta anos depois de impressas em papel. Para esta 3.ª edição em cuidado fac-símile da obra original, foram gravadas em CD por um coro com mais de 140 crianças dos Jardins-Escolas João de Deus em Lisboa (Estrela, Alvalade e Olivais). Uma estreia absoluta.

Razão de sobra para redescobrirmos, e darmos a descobrir aos mais novos, este extraordinário pequeno livro que fez parte da infância de muitos de nós. Os deliciosos poemas de Sidónio Muralha, musicados por Francine Benoit, deram também o mote a Júlio Pomar para, então com 23 anos, criar dezenas de ilustrações inesquecíveis: os macacos com o espelho em cacos, os grilos grilões, o papagaio que faz banzé, o sapo sapinho doutor…!"

Alguns poemas de outros livros para crianças do mesmo autor

Pintassilgo

O pintassilgo diz:
- nada me consola,
eu não sou feliz
nesta gaiola.
Do céu azul e da amplidão
eu sinto muitas saudades.
Não quero esta solidão
cada minuto e segundo.
Crianças, quebrem as grades
de todas as gaiolas do mundo.

Xadrez

É branca a gata gatinha
É branca como farinha.
É preto o gato gatão
É preto como o carvão.
E os filhos, gatos gatinhos,
São todos aos quadradinhos.
Os quadradinhos branquinhos
Fazem lembrar mãe gatinha
Que é branca como a farinha.
Os quadradinhos pretinhos
Fazem lembrar pai gatão
Que é preto como carvão
Se é branca a gata gatinha
E é preto o gato gatão,
Como é que são os gatinhos?
Os gatinhos eles são,
São todos aos quadradinhos.


Curiosidade: Carta de Carlos Drumond de Andrade a Sidónio Muralha

Rio, 14 de maio, 1979.

Caro Sidónio Muralha:

Tantas finezas a agradecer-lhe – e o tempo fugindo como água nas mãos; estas mãos de setenta e muitos anos...
Tanto “Bichos, bichinhos e bicharocos”, nas duas edições (cada qual mais atraente) como nessa coisa encantadora que são os poemas de “Film en coleur”, encontro a marca de sua humanidade poética, para quem a vida é um todo sensível – bichos e gente unidos na mesma essência. Com “humour” e coração, você anulou a fronteira entre uns e outros, desvendando-nos as verdades profundas da natureza.
Seu telegrama de março ajudou-me a romper o desânimo da gripe. Foi um mês difícil, com doentes em casa, e sem empregada. Isso atrasou muito a minha correspondência, já de si impontual apesar da vontade que eu tenho de mantê-la em dia.
Vou ver se, do fundo da minha falta de jeito, mando a Alexandre Cabral uma palavra de conforto, na hora triste que ele está vivendo.
Por tudo, o abraço de agradecimento pleno e cordial do seu

Carlos Drummond de Andrade



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