Porto Editora trata Pessoa como um pândego, mas diz que não





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Ainda o caso pândego da omissão de um par de versos em Manual do 12º ano, adoptado por cerca de 90 escolas, e agora nas bocas do mundo porque os alunos, que segundo reza a lenda já não lêem livros, apenas memes no telemóvel, deram pela sua falta.

Ora, de acordo com a nota explicativa da editora, o que justifica a limpeza feita ao poema de Álvaro de Campos são versos que contêm linguagem explícita e os que se relacionam com a pedofilia, podendo, por isso, “constituir fator de desestabilização ou de desvio da atenção dos alunos”. É sabido que o ambiente em sala de aula é hoje, por norma, de uma imperturbabilidade e concentração nunca vistos, os alunos não se distraem por nada deste mundo nem do outro.  Também é sabido que é zero a tolerância para  linguagem obscena e de conotação sexual em casa, na rua, na escola, em todo o lado. Afianço que já não ouço um jovem chamar carinhosamente “minha puta” a outro desde que entrei em casa, há um par de  horas atrás. Os professores devem, portanto, fingir-se  gratos por esta preocupada ingenuidade da Porto Editora. E os pais também.

Afirma também a Porto Editora que ao omiti-los no manual dos alunos mas a mantê-los no do professor está a “garantir o  papel central na preparação e na organização das suas aulas, em função das características específicas de cada turma”.  Como é que um par de versos desvirtua a garantia do papel central do professor na preparação das aulas e a sua ausência não? Não é sempre o professor a ter as rédeas do processo seja numa turma boa ou numa má turma? Naturalmente a exigir uma abordagem à medida? A meu ver, esta táctica, em vez de enaltecer o papel fundamental do professor e a sua capacidade, enfraquece o seu papel. Não vos parece que a Porto Editora  parte do pressuposto da sua inabilidade ou incapacidade de lidar com assuntos sensíveis? E se um aluno questionar os tracejados? Irá o professor dar-lhe a explicação puritana da Porto Editora?

Adianta  ainda a editora que os professores poderão assim ver “se têm ou não condições para abordarem os referidos versos com o tempo e o cuidado necessários”. Que me digam os professores de português acerca da trabalheira que não é explicar um par de versos num poema com 240, onde há tanto para trabalhar com os alunos, quer em termos de conteúdo, quer de forma, quer de tudo. Parece-me que o restante poema exige bem mais tempo e cuidado que estes dois versos que, no contexto de um poema tão exuberante e excessivo quase passariam despercebidos não fosse a sua omissão! Além de que o poema está cheio de pulsão erótica/sexual, esta energia percorre-o, e o uso desta linguagem obscena, ousada, ou o convocar de certas perversões, são um traço fundamental da Ode, aliás, da escrita radical do heterónimo, não se esgota, portanto em dois versos.

Por fim, a Porto Editora informa que esta escolha “ permite aos professores decidirem livremente sobre a abordagem mais adequada junto dos seus alunos.”  Intriga-me que sem esta inovação didáctico-pedagógica do abafa os professores não fossem capazes de decidir livremente.  A Porto Editora sugere, afinal, que o professor possa não promover “um conhecimento e uma fruição plena dos textos literários do património português e de literaturas de língua portuguesa” se, sei lá, estiver perante uma turma de alunos  complicados ou imaturos ou insubordinados, ou ( -----------------------------------) do 12º ano, note-se, do 12º ano. Porque é esse o papel de qualquer professor com brio deseja que lhe seja atribuído pela sociedade, ou pela preocupada Porto Editora: fintar a dificuldade, em especial quando ela está directamente relacionada com o acto de ensinar, de esclarecer, com o seu múnus. Inconcebível quando o professor era, à partida,  livre de escolher este poema ou outro para abordar, podendo evitá-lo. Isso seria legítimo, eliminar versos, não.




Dona Porto Editora: mais naturalidade e menos pudor, mais paixão pela literatura e menos pela  censura. Já se percebeu que não gosta da palavra censura:  existem outras que se podem usar, como limpeza, omissão, eclipse, controlo, apagão, mas a tolice não se tornaria menor por isso. Só que por este andar censura ainda poderá ser a palavra do ano em 2019. Não entendo o que anda a fazer no negócio dos livros. Melhor: entendo. É dinheiro, o que anda a fazer é apenas dinheiro. Porque não é assim que deve tratar a literatura, como se fosse uma fonte de maus costumes e corrupção da juventude. E muito menos a reputação dos nossos escritores consagrados, esses seres degenerados e pervertidos, uns pândegos, afinal, indignos de merecer o trabalho árduo de um professor na sala de aula.

Sugestões de leitura:
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A justificação da Porto Editora



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