As mulheres que não deixam as mulheres serem mulheres


Joana Bento Rodrigues. Escreveu uma opinião no Observador que meteu meio mundo a resvirar os olhos. A Doutora Joana tem trinta e poucos anos. Nasceu fora do tempo. A avaliar pelo que escreveu, há uns anitos atrás teria sido a mulher perfeita para Oliveira Salazar desposar. Este homem já deve ter nascido persuadido de que a mulher que tivesse em mente a preocupação do seu lar não podia produzir fora dele um trabalho impecável. E parece que até afirmou que  haveria de morrer sempre lutando contra a independência das mulheres casadas. Foi realmente um grande desencontro temporal, este, uma pena mesmo, ficando o ditador sem parelha à altura e nós a ter de aturar a Joana saudosista de um tempo e de um entendimento das coisas que, por mais que lhe custe, não voltarão mais. A Joana quis declarar-se anti-feminista e contra a Lei da Paridade mas aproveitou para fazer uma romagem de saudade. E acredita que a maioria das mulheres estão com ela. Não sei bem. Até porque a maioria das mulheres nem sabe o que é o marxismo cultural que se lê nas entrelinhas a atemorizar a visão que a Joana tem do mundo. Por mim, estou disposta a dar-lhe razão mas só quando ela mostrar no Facebook fotografias a estender a roupa dos quatros filhos nas cordas antes de ir para o consultório. A a passar lençóis e sete camisas ao fim-de-semana, em frente à TV, e, já agora, também a lavar os dois WC lá de casa com CIF Marinho Lava tudo.

Em resumo, para JBR as ditas feministas, as tais que se julgam emancipadas, não passam de umas avantesmas.  Deslumbram-se com capas de revista, gostam de andar sempre a pular de pila em pila,  não querem engravidar para não ficarem disformes, perderem oportunidades profissionais em virtude de terem de dar apoio às crias, e muito menos correrem o risco de ser rejeitadas pelos recrutadores. Essas trogloditas fogem da elegância e da educação como o diabo da cruz. São as tais dos pelos longos e coloridos nas axilas, dos piercings relusentes em todo o lado, das tatuagens infectas, do cabelo pintado em casa, que usam ténis e sapatos sem salto, umas doidas que fazem paradas com as tetas ao léu, sei lá. Mulherio do pior, não sabem estar, transformadas em meros objectos de desejo, rejeitaram todo o seu potencial feminino, matrimonial e maternal.  Diz Joana que este sagrado trio  é que corresponde à verdadeira natureza da mulher. São as características mais belas da mulher e deviam ser a sua preocupação fundamental e dos movimentos feministas. Mas não. Essas são mulheres não deixam as mulheres ser mulheres. Agora digo eu o que a Joana não disse mas pensou. Em vez disso, as mulheres activistas de hoje nem sequer pensam apenas nas mulheres. Lembraram-se de levantar e lebre da discriminação de géneros não-hegemónicos (os trans e tal). Andam a inventar sexismos em todo o lado, distraiem-se com a ideia da recorrente culpabilização das vítimas ("com essa saia curta, estava a incentivar, disse o juiz"), atacam os ideais de beleza feminina, inventaram o termo feminicídio e agora é todos os dias, o #metoo, bem, um desvario total. A Joana nem ousou referir as mulheres que criam sozinhas seus filhos, essas párias; e mal imagino, sendo do CDS, a opinião dela sobre as famílias ditas patchwork, formadas por filhos de relacionamentos anteriores, bem como relações queer, trans ou poliamorosas. Ui. O melhor é fazer de conta que não há, que só no estrangeiro, e focar no que interessa: nas mulheres como a Joana.

O que diz Joana? Que o potencial feminino caracteriza a mulher. Atentem nesta dura lição: aquela que não gostar de se arranjar está lixada. Se a leitora  não tiver gosto para escolher roupa ou se não tiver dinheiro para andar à moda, esqueça. Se comprou ali um batonzito no hipermercado mas nem assim se consegue sentir bonita, idem. (Já cantava o Roquivários, "Cristina, não vais levar a mal, mas beleza é fundamental.") Se é gorda demais, velha demais, se não é suficientemente bonita, não é feminina. Desculpe lá, não é feminina, leu bem. Grande azar, pensava eu que reduzir a mulher à aparência, de acordo com um catálogo de  imagens de uma feminilidade idealizada, já era história! Nada mais errado. Já estou a sentir-me insegura - é que sou muito baixa - e a culpa é da Joana. Mais: se a leitora não tiver a casa arrumada e bem decorada, é melhor matar-se. Lá está, se amargar com dois empregos para conseguir pagar as contas e se nem assim lhe sobrarem uns euros para umas almofadas do IKEA, é melhor arranjar um terceiro emprego. Ou cortar os pulsos. Além disso, mulher que é mulher, " assume, amiúde, muitas das tarefas domésticas, com toda a sua alma." Esta Joana mata-me. Sobre isto,  já disse de minha justiça: quero fotos.

Depois há o potencial matrimonial que reside no amparo e na necessidade de segurança. A Joana explica: a mulher quer ser útil e quer criar estabilidade familiar  para que o marido possa ser profissionalmente bem sucedido. Se o marido ganhar mais do que ela, coisa excelente, ela tem orgulho em ter contribuido para tal. O dinheiro dá-lhe segurança, ela sente-se protegida. Basicamente o que a Joana defende é que  a mulher desiste das oportunidades profissionais porque isso é incompatível com o facto de ser esposa e mãe, e, em contrapartida o marido ganha mais dinheiro do que ela para lhe dar a segurança e a protecção que ela precisa. É um win-win. A mulher gosta de ser a retaguarda. (Lá diz o ditado, atrás de um homem há sempre uma grande mulher.) Ah, e ter casado bem é um ponto de honra para qualquer mulher. Joana, Joana. Nem sei por onde começar, Joana. E as mulheres que não são como tu? Uma mulher que nasceu bem, casou bem e vive bem? E as desgraçadas que nasceram sem oportunidades e beneces iguais às tuas? A sorte delas é que talvez nem leiam o Observador. Mas, realmente concordo: se o mono lá da casa pensar como tu, uma mulher que trabalhe dentro e fora de casa e tenha filharada está feita ao bife. Arrisca-se a perder tudo, ou quase tudo, até a saúde mental. Mas, é verdade: quando há dinheiro para pagar a uma ucraniana e fazer muitas refeições fora de casa, mesmo que o mar esteja revolto, o barco aguenta-se, tens razão.

A Joana salavguarda que também há mérito quando acontece o inverso, ou seja, admite que existem casos em que o homem ganha menos do que a mulher, que possa ser ele o elemento "doméstico". Mas coitados desses homens sem oportunidades que têm de aguentar e disfarçar bem o quanto se sentem mal por não poderem dar segurança e protecção à parceira. Mas quanto a estes casos ela invoca o poder do amor como a tábua de salvação do casal: o amor tudo pode. É lindo.

O potencial da maternidade é biológico, diz ela. Que novidade, Joana. Mas educar e criar um filho também é maternidade, não? Bem sabemos que na Idade Média a mulher era tão mais considerada quanto mais parideira. A sua função social era botar no mundo o maior número possível de filhos para arar a terra e defender a aldeia e o estado. As fêmeas são assim mesmo, têm equipamento exclusivo para gerar os filhos, desde que há vida na Terra. O instinto de ser mãe manifesta-se ao longo da vida da mulher, de formas diferentes. Molda o seu modo de ser, de pensar e agir, caracteriza a psicologia feminina. Concordo. Depois a Joana faz o elogio do amor maternal e da ternura que só a mulher pode dar aos filhos, e afirma que "na maternidade, a mulher sente-se verdadeiramente realizada, pois percebe o que é o verdadeiro e incondicional Amor!"

A Joana depois divide os movimentos feministas entre os que foram interessantes, porque lhe foram uteis  - a luta por direitos iguais, voto, trabalho fora de casa, iguais direitos laborais em relação ao homem, e os que são interesseiros, que ela não subscreve - os que querem que a mulher faça uma escolha, isto é, que abdique da maternidade e de um casamento feliz em nome de uma carreira de sucesso. E neste caso, isto é, no acesso a melhores posições profissionais,  a igualdade é impossível de atingir, porque "o homem mais facilmente dedica horas extra ao trabalho, abdicando do tempo em Família, em nome da progressão laboral e, está claro, daquilo que é um apelo mais masculino, o do sucesso laboral." Portanto, segundo Joana, neste patamar não há qualquer discriminação onde o Estado tenha de intervir: trata-se de uma escolha, e,  "A sabedoria popular bem o diz: “Não se pode ter tudo”!

Por esta razão, porque as mulheres escolhem a maternidade e o casamento feliz, há menos mulheres em cargos  políticos e em posições de poder. Onde iriam elas encontrar o tempo para estudar história e política e cuidar da casa e dos filhos, e do sucesso do marido? Diz ainda a Joana que "é mais difícil ascender profissionalmente num meio masculino" mas que já muitas mulheres  alcançaram lugares de topo apenas com a sua enorme inteligência social e emocional, sem a muleta de quotas e quotinhas. Mas depois exemplifica com a representatividade feminina no ensino superior em Portugal: na medicina e na advocacia, vão à frente dos homens. Joana considera isso preocupante.

O activismo feminista actual em vez de se centrar em conciliar a vida laboral com a natureza da mulher definida como a que se sabe sentir bonita e que se arranja e à casa (potencial feminino) , a que casa bem, isto é, com um gajo rico, (potencial matrimonial) e  a que é mãe (de muitos filhos, imagino), anda a dar ouvidos a uma minoria poderosa. Esta minoria já conseguiu que a miserável  Lei da Paridade fosse aprovada, uma lei que priva as mulheres de ascenderem por mérito próprio, a escada social e profissional. Além disso, "retira-lhes a candura e a doçura", não quer que casem nem sejam mães, já que as impele para vias profissionais absorventes. E mais: transforma as mulheres em presa para sexo fácil e objecto de diversão:  "Promove paradas onde se expõe o corpo de forma grosseira e agreste à visão" - imagino que estivesse a pensar na Slut Walk ou coisa similar. Ora, no entender da Joana, nada disto representa a mulher comum, o que ela defende, é que representa.

A Doutora Joana estava apenas a elaborar sobre a Lei da Paridade, sobre a qual também tenho alguma reserva, embora compreenda a razão de ser do mecanismo. A conquista da independência financeira feminina  pelo acesso ao mercado de trabalho  não é um mar de rosas. Um impacto particularmente visível ocorre quando as crianças são colocadas em instituições ainda bem pequeninas, sendo forçadas a cumprir os horários dos adultos, porque os dois membros da família trabalham, e muitas vezes, longe de casa. Qual  a mãe que não lastima, nos frios dias de inverno,  entregar a sua criança a terceiros logo pela manhã? Mas em vez de dizer que trabalhar e ter ambição é errado porque sacrifica os valores tradicionais e não corresponde à natureza e desejo da mulher, porque não criticar antes o sistema de trabalho inflexível que não permite às mães trabalhar e aos pais colaborar para que  possam ambos ser mais presentes na vida da criança? Porquê insistir que os homens são tão diferentes que não podem auxiliar no acompanhamento e educação das crianças? Não é verdade que os homens não sabem, nem querem, cuidar das crianças pequenas e que não são também um porto igualmente seguro para elas. Porque não é mais valorizada a paternidade? E o que estão os homens, afinal, a alcançar com tanta devoção ao trabalho que não possa ser re-equacionado, se a maternidade, um valor fundamental, foi?  É isto o progresso? Não se pode fazer melhor nem pensar de forma diferente? Tão pouco os homens de bom grado aceitam ganhar menos do que as esposas. Não estou a falar de uma diferença de poucos euros, evidentemente. Na sua maioria ainda acreditam que têm, efectivamente, de prover para a família, que é esse o seu papel, e que serão desconsiderados se não o fizerem, não pela esposa, mas sobretudo pelo círculo em que se movem.  E, embora o casal até possa funcionar assim, a pressão exterior pode bem minar esse entendimento. Além de que, provendo se demitem de mais auxílios, considerando que já fizeram a sua parte.

Infelizmente, nem é sequer preciso almejar um lugar de topo numa empresa ou organismo da esfera pública para começar a sentir os espinhos dessa conquista. A injustiça que é uma mulher sentir-se culpada porque está a trabalhar para dar assistência à família e tem de faltar é do mais comum. Não admira que as mulheres coloquem a ambição profissional de parte, mas isso sucede não porque ela não seja da sua natureza ou o sucesso profissional não lhe seja apelativo. O que acontece é que uma mulher tem de possuir, além de uma boa saúde,  uma resistência a toda a prova para lidar com o stress que tudo isto implica, e uma rede de suporte. Essas, as mulheres de carreira que sobem ao topo, são até uma minoria. Inúmeras são todas as outras que ocupam os mais diversos lugares. Imaginemos o caso das professoras, e que são tantas, que sendo casadas têm de dar assistência aos filhos pequenos e faltam. A criança tem uma virose  e o infantário telefona para irem buscar. Não há ascendentes nem parentes que possam chegar-se à frente. Essas profissionais são censuradas pelos pais e mães dos estudantes que apenas querem aulas dadas, são tidas por  inconvenientes nos respectivos departamentos, muitas vezes são substituidas por colegas, que ficam também sobrecarregadas/os; e as suas ausências são automaticamente equiparadas a mau desempenho profissional. Ao marido, hipoteticamente um trabalhador em posição até mais confortável para poder faltar sem idêntica censura, nem lhe ocorre substituir a mulher junto da criança doente. É tarefa da mãe.

Ao contrário do que Joana afirma, penso que o sucesso laboral não tem sexo. A conciliação de  trabalho com a vida doméstica e familiar não pode ser feita à custa da ideia de que a mulher deve desistir da sua ambição profissional. Essa é a saída mais fácil. As mulheres, sem dúvida, realizam-se sendo mães, mas também se realizam profissionalmente. As mulheres devem fazer o que entenderem melhor para si mesmas. O que implica aceitar que a JBR seja feliz a viver de acordo com aquilo em que acredita. Algumas conseguirão equilibrar trabalho e vida de casa e família, outras terão de fazer concessões a uma ou outra dessas importantes facetas da sua vida. Na Holanda é enorme o número de mulheres que trabalham menos horas que os homens ou mesmo em part-time. Em Portugal tal não é possível. Mais do que medidas ou enquadramento legal faltam as condições materiais para que elas possam ser praticadas. Entendo que seja possível melhorar este quadro e obter uma conciliação de vida familiar e profissional mais flexível e benéfica para os dois sexos em vez de afirmar peremptoriamente que a mulher tem de escolher uma coisa ou outra. Creio que é isso que a maioria dss mulheres desejam, sejam ou não feministas.

E vocês? Sentem-se representadas na opinião da Joana? Aguardo.


Comentários

Isa Nascimento disse…
Olá Belinha, criei o meu blogue há pouco tempo e tenho andado a "navegar" à descoberta de boas leituras nos Blogs Sapo. Foi muito bom ter encontrado este seu artigo, que adorei. Mas decidi-me a comentá-lo por ter constatado que está sem comentários... Não entendo, há assuntos que inflamam tão facilmente sem nos dizerem respeito, como a independência da Catalunha ou o Brexit, e quando se trata de um tema tão pertinente e sensível como este... ninguém opina!
Por isso respondo eu à sua pergunta, não me sinto representada pela opinião da Joana e creio que a maior parte das mulheres também não sentirá.
Concordo consigo: o caminho para a plena conciliação entre o trabalho e a vida familiar só se conseguirá com uma maior valorização da paternidade e com uma partilha equitativa das responsabilidades parentais. As mães não podem continuar a ser as “principais” responsáveis pelos filhos, tendo de prescindir da sua carreira profissional e das suas atividades de lazer…
Gostei muito do tom irónico e assertivo do artigo!
Obrigada pelo comentário Isa! Aqui não foi comentado, mas a Joana e as suas ideias suscitaram muito comentário nas redes sociais. Em tempo fui coordenadora de um projecto europeu sobre conciliação da vida privada e familiar e estudei muito sobre esta temática. A Joana representa uma minoria de mulheres, é também o que penso. Homens e mulheres têm de equacionar estas questões juntos.