Nem um único país no mundo é verdadeiramente paritário




Para finalizar o Workshop de Igualdade de Género, fomos convidados a reflectir sobre o que falta fazer para alcançar a igualdade de género. Alcançar a igualdade de género é uma tarefa sem fim à vista, garantida no plano formal mas muitas vezes mal prosseguida na vida de todos os dias. Portugal está aquém de alcançar a igualdade, em muitos domínios, mesmo se tem uma antiga e ambiciosa produção legislativa. O princípio da igualdade e da não discriminação mereceu reconhecimento a nível constitucional logo na versão original da Constituição da República Portuguesa de 1976 (artigo 13.º). Por outro lado, a promoção da igualdade entre mulheres e homens é constitucionalmente atribuída ao Estado como uma das suas tarefas fundamentais. Vários princípios constitucionais relativos à educação, ao trabalho, à saúde, alicerçam um regime jurídico da igualdade entre mulheres e homens e não discriminação. Portugal é Estado Parte nos principais instrumentos internacionais vinculativos em matéria de eliminação da discriminação contra as mulheres e de defesa e promoção dos seus direitos humanos. Mas, como já é normal, da igualdade formal à substantiva, da intenção à prática, da estratégia à operacionalização, há um longo e sinuoso caminho que se percorre lentamente.

Existem áreas onde a intervenção pode parecer mais simples e rápida de implementar. Mas a facilidade é apenas aparente. Por exemplo, em 1 de Agosto de 2017 foi publicada a lei sobre a paridade nos cargos de decisão nas empresas públicas e nas cotadas em bolsa. O regime da representação equilibrada entre mulheres e homens nos órgãos de administração e de fiscalização das entidades do sector público empresarial e das empresas cotadas em bolsa dá assim cumprimento ao compromisso do Governo de promover o equilíbrio de género nos cargos de direcção. Esta medida foi a resposta encontrada para reagir a significativos indicadores de desigualdade persistente: apesar da elevada participação das mulheres portuguesas no mercado de trabalho, a tempo inteiro, do aumento das suas qualificações profissionais e, sobretudo, académicas, as mulheres continuavam em situação desvantajosa no mercado de trabalho, e não apenas por não chegarem ao topo. O regime introduzido impôs que nas empresas cotadas as mulheres têm de representar 20% dos cargos de administração e fiscalização, o que terá de subir para 33,3% no início de 2020. Já para o sector empresarial do Estado a legislação foi mais ambiciosa e obrigou, a partir de 1 de Janeiro de 2018, que a proporção de pessoas de cada sexo designadas para cada órgão de administração e de fiscalização de cada empresa não pudesse ser inferior a 33,3%.


Um ano após a aprovação da Lei da Paridade, lia-se que o aumento de mulheres nos cargos de administração das empresas públicas e cotadas, estava a "contagiar" o sector empresarial local. A lei parecia ter dado bons resultados, a avaliar por esta notícia notícia. Mas outra notícia não fez uma leitura tão positiva, lendo-se que “segundo dados compilados pela Informa D&B, a pedido do Expresso, nas 49 empresas cotadas, entre 399 gestores que compõem os Conselhos de Administração (CA) contam-se apenas 57 mulheres, 14,2 % do total dos cargos. A percentagem permanece longe do limiar mínimo de 20% definido pela lei para janeiro de 2018 e ainda mais longe da meta de 33,3% fixada para 2020. Denunciava que 21 empresas na Bolsa portuguesa não apresentavam uma única mulher nos seus órgãos de poder e que em 14 o número de mulheres era inferior ao mínimo legal. A notícia ressalvava, no entanto, um período de transição, recomendando cautela na interpretação dos números. E, convenhamos, a lei estava em vigência havia pouco tempo.

As leis são pequenos passos que se dão num longo caminho. A sua existência não basta: é preciso que a lei se cumpra. Daí a previsão de sanções, muitas vezes a única forma de serem observadas. Havendo sanções, é ainda preciso que se verifique uma fiscalização efectiva do cumprimento. A Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género é a entidade competente para acompanhar a nova lei. Mas, no que respeita às empresas cotadas, cabe à Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) monitorizar os incumprimentos. A necessidade deste tipo de intervenção tem os seus entusiastas e detractores, para estes seria muito melhor que as mulheres alcançassem cargos do mais alto nível apenas por mérito e sem a existência de quotas. Diz-se que o mérito não tem género, tem competência. Mas, por outro lado, não é apenas e só por mérito que há mais homens em cargos de decisão do que mulheres. E actualmente já não é sequer raro que existam mulheres com mais habilitações e mérito escolar que as devia colocar nesses lugares. Mas na realidade não chegam ao topo. Joana Gíria, presidente da Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego, diz que não é o mérito que limita o seu acesso ao topo, nem a escassez de profissionais qualificadas disponíveis no mercado. Afirma que é ainda uma questão de cultura e mentalidade, partilhada por homens e mulheres.

O número de empresárias e mulheres em lugares de gestão nas empresas tem aumentado nos últimos anos, em Portugal e na maioria dos países do mundo, mas, ainda assim, elas continuam pouco representadas nos cargos mais elevados de decisão — como directores-gerais, membros de conselhos de administração, presidentes. E para Joana Gíria isso acontece em virtude de uma questão cultural: as mulheres faltam mais para apoiarem as famílias fruto de um pensamento assente em modelo de vida antigo, que vai limitando o percurso das mulheres ao longo de toda a carreira, no acesso a cargos de chefia e posições estratégicas, que tem impacto nos salários (e, consequentemente, nas reformas) e no currículo de experiência que as habilita a aspirar posições de topo. Para a presidente da CITE, torna-se óbvio que ninguém ascende a um lugar de topo sem uma experiência sólida de liderança anterior. O maior inimigo da paridade continua a ser, pois, a resistência à mudança de mentalidade.

Ou seja, uma lei por muito bem fundamentada e construída pode, ainda assim, não chegar para mudar as mentalidades. Pode ser um princípio de alguma coisa, mas tem de se fazer um trabalho em várias frentes ou o lugar do topo continuará a ser podium masculino. Por exemplo, no território da conciliação do trabalho com a vida familiar. Neste âmbito a mulher continua a ocupar-se maioritariamente das tarefas doméstica. É verdade que o homem já vai às compras, já assegura a cozinha, até já trata dos filhos, dos idosos. Muitas mulheres só cedem quando não podem deixar de o fazer, por exemplo, por questões de saúde, convictas de que é uma incumbência sua e que estarão a falhar se não garantirem o trabalho doméstico, ou de apoio à família; outras, ainda que não inteiramente conscientes, receiam perder o exercício de uma forma de poder se o dividirem com o companheiro. Renunciam a promoções, evitam a valorização profissional, faltam mais. Por isso não basta que a lei promova licenças e modalidades de trabalho flexíveis com o objectivo de conciliar a vida profissional e familiar, para que esta se torne do dia para noite um terreno de paridade. É preciso que a mentalidade antiga se adapte, se desconstruam estereótipos, que, afinal, aprisionam ambos os sexos: os próprios homens têm de ser envolvidos na discussão!

Em suma, alcançar a igualdade de género é um trabalho de continuidade a fazer e passar às gerações seguintes, que não podemos esquecer não nascerão automaticamente imunes às disparidades entre homens e mulheres, nem aos estereótipos de género. Talvez seja até necessário ser disruptivo, pensar “fora da caixa”, ir além das medidas de cariz tradicional, tão usadas e abusadas, e que não estão a promover a mudança esperada, ou no tempo desejado. De qualquer forma, já nos disseram que até 2030 a igualdade de género não irá acontecer:

“Deixem-me contar-vos um pequeno segredo: nem um único país no mundo é verdadeiramente paritário. Tão pouco nenhum deles está no caminho certo para alcançar plena paridade de género na próxima década. “(…) “Vejam o caso da Alemanha. Embora a líder feminina do país, a chanceler Merkel, detenha uma das posições mais poderosas no cenário global, o preconceito de género persiste. Um quinto dos alemães ainda acredita que, quando os empregos são escassos, eles têm mais direito a trabalho do que as mulheres. “Anne-Birgitte Albrectsen, Chief Executive Officer, Plan International, ler mais aqui.

No contexto português é, antes de mais, importante dar seguimento ao trabalho que se vem fazendo, uma vez que muitos objectivos há anos traçados ainda não foram plenamente alcançados. Nesse sentido, a Estratégia Nacional para a Igualdade e a Não Discriminação - Portugal + Igual (ENIND) pretende consolidar os progressos até agora alcançados garantindo simultaneamente a adaptabilidade necessária à realidade portuguesa e sua evolução até 2030. Trata-se de um novo ciclo programático iniciado em 2018, alinhado com a Agenda 2030 e apoiado em três Planos de Acção que definem objetivos estratégicos e específicos em matéria de não discriminação em razão do sexo e igualdade entre mulheres e homens , de prevenção e combate a todas as formas de violência contra as mulheres, violência de género e violência doméstica, e de combate à discriminação em razão da orientação sexual, identidade e expressão de género, e características sexuais. Estes Planos de Acção definem, ainda, as medidas concretas a prosseguir no primeiro período de execução de quatro anos até 2021, a que se deverá seguir o processo de revisão e redefinição para o período seguinte de quatro anos, e assim sucessivamente.

A eliminação dos estereótipos é assumida como preocupação central da ENIND, orientando as medidas inscritas nos três Planos de Acção que dela decorrem. Os estereótipos de género estão na origem das discriminações em razão do sexo, directas e indirectas, que impedem a igualdade substantiva entre mulheres e homens, reforçando e perpetuando modelos de discriminação históricos e estruturais. Reflexo da natureza multidimensional da desvantagem, os estereótipos na base da discriminação em razão do sexo cruzam com estereótipos na base de outros factores de discriminação, como a origem racial e étnica, a nacionalidade, a idade, a deficiência e a religião.

A execução dos Planos de Acção da ENIND assenta no mainstreaming como pano de fundo. Esta estratégia visa actuar de forma consistente contra os estereótipos de género, homofóbicos, bifóbicos, transfóbicos e interfóbicos, que originam e perpetuam as discriminações e as desigualdades, a fim de produzir mudanças estruturais duradouras que permitam alcançar uma igualdade de facto. O mainstreaming só é eficaz se se traduzir, de facto, na definição de medidas concretas que respondam às necessidades diagnosticadas, em toda a sua especificidade. Também a adopção de acções específicas, acções positivas ou medidas especiais temporárias, como são frequentemente designadas, é preconizada no artigo 4.º da Convenção CEDAW(Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra as mulheres) com vista a acelerar a realização de uma igualdade de facto entre as mulheres e os homens. A perspectiva da intersecionalidade revela que a discriminação resulta da intersecção de múltiplos factores, sendo assumida na ENIND como premissa na definição de medidas dirigidas a desvantagens que ocorrem no cruzamento do sexo com outros factores de discriminação, entre os quais, a idade, a origem racial e étnica, a deficiência, a nacionalidade, a orientação sexual, a identidade e expressão de género, e as características sexuais. Os três Planos de Acção integram medidas que visam o desenvolvimento de respostas adequadas à realidade local e o reforço dos instrumentos de mainstreaming a nível local. Previstas também medidas que visam adequar as políticas públicas às características e necessidades territoriais do país, reforçar e potenciar o trabalho de actores locais e em rede, atendendo à proximidade, à população e o leque de novas competências decorrentes do processo de descentralização. Privilegia-se o desenvolvimento de parcerias estratégicas uma lógica de corresponsabilização, partilha de práticas e de conhecimento, optimização de meios e redes. Reconhecendo o papel e o contributo da academia, sector privado e sociedade civil, as medidas são definidas no sentido de potenciar e apoiar estas parcerias.


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