O absentismo e abandono escolar na comunidade cigana


Outra questão em evidência no vídeo que vimos no Workshop de Género é a do absentismo e abandono escolar da miudagem cigana. De acordo com o Estudo Nacional sobre as Comunidades Ciganas, da autoria de Manuela Mendes, Olga Magano e Pedro Candeias, em 2014, só 2,5% dos cidadãos de etnia cigana completaram o ensino secundário ou fizeram estudos acima deste nível; 39% completaram apenas o ensino básico, maioritariamente o 1.º ciclo, e só cerca de 6% o 3.º ciclo; as mulheres ciganas têm um nível de escolaridade ainda mais baixo do que os homens, sendo raros os casos em que ultrapassam o ensino básico (1.º ciclo); existem elevados índices de abandono escolar desta população: 14,7% responderam afirmativamente quando questionados sobre terem filhos e/ou netos a cargo que não tenham ido ou que tenham abandonado a escola antes da escolaridade obrigatória. Principais razões são o “já terem aprendido o necessário” e “o facto de estarem noiva/os, casada/os, grávidas ou terem sido recentemente mães/pais”. O mesmo relatório indica que os casamentos na comunidade cigana acontecem precocemente (51,9% casa entre os 15 e os 19 anos). Os rapazes exibem maiores níveis de escolaridade do que as raparigas mas o seu absentismo é grande por acompanharem os adultos nas feiras.

Mas “A mudança está a acontecer, ainda que devagarinho, dentro da população cigana portuguesa. Em 2016/2017, havia pelo menos 11.018 crianças e jovens de etnia cigana matriculados no ensino obrigatório. Há 20 anos eram quase metade disso: 5921.” No entanto, se o pré-escolar assusta cada vez menos as famílias ciganas, a presença destes alunos diminui à medida que a escolaridade sobe: há uma quebra do 1.º para o 2.º ciclo. No 3.º ciclo é ainda pior, muito poucos chegam ao secundário, mas há quase tantas raparigas como rapazes a frequentar esse nível de ensino. O insucesso é ainda elevado, com muitas reprovações.

Em 1993, o Plano Especial de Realojamento (PER), permitiu alojar muitas famílias ciganas em bairros de habitação social em Lisboa e no Porto. A sedentarização facilitou o acesso à escola. Depois, em 1997, a medida "rendimento mínimo garantido” teve grande impacto na criação de hábitos escolares na comunidade: muitas crianças ciganas passaram a ir à escola, uma exigência para a atribuição do subsídio às famílias, além da disponibilidade destas para aceitar trabalho. Por incrível que possa parecer, os ciganos tornaram a medida famosa. Se não fossem eles, quase ninguém saberia dela, estou certa. Poucos reconhecem o impacto positivo do RMG na comunidade - as crianças passaram a frequentar a escola, mães e filhos foram cobertos pela saúde materno-infantil e mulheres e homens tiveram acesso à formação - e quase todos repetem desde então que os ciganos vivem do rendimento mínimo, hoje em dia, renomeado para Rendimento Social de Inserção, sendo requerido pelas famílias para uma duração de 12 meses (renovável não automaticamente). Estarei a esticar-me se disser que talvez apenas 6 % do total de famílias portuguesas abrangidas pela medida são de etnia cigana, possivelmente 50% do total dos ciganos recebem apoio. As restantes 94% de famílias não ciganas bem que poderão viver nas exactas condições de pobreza, desemprego, marginalidade, etc, que ninguém chora cada euro do subsídio que o Estado lhes paga.

Mas a par desses promissores resultados do RSI sempre houve a registar uma elevada taxa de abandono escolar. Outras medidas foram-se sucedendo, por exemplo, o Programa Territórios Educativos de Intervenção Prioritária, com o objetivo de melhorar a qualidade da aprendizagem, o sucesso educativo dos alunos, o combate do absentismo e do abandono escolar precoce, abrangeu muitos alunos de etnia; depois veio ainda o Programa Escolhas, que também incluiu crianças e jovens ciganos, etc, talvez outros que eu desconheço.

Porque é que os ciganos retiram as crianças da escola? Para os ciganos, é a família, e não a escola, a fonte da educação e socialização primordial para a criança. Os ciganos reconhecem a importância da escola mas têm, tradicionalmente, muitas reservas em relação à mesma. Por exemplo: as famílias temem que as suas crianças sejam alvo de preconceito, por professores, funcionários, colegas, e que fiquem sem defesa em território estranho. Não acreditamos, claro, que isto possa acontecer em Portugal mas, apenas um exemplo, embora já longínquo no tempo: no ano de 2003, em Teivas, Viseu,  um grupo de encarregados de educação foi notícia porque fechou a escola a cadeado para obrigar 14 crianças de etnia cigana a deixarem a escola. Os professores e alunos foram impedidos de entrar. À entrada havia faixas onde se podia ler: “Fora com os ciganos.”

As famílias temem que as crianças percam a sua identidade cultural, e em especial o contacto das meninas, nos seus doze, treze anos, com rapazes não ciganos: o casamento fora da etnia leva à expulsão das jovens, logo, ao enfraquecimento do clã. Não reconhecem interesse na cultura veiculada na escola, que não inclui a sua. Logo, não estão predispostos a contrariar as crianças, se desinteressadas, não motivam para escola, demitem-se facilmente do acompanhamento escolar, que não querem, não sabem, nem podem fazer.

Receiam que, à partida, os filhos reúnam e exibam menos competências que os outros, mais dificuldades de aprendizagem. A utilidade da escola reside sobretudo em aprender a ler e a escrever. Não é estranho que muitos ciganos tenham sido presos por conduzirem sem habilitação legal: analfabetos não podiam tirar a carta, mas precisam de se movimentar. Muitos fazem contas de cabeça com enorme habilidade, é esse tipo de saber que desejam, um saber instrumental. Os ciganos valorizam mais o conhecimento prático do que o abstracto, a transmissão oral em vez da leitura, que a escola promove.

A grande mobilidade das famílias, muitas obrigadas a levantar o acampamento e a mudar de pouso, ou mesmo as sedentárias, que por razão inerente à feiragem, acabavam por ficar ausentes de casa, aliando-se a isso o facto de não ser admitida a separação da criança da família, por tempo longo, acompanhando-a nas suas viagens, mesmo que não seja para ajudar nas feiras, ou ainda o acesso difícil à escola, geram absentismo.

As razões que levam crianças e jovens em geral a abandonar prematuramente o ensino são variadas e podem concorrer. A estas, junta-se, no caso das meninas ciganas, a cultura patriarcal. A cultura patriarcal limita as aspirações de muitas meninas e mulheres ciganas quanto a percursos escolares e profissionais. As meninas deixam a escola básica para aprenderem a ser mães. Vão ajudar a cuidar dos irmãos mais novos e das tarefas domésticas. Mais tarde, entende-se que a mulher é fraca moralmente e precisa de ser guardada, protegida. O que se pretende é evitar que as meninas se relacionem com os rapazes da sociedade não minoritária.

Este quadro explicativo não pode deixar de nos surpreender negativamente pois para nós é simples e evidente que  a escola é o futuro. No entanto é hoje até mais habitual do que foi no passado, na nossa comunidade, o questionamento sobre a escola e os seus resultados. Também o quadro escolar dos alunos não ciganos não deixa de colocar enormes preocupações como, por exemplo,  a desmotivação e a indisciplina, ou a quase completa falta de hábitos de trabalho e método dos alunos, sendo que muitos deles até têm, à partida, todas as condições materiais para ter sucesso.

Mas leiam agora sobre um caso em que é o Estado que vem legitimar o abandono escolar de uma rapariga de 15 anos de etnia cigana. O Tribunal entendeu que o “costume” cigano e o facto de a mãe estar doente eram razões lícitas para justificar o abandono do ensino escolar obrigatório e ficar em casa. A juíza arquivou o processo, dizendo que “a menor não demonstrava motivação” para ir às aulas. Por pertencer à etnia cigana a juíza considerou que “não necessita de frequentar a escola”.

O sucesso escolar pode ser explicado por muitos factores como a origem social dos alunos, o domínio da sua língua utilizada na escola e a dos pais, a forma como estes acompanham e valoram o interesse que os filhos têm na escola, o valor que ambos dão aos estudos, a facilidade no acesso físico à escola, etc. Mas outras condições influem, como, por exemplo, se são migrantes, se estão sujeitos a discriminação ou fenómenos de pobreza persistente. No vídeo a que assistimos no workshop a professora não valorizava o absentismo. Hoje, na maioria das escolas, o absentismo é muito controlado, o que pode acontecer é uma lenta capacidade de identificação da sua causa e capaz resolução do mesmo. Pode é suceder que mercê de certas crenças os professores não alimentem grandes esperanças em bons resultados de uma etnia considerada descapacitada à partida, com dificuldades de aprendizagem, podendo lidar com estes alunos de uma forma menos motivadora, até sem terem plena consciência do facto.

O futuro é exigente. Mais do que nunca ter uma instrução, uma formação adequada, é uma ferramenta imprescindível, seja ela mais técnica ou mais académica. Assistimos a uma galopante mudança económica, laboral, tecnológica e sociocultural, que trouxe a par de progressos, problemas desafiantes. Em virtude do contacto a antiga homogeneidade dos ciganos já não existe. Dei formação a ciganas muito diferentes, com aspirações diferentes, níveis sociais e culturais diferentes, umas mais despertas para a nossa cultura, outras menos, e isto já foi nos anos 90. Os ciganos nunca foram completamente imunes à cultura dos “payos”- termo que utilizam para designar os não ciganos - por muito arreigados à tradição. O seu modo de vida tem-se alterado e vai continuar a alterar-se. Os mais velhos testemunharam a desertificação do interior, foram forçados a deixar os campos, como tantos outros portugueses. Viram desaparecer o trabalho agrícola como fonte de rendimento, o artesanal, como fazer panelas de latão e aplicar ferraduras em cavalos, a venda de gado; a vida no espaço aberto deu lugar ao amontoamento nas periferias urbanas: sem competências nem rendimentos, a sobrevivência ali tornou-se mais difícil. Ao deslocarem-se para as cidades não conseguem aproveitar a melhoria de vida que a cidade promete: não há trabalho para gente com cursos, muito menos para eles. As feiras e a venda ambulante entram em declínio. Entram no mercado vendedores que competem facilmente com os seus produtos. Recorrem ao tráfico e ao furto para sobreviver. A falta de conhecimento sobre a sua cultura, quem são e o que querem dita o fracasso das primeiras medidas específicas para promover à sua inserção social. São acérrimos defensores do seu modo de vida, e, por outro lado, o preconceito antigo também não se desvanece.

A tecnologia está agora nas mãos de todos e também nas suas mãos: um simples telemóvel mostra-lhes outro mundo. Mesmo que não tenham acesso real, têm acesso virtual fácil a uma cultura diferente, outros estilos de vida, que seduzem uns quantos, os mais jovens, sobretudo, que contestam e questionam a velha autoridade, os modos de vida tradicionais, e que procuram uma vida diferente, mais próxima da cultura dominante. Lentamente começam a entender que a escolarização, a formação e a qualificação poderão possibilitar a inserção no mercado de trabalho, nem que isso implique um afastamento do modo de vida tradicional. Que não têm outra hipótese. Os antigos constatam e receiam a perda de identidade e diluição do que possa significar “ser cigano”, mas os mais jovens já ultrapassaram o receio. Muitos fazem de tudo para esconder a sua origem e assim conseguir agarrar um trabalho no seio da comunidade dominante.

Há sinais de evolução, mas ainda inexpressivos: uma minoria dentro da minoria entra no ensino superior, um elemento cigano entrou nas listas das autarquias, surgiram associações de mulheres ciganas. Alguns ganham visibilidade, mas uma enorme percentagem continua a viver na miséria, sem rosto. O associativismo das mulheres ciganas pode ser uma das mais promissoras formas de alcançar um efectivo diálogo entre as duas comunidades e de apoiar a emancipação da mulher cigana. Além disso, são as mulheres as guardiãs da cultura e identidade ciganas, que transmitem aos filhos. Aquelas que tendo conseguido romper o círculo do patriarcado e alargado e enriquecido a sua experiência, sem renunciar à sua identidade e cultural, provam que é possível viver outra vida e ao mesmo tempo  preservar a cultura cigana. Poderão ser interlocutoras privilegiadas em muitas questões conflituantes, como a necessidade de garantir a educação das crianças e jovens ciganas, ou a observância pela etnia da idade legal para o casamento em Portugal, devendo ser apoiadas como agentes de mudança pelas entidades e autoridades (locais),  na preparação,  aplicação, avaliação, acompanhamento de projectos de integração dos ciganos. 


O tema abordado no Workshop foi sobretudo o da criança/mulher/educação. Em jeito de conclusão, diria que o esforço para  assegurar o pleno acesso das crianças ciganas ao sistema de ensino geral e garantir que todas concluam, no mínimo, a escolaridade obrigatória, tem de continuar a ser um objectivo. Também é necessário explorar novas formas de instruir a etnia através da formação de adultos,  ensino e formação profissional, aprendizagem não formal e informal, com a participação de peritos em educação e mediadores escolares, e sempre com o envolvimento de membros da etnia na busca de soluções. Como disse Nelson Mandela: " A educação é a ferramenta mais poderosa que temos para mudar o mundo."

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