A guerra declarada ao azul e rosa


A Guerra das Rosas foi uma guerra de dinastias que se arrastou por cerca de trinta anos, em Inglaterra. O confronto entre a família real de Lancaster, cujo brasão tem uma rosa vermelha, que detinha o poder, e a de York, que tinha no seu uma rosa branca, foi despoletado no seio de proprietários feudais ingleses, pela defesa de terras das quais se tinham visto desapossados durante a Guerra dos Cem Anos, contra a França. No fim, o rei Henrique subiu ao trono, fortalecido, e  governou sobre a nobreza, disciplinada, tranquilamente.

Ora, hoje temos antes a "guerra das Rosas", se é que posso escrever nesta cor e neste modo, sem que desabe sobre mim a acusação de que estou a estereotipar as mulheres com a brincadeira! É a guerra das novas feministas das redes sociais. Há quem diga que o feminismo de hoje é nocivo, que  instiga a luta dos sexos. Calma. Não, elas não questionam apenas o uso da cor azul e rosa nos brinquedos das crianças. Em cada momento da história, as reivindicações das feministas  foram sempre diferentes. Algumas foram conquistadas, outras não.  Outras surgiram. Eis um resumo simplista.

Mulheres pré-feministas, tão diferentes como Safo, Olympe de Gouges, ou Jane Austen, deram achegas ao movimento sem sequer suspeitarem que eram "feministas". Mas a primeira batalha, que foi pelo direito de voto, participação na vida pública e política, decorreu entre fins do século XIX até meados do século XX. É o tempo das suffragettes nos EUA, de Rosa do Luxemburgo, alemã, ou de Kollontai, na Rússia. A tónica é colocada na obtenção do fim da discriminação e na ideia de que homens e mulheres merecem oportunidades iguais, porque intelectualmente iguais. A partir da década de 60 e até meados dos anos 90 do século XX, a batalha é em torno dos direitos reprodutivos e da sexualidade, aqui nasce o conceito de Género. Por esta altura queimaram-se os soutiens. As mulheres encorajam-se mutuamente a politizarem-se e a combaterem as estruturas sexistas de poder, a questionarem porque é a condição feminina oprimida no mundo inteiro. O poder masculino sobre a mulher é amplamente escrutinado nesta vaga. São pedidas correcções legislativas para lidar com as injustiças sociais em relação à mulher e ao seu decisivo papel. A terceira chega com os anos 90. O conceito de mulher é universalizado para englobar qualquer variedade de identidade e experiência de qualquer mulher. Surge a interseccionalidade: mulheres são oprimidas por diversas qualidades além do sexo, como etnia, raça, classe. As mulheres foram buscar e defender os seus símbolos para a ribalta: os soutiens regressam!Estas mulheres criticam as anteriores críticas de libertação e vitimização. Defendem a liberdade de escolha total e sem peias, e redifinem significados, recusando até serem chamadas feministas, um rótulo mais para as mulheres. Actualmente, há já quem fale na 4ª vaga, potenciada pelo uso das redes sociais como ferramenta. As fogueiras onde se queimavam soutiens são agora discussões acesas na internet. Uma pequena manifestação de jovens mulheres no Canadá pode ampliar-se e repercutir à escala global, juntando mulheres do mundo inteiro: ex, a Marcha das Vadias. São de esquerda, são de direita, não querem saber de política: sobretudo querem liberdade. As antigas questões nem mesmo no mundo ocidental estão, ainda, inteiramente cumpridas. Mas a par destas abordam-se outras, por exemplo, a da representação feminina nos media e na publicidade, a cultura da violação. A subalternização das mulheres é máxima na violência de género, seja em feminicídios, violações ou assédio sexual.Este feminismo parece ter como nota comum a defesa da denúncia dos abusos e de recusa do seu silenciamento. Em 2017 "feminismo" foi a palavra do ano nos EUA, eleita pelo dicionário norte-americano Merriam-Webster, por ter sido a mais procurada.


A palavra "feminismo" causa arrepios e esgares em muito boa gente, homens e mulheres. Será que existe um preconceito antifeminista? Julgo que uma parte disso é devido à sua associação com a “Esquerda” . Em tempos idos os comunistas comiam crianças. Não se pode escamotear a evidência: uma das principais raízes do feminismo tem origem "à esquerda". Nos EUA, capitalistas, e na URSS, socialistas, mulheres houve que pugnaram por igualdade de direitos. A partir dos anos 90, nem todas as feministas preconizaram uma ruptura com o capitalismo e as estruturas de poder do capital. No entanto, essas são, no geral, mal vistas. A reboque de críticas úteis ao feminismo radical, que também subscrevo, leio imensa patetice como ser feminista é não deixar o homem pagar a conta no restaurante, uma dona de casa não pode ser feminista, uma feminista não se depila e não usa baton, ser feminista é odiar os homens.  O machismo é contra as mulheres, mas o feminismo não é contra os homens. No entanto, o clima que  se vive online, assemelha-se muito a uma estrepitosa guerra dos sexos. Leio textos verdeiramente incendiários. Muito do fogo acontece até entre as próprias mulheres. Por exemplo, ainda em Janeiro, havia acesa discussão na internet motivada pela afirmação da responsável pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MDH), no Brasil, Damares Alves: "as feministas não gostam de homem porque são feias; as outras, na qual se inclui, são lindas." Lembrei-me deste aparte porque Damares também se pronunciou acerca da guerra das cores: "Menino veste azul e menina veste rosa. Atenção, atenção: é uma nova era no Brasil, disse ela no dia em que o novo governo brasileiro, presidido por Jair Bolsonaro, tomou posse. E assim é que esta "guerra das Rosas" está a ser travada com muitas afrontas e, como dizem no Brasil, muitos xingamentos. (Só para amenizar, e não concorrer para a refrega, refiro que Damares também terá referido que o Brasil é o quinto país do mundo em feminicídio, chamando isso uma vergonha, e apelando ao fim da violência contra a mulher. Menos mal.)

Azul e rosa. Porque é que estas duas cores se tornaram um alvo a abater? Dizem as feministas que a desigualdade de género é normalizada através do seu uso continuado nos brinquedos e outros produtos infantis. Que as crianças não se sentem atraídas por estas cores naturalmente, antes são condicionadas pelo marketing baseado  no género, fruto de uma concepção estereotipada, ultrapassada. Que a separação de brinquedos gera desigualdade de género pois mapeia certas acções, tarefas, carreiras futuras como exclusivos de um ou de outro sexo. Que não é verdadeiro que a biologia comande a vontade das meninas brincarem com bonecas nem a vontade dos meninos brincarem com soldadinhos. Ou seja, meninos e meninas aprendem com os pais, os professores, a televisão, os livros e as lojas de brinquedos - que praticam a segregação de género - a inclinarem-se para bonecas ou soldados.

Antes de mais, o que levou a que as empresas de brinquedos, livros, roupa e tudo o mais que possa ser fabricado para ser vendido a diferenciar meninos e meninas e a usar cores diferentes foi apenas obter  mais lucro. Esta é a sua natureza. Estas empresas só querem deitar a mão ao nosso dinheiro e conseguem. Nem a LEGO escapou à miragem do lucro e, se de início, era neutra, a partir dos anos 70 começou a usar a paleta binária. Se alguma empresa produziu um tanque de guerra de brincar de cor rosa e soldadinhos a condizer, não é por outra razão que não seja o lucro. A gente tolera isto há anos e anos. Somos uns totós.

Então as estudiosas do Género vieram dizer que uma empresa que faça soldadinhos azuis para meninos e rosa para meninas é  machista. Eu digo que é manipuladora. Somos uns bonecos às mãos da sociedade de consumo, homens e mulheres. Mas porque ser consumidor é ter poder, e gostamos disso, alinhamos. Continuamos do lado da ganância capitalista. Mas ainda que pensemos que somos livres de escolher, na realidade não somos. Estamos a ser condicionados. Lembram-se daquela polémica com os livros da Porto Editora? Esses livros a duas cores foram um êxito de vendas. Este esquema vende. Basicamente esta, e outras empresas de livros, roupa e brinquedos, andam todas à boleia de uma convenção cultural de muitos anos, servindo-se da criatividade e jogando com os mecanismos psicológicos do consumidor de forma a influenciar a sua escolha.

Ora leiam este excerto do livro Mulherzinhas, de Louisa May Alcott, capítulo 28. Foi escrito em 1869:


“Menino e menina. Não são lindas?” Disse o pai orgulhoso, curvando-se sobre os pequenos rebentos vermelhudos como se fossem anjos desprovidos de asas.“Crianças mais notáveis que já vi. Qual é qual?” E Laurie curvou-se como uma picota para examinar os prodígios. Amy colocou uma fita azul no menino e uma rosa na menina, “moda francesa, para que se possa sempre saber".

As cores têm o peso simbólico que lhes quisermos atribuir. Tal como um menino branco não vai deixar de brincar com outro que tenha a pele escura, não acredito que um menino que veja numa montra uns patins cor-de-rosa vá deixar de patinar com eles por serem rosa.  Mas se tiver nascido rodeado de azul, e a ouvir dizer que a cor rosa é só para meninas, então irá querer uns patins azuis, porque uns patins rosa são ameninados. E não convém a um menino ser ameninado: isso é uma fraqueza. Os futuros progenitores, assim que  sabem qual o sexo do bebé,  começam logo a pintar o quarto de cores condizentes. Quem trabalha em lojas de roupa infantil muitas vezes é confrontado com pedidos de roupa neutra por não se saber o sexo do futuro rebento ou não serem os progenitores e desejarem ofertar. É que um menino não vai poder vestir rosa, se for uma menina, menos mal, pode vestir em azul.

Nesta paleta binária de cores se tem vindo a sustentar uma proveitosa segmentação dos mercados infantis por sexo, o que, por seu turno, tem conformado a criação de um imaginário infantil que leva as próprias crianças a desejar coisas em azul ou em rosa e a sentirem-se mal se não as puderem ter. Parece também dar continuidade  à ideia de que interesses, habilidades e capacidades infantis se hão-de repartir consoante o sexo porque os objectos lúdicos que através do brincar treinam futuras aprendizagens tomam essas cores como referência e geram "corredores de acesso" de acordo com o género, e não apenas em sentido figurado já que as lojas criam espaços físicos assim sinalizados.

Notem: esta  predileção pela paleta  rosa/azul, menino/menina, não é apenas explorada junto do público consumidor infantil.  Jovens e adultos também são objecto desta estratégia que faz vender em todas as idades e que é explorada até ao ridículo pelo marketing.



Quem pode esquecer o  exemplo caricato de esferográficas para mulheres  que Ellen Degeneres aproveitou bem para nos fazer rir?  As canetas BIC eram cor de rosa e roxo e custavam o dobro das outras canetas BIC. Na embalagem lia-se que tinham sido desenhadas para a mão da mulher.

Para  quê dois livros de cores diferentes, ou dois comboios diferentes, um para meninos e outro para meninas? Porque assim a empresa  vai ganhar mais dinheiro: o menino nunca pegará no comboio rosa da irmã, porque é para meninas, há que comprar-lhe um azul. A família compra dois diferentes mas cada um deles só serve a uma das crianças: é um desperdício de dinheiro, de recursos, de tudo. Ah, mas nada impede que o menino brinque com o rosa, vão dizer-me alguns. A sério? Sabem daquela experiência social das duas cabines telefónicas, uma para homens, outra para mulheres? Qualquer um podia escolher uma das cabines. Só que não escolhiam: os adultos bem mandados acatavam a indicação, os homens iam para a cabine dos homens e as mulheres para a cabine das mulheres.

Azul e rosa. Qual seria a cor eleita pela miudagem se pudesse escolher sem pressão de nenhuma ordem? Eu, em criança, nunca me senti atraída por nenhuma delas. A minha cor favorita era o vermelho e a dada altura eu tinha roupa vermelha da cabeça aos pés, e sapatos vermelhos! E tive bonecas, trens de cozinha, carrinhos, um comboio, um helicóptero. Era o que eu pedia. Mas nesse tempo era mais fácil, acreditem. Era mais fácil porque havia menos oferta e menos refinamento na apresentação dos brinquedos. Podíamos entrar numa pequena  loja e encontrar enormes bacias de plástico cheias de comboios, ou cães de plástico, ou bebés nús, ou piões, a monte. Hoje, quando é evidente que a criança ganhou um ascendente em tantas matérias, o que acontece é que ela já está, à partida, condicionada. Pelo design da embalagem: a cor, as fotos, os dizeres, a publicidade ao brinquedo que lhe chega na TV; pela enorme quantidade de brinquedos expostos em grandes lojas, que criam zonas uniformes de cor, que as atraem quais insectos pelas diferentes cores das flores. A minha ideia: a partir de certa idade a criança já consegue ter opinião e vontade próprias, consegue fazer escolhas, consegue decidir perfeitamente se quer azul ou rosa ou amarelo:
 “Se ensinares ao teu aluno aquilo que deve pensar, ele será um escravo do teu conhecimento. Se lhe ensinares como pensar, torna-lo senhor de todo o conhecimento.” Henry Taitt 
As crianças têm poder de iniciativa e devem ser estimuladas a exercê-lo. Por serem ainda pequenas não quer dizer que não possam ser incentivadas a ser desde logo criticas daquilo que se lhes apresenta. Claro que isto é lindo de dizer mas difícil de colocar em prática, sobretudo se quando chegamos ao supermercado o mundo infantil se resume a duas cores: azul e rosa.

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