É Carnaval! Ninguém leve a mal um cartoon medieval!



Falo. Do grego phallós, através do latim phallus, usualmente, a palavra remete à simbologia dada às representações da imagem de um pénis erecto.

Alguém partilhou parte da imagem acima no meu feed facebookiano, apenas o gato com o falo na boca. Imaginei logo que era um gato de Amarante! Nada mais se acrescentava, segundo a prática corrente na internet de não citar fontes, autorias, etc. Mas uma busca rápida revelou-me a imagem completa, muito mais curiosa. Há uma freira com um peixe na mão e um bobo à janela. Notem ainda as calças que o bobo tem na mão e o falo pendurado no rosário que a freira segura na outra mão.

De acordo com uma opinião no Reddit, este autêntico cartoon medieval talvez possa ser uma gravura de um "Fastnachtspiel", um teatro burlesco medieval famoso durante a metade e no final do século XV, especialmente durante o carnaval ("Fastnacht") em Nürnberg. Outra opinião no Vulgar Crowd  refere antes tratar-se de uma sátira protestante ao celibato dos católicos ao tempo da Reforma.  Outra explicação é acrescentada nos comentários do Vulgar Crowd: A citação inscrita na imagem deriva de um provérbio espanhol antigo: Carne, carne cria; e peixes, água fria.  Ou seja, a carne sacia mais que o peixe.   O provérbio também existe na Alemanhã:  “Fleisch macht Fleisch und Fische kaltes Wasser”, com o mesmo significado.  O peixe é igual a água fria, celibrato.  A carne é igual a pénis, é igual a desejo carnal. A freira quer trocar celibato por desejo carnal.

Ora, confesso que não sou muito instruída no que à história da Alemanha, seus usos e costumes, respeita. Prova disso é que fiquei estupidamente intrigada com um Carnaval antigo de 600 anos em Nuremberga, quando, afinal, a Alemanha tem uma enorme tradição carnavalesca e mais palavras que tipos de salsicha para designar a festa consoante a região onde acontece: Fastnacht, Fasching, Fasnacht, Fasnet, Fastabend, Fastelovend or Fasteleeraber. O tal "Fastnacht" de que alguém falava em relação à gravura da freira malandreca e do gato parece que se liga a fasten ("jejuar"), alegadamente a celebração na véspera que precede a quaresma, tempo de jejum e penitência. Não há norma sem excepção e o povo alemão, tradicionalmente contido, sério e pouco exuberante, no Carnaval dá largas à folia. Diz-se que a vida são dois dias e o carnaval são três, mas na Alemanha não se contentam com tão pouco. Chamam-lhe "a quinta estação do ano" e esta começa a 11 de Novembro e termina com o início da Quaresma, sete semanas antes da Páscoa.

Durante anos a fio a Alemanha era aquele país europeu de que ninguém gostava na restante Europa. No meu caso,  ter sido forçada a conviver com um amigo de uma amiga que era um grande entusiasta da cultura germânica não foi positivo. Aturar várias das suas incursões pelo tema, noites dentro, quando já tinhamos todos bebido um copo a mais,  funcionou no sentido contrário do meu interesse pela cultura alemã. Não ajudou também ter passado pelo aeroporto de Frankfurt em trânsito - agora constato que estive em solo alemão por alguns minutos - e observar muitos homens vermelhudos, de face brilhante e pança dilatada, a beber grandes canecadas de cerveja encostados a balcões. Aquela imagem pesou-me mal e nem sei bem porquê. Não recordo já se haveria pratos com bratwurst por perto. Talvez eu tivesse apenas sede e fome e não pudesse parar. Desde então, se penso em alemães, não me ocorrem as mentes brilhantes, Einstein, Beethoven, Goethe, e antes aquela porção de homens anónimos, agora até já  bonacheiramente ecoando nos meus ouvidos as palavras longas e sibilantes, impronunciáveis que ouvi à minha passagem.

Entre o tempo em que os imperadores romanos não resistiram às invasões dos bárbaros germanicos, um povo tribal que acreditava que depois da morte os bravos entrariam no paraíso de nome Valhalla, onde eram aguardados pelas valquírias,  as virgens guerreiras, e a IIGG, para mim, era como se a Alemanha nem sequer existisse. Depois disso, mesmo antes da década de 90,  a queda do muro de Berlim foi um dos acontecimentos históricos meus contemporâneos que mais me emocionou. Um pouco depois, em 2005, apareceu a chanceler Angela Merkel, a mutti (mamã) dos alemães, mas só fiquei impressionada quando, uns anos mais tarde, ela se revelou a madrasta insensível de todos os povos do sul durante a crise da zona do euro. Ela e Schäuble, foram carrascos para os gregos, mas também a nós exigiram  valentes cortes orçamentais no negócio do apoio a pacotes financeiros de resgate. A senhora dona austeridade irá abandonar o cargo de chanceler no fim do mandato, em 2021. Assim fui e vou colecionando factos avulsos sobre a Alemanha, por exemplo, Os contos dos irmãos Grim,  desde a infância, Das Leben der Anderen, (As vidas dos outros) um filme que adorei, ou os poemas de Rilke.

Quando penso em Nuremberga, a segunda maior cidade alemã depois de Munique, penso imediatamente em nazismo, nos grandes comícios do Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães (NSDAP, sigla em alemão), e nas paradas. E no tribunal que os julgou. Esqueço que existe monumentalidade apreciável pois dou como certo que nada escapou aos bombardeios aliados da II GG. Lastimo que a fantástica cidade antiga tenha sido reduzida a escombros em virtude dali ter irradiado a maior parte da propaganda nazi. Apenas sei da existência de um relógio na igreja de Frauenkirche, onde, ao bater do meio-dia, sete figurinhas giram em torno do imperador em procissão - os sete eleitores- depois de outras já terem animado a fachada gótica agitando e tocando os seus instrumentos. Nuremberga é, para mim, uma igreja gótica e um relógio animado numa praça.

Mas quando penso em Nuremberga penso também em Albrecht Dürer, o autor da gravura do rinoceronte indiano desembarcado em Lisboa, no reinado de D. Manuel I. Alguém viu o rinoceronte em Lisboa e enviou uma carta com um desenho para Nuremberga, onde o artista vivia. Foi com base nessa carta  que  Dürer desenhou o animal que parece equipado com uma armadura e que foi tido como fidedigno até ao séc. XVII. A gravura tornou-se famosa mesmo sem haver internet nem Reddit! Foi uma espécie de percursora das fake news. O meu affair com Dürer começou no desconhecimento de quem ele tivesse sido ou feito. Um dia vi o seu auto-retrato num livro, era eu uma miúda, ainda mal sabia ler. Ficou-me gravado na memória como o homem mais belo que alguma vez vira. Ainda em idade de histórias de princesas e príncipes, doravante qualquer  príncipe seria Dürer. Cedo me interessei por arte e descobri, uns anos depois, que Dürer era um príncipe das artes, um mestre do desenho e da xilogravura.


                                                                                  Fonte

Há um livro da autoria de Peter Burke, um historiador inglês,  Cultura Popular na Idade Moderna: Europa, 1500-1800, que contem dados curiosos sobre o antigo Carnaval Europeu, e até faz referência ao de Nuremberga. Eis algumas passagens.

"A  estação do Carnaval começava em Janeiro, ou mesmo em finais de Dezembro, sendo que a animação crescia à medida que se aproximava a Quaresma. O local do Carnaval era ao ar livre no centro da cidade." O autor diz que o Carnaval era uma espécie de peça de teatro onde todas as ruas e praças eram palcos. Os habitantes eram simultaneamente actores e espectadores. Era uma festa em que se comia em excesso: "trinchar, devorar e entupir-se à tripa forra que a gente acharia que as pessoas mandaram para a pança de uma só vez as provisões de dois meses, ou que lastrearam suas barrigas com carne suficiente para uma viagem até Constantinopla ou as Índias Ocidentais. " Comida e bebida até fartar, como se nunca mais na vida fossem beber, enquanto se cantava e dançava ao ara livre, usando máscaras, algumas com narigões, - que se pensa fossem símbolo fálico - ou então fantasias completas. "Os homens vestiam-se de mulher, as mulheres de homem; outros trajes populares eram os de padre, diabo, bobo, homens e animais selvagens. Bobos e selvagens corriam ruas afora, batendo nos circunstantes com bexigas de porco e até com varas. As pessoas atiravam farinha umas nas outras, ou mesmo confeitos com a forma de maçãs, laranjas, pedras ou ovos, que podiam ou não estar cheios de água de rosas. Em Cádiz, o ubíquo visitante inglês viu mulheres nos balcões a despejar baldes d'água nos homens embaixo. Os animais eram vítimas usuais da loucura do Carnaval; os cachorros podiam ser balançados de um lado para outro, dentro de cobertores, e os galos apedrejados até a morte. A agressão também era verbal; trocavam-se muitos insultos e cantavam-se versos satíricos."

A imensa peça de teatro nas ruas da cidade não era encenada mas já existiam alguns acontecimentos mais  estruturados, organizados por rapazes jovens, por exemplo, o desfile. O autor refere que em Nuremberga, "havia  um único carro alegórico, Hölle, trazido num trenó pelas ruas até à praça principal. Muitas vezes, ele adoptava a forma de um navio, que lembrava as procissões com carros-navios ocasionalmente mencionadas em épocas antigas e medievais." Também eram habituais a realização de competições como  disputas no ringue, as corridas de cavalo e as corridas a pé, e ainda a apresentação de algum tipo de peça, geralmente uma farsa. "O último acto da festa muitas vezes era uma peça na qual o"Carnaval" enfrentava um processo simulado, fazia uma falsa confissão e uma imitação de testamento, era executado de brincadeira, em geral na fogueira, e recebia um funeral de gozação. Ou, ainda, um porco podia ser solenemente decapitado, como acontecia anualmente em Veneza, ou uma sardinha podia ser enterrada com todas as honras, como era o caso em Madrid."

No Carnaval antigo podiam ser identificados três temas principais: a comida, o sexo, e a violência.
A palavra Carnaval deriva de "carne", isso é uma evidência. Nesta festa o consumo de carnes, porco e vaca, sobretudo, era enorme, mas também representado simbolicamente." Por exemplo, - escreve o autor - o "Carnaval" pendurava frangos e coelhos nos seus trajes. Em Nuremberga, Munique e outros lugares, os açougueiros desempenhavam um papel importante nos rituais, dançando, correndo pelas ruas ou mergulhando algum novato na água. Carne também significava "a carnalidade". O sexo, como é usual, era mais interessante simbolicamente do que a comida, devido às várias maneiras de se disfarçar, por mais transparentes que esses véus possam ser. O Carnaval era uma época de actividade sexual particularmente intensa. "

O Carnaval era um tempo de violência e um pouco por toda a parte onde se festejava eram registadas agressões e até mortes. Nessa ocasião, a agressão verbal era permitida; os mascarados podiam insultar os indivíduos e criticar as autoridades, mas a violência física também era tolerada: "Rapazes armados de cacetes, pedras, marretas, réguas, trolhas e serras de mão saqueavam os teatros e atacavam os bordéis", com os bolsos cheios de pedras para atirar no aguazil e seus homens,quando chegavam ao local."

O Carnaval era ainda uma representação do "mundo virado de cabeça para baixo", tema favorito na cultura popular dos inícios da Europa moderna: " O "mundo de ponta-cabeça" prestava-se a ilustrações, e dos meados do século XVI em diante foi um tema predileto em estampas populares. Havia a inversão física: as pessoas ficavam de ponta-cabeça, as cidades ficavam no céu, o sol e a lua na terra, os peixes voavam ou, item caro aos desfiles de Carnaval, um cavalo andava para trás com o cavaleiro defrente para a cauda. Havia a inversão da relação entre homem e animal: o cavalo virava ferrador e ferrava o dono; o boi virava açougueiro, cortando em pedaços um homem; o peixe comia opescador; as lebres carregavam um caçador amarrado ou giravam-no no espeto. Também se representava a inversão das relações entre homem e homem, fosse inversão etária, inversão de sexo ou outra inversão de status.O filho aparecia batendo no pai, o aluno batendo no professor, os criados dando ordens aos patrões, os pobres dando esmolas aos ricos, os leigos dizendo missa ou pregando para o clero, o rei andando a pé e o camponês a cavalo, o marido segurando o bebê e fiando, enquanto sua mulher fumava e segurava uma espingarda. É muito fácil documentar a atitude das classes altas, para as quais essas imagens simbolizavam caos, desordem, desgoverno. O Carnaval, em suma, era uma época de desordem institucionalizada, um conjunto de rituais de inversão. Não admira que os contemporâneos o chamassem de época de "loucura" em que reinava a folia. As regras da cultura eram suspensas; os exemplos a seguir eram o selvagem, o bobo e o "Carnaval",que representava a Natureza." 


Bom Carnaval! Divirtam-se!👯👾💂

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