Os estereótipos de género e os provérbios populares


Já alguma vez frequentaram algum workshop sobre Igualdade de Género? Inscrevi-me num e esta semana os participantes foram convidados a reflectir acerca das crenças que informam os provérbios e a identificar neles eventuais estereótipos de género. Alguns dos inscritos são brasileiros e um deles enviou este sintético contributo. Em duas linhas, ele escreveu: "O novo Brasil...É uma nova era no Brasil. Menino veste azul e menina veste rosa”, Damares Alves, ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos...." A polémica que se instalou depois da Ministra ter proferido a sua fórmula chegou cá e li opiniões bastante inflamadas sobre o assunto. É no mínimo estranho. É que nem a minha mãe me vestiu de cor-se-rosa e eu nasci para lá de longe, em plena ditadura! Lembro, todavia, de ter tido uma bata cor-de-rosa na escola primária. (Já não me lembro de que cor era a bata dos meninos, se azul  ou se estavam dispensados.) Por isso, não sei se em vez de uma nova era não será um regresso a um passado longínquo para o "novo Brasil". Adiante. Foi, no entanto, esse flasback que me deu a ideia de associar o tema dos estereótipos e dos provérbios à vida das mulheres durante a ditadura em Portugal.

A PETA anda há uns anos a tentar modificar certas expressões que continham menções ofensivas para com os animais: "pegar o touro pelos cornos" por "pegar a flor pelos espinhos" ou "matar dois coelhos com uma cajadada", que no caso da língua inglesa envolve passarinhos e uma pedrada, por "alimentar dois passarinhos com um donut"! E porquê? Diz a PETA que embora essas frases pareçam inofensivas, elas encerram um significado e podem enviar sinais menos bons sobre a relação entre humanos e animais, isto é criar uma ideia de normalização do abuso junto dos mais novos. Ensinar aos pequeninos uma linguagem amiga dos animais poderia, pois, ajudar a cultivar relacionamentos positivos entre todos os seres e ajudar a acabar com a epidemia de violência infanto-juvenil contra os animais. A violência para com os animais, é verdade, existe; mas existe, sobretudo, porque os pais se demitem de dar o exemplo, de educar e de vigiar os cachopos. Depois eles agarram um gato pela cauda e arremessam-no pelo ar a ver se cai de pé, na volta o bichano vinga-se e a culpa é do gato, que é banido do lar. Ora, as pessoas não são animais e os animais não são pessoas, mas temo que algum dia alguma entidade também venha sugerir alternativas criativas aos provérbios ou que manifeste mesmo vontade de proibir o seu uso. Realmente não é lá muito bonito andar por aí a propalar que "com afagos, a mula e a mulher fazem o que o homem quer" ou que "Deus nos livre da mula que faz "him" e da mulher que sabe latim", mas pergunto qual é a percentagem de pessoas que os usa numa época em que já ninguém tem mulas e uma minoria sabe latim. Muitos destes provérbios raras vezes são usados e cada vez mais cairão em desuso. De facto já não são lá muito populares. A evolução  empurrou certos usos e expressões para debaixo do tapete, mesmo que desprovidas de ofensas - nem a pessoas nem a animais! -  pelo não uso. Por outro lado, a evolução das mentalidades também rejeitará os menos consensuais, de forma mais convicta, por não mais se rever no estado por eles caracterizado.

Os provérbios são textos anónimos, ditos ou expressões que traduzem a sabedoria popular, e onde é possível identificar uma interpretação a respeito de certos saberes, uma concepção social e cultural de uma dada época. Os provérbios exprimem juízos de valor, ou realidades aceites como verdades. Funcionam como auxiliares da organização de um certo conhecimento pelo que permitem a orientação das pessoas no seio de um grupo ou sociedade. Muitos deles, tomando as vezes de uma norma de conduta, regras a seguir, informam comportamentos esperados de cada um dos sexos: quem ousar afrontar o preceituado sofrerá a censura da comunidade.

A construção social do género tem na sua base ideias preconcebidas, estereótipos, sobre atributos, comportamentos, e papéis a que homens e mulheres devem aderir em função da sua categoria social de pertença, e alguns provérbios evidenciam-nos. Pela sua semelhança com normas, ocorreu-me recordar aqui algumas normas do tempo do Estado Novo, que atribuíam a homens e mulheres, quanto a actividades comuns, desigual e diferente distribuição de papéis e uma vincada distinção do que era idealmente masculino e feminino. Desde 1933 que a Constituição portuguesa mencionava a igualdade de todos os cidadãos, mas, na prática, vivia-se a realidade traduzida nos provérbios.

Por exemplo, as ideias que informam os provérbios “Quando há homens, não se confessam as mulheres”, “À mulher casada, o marido lhe basta”, ”Mulher sem marido, barco sem leme” remetem para a superioridade do elemento masculino, ou seja, um particular estatuto subalterno da mulher na sociedade. Denotam o tratamento desigual das necessidades e aspirações de cada um dos sexos, com desprimor para a mulher, a sua conformação a um papel subsidiário, dependente, sendo o casamento entendido como atributo da sua valorização.

Se remontarmos ao tempo do Estado Novo, a lei indicava com clareza que o marido era o chefe da família, competindo-lhe nessa qualidade representar a mulher e decidir em todos os actos da vida conjugal. O marido detinha o poder marital e paternal. Salvo casos excepcionais, era ele o administrador dos bens comuns do casal, dos bens próprios da mulher e dos filhos menores. Quanto a família, a mulher não tinha os mesmos direitos na educação dos filhos que o homem. Era clara a chefia masculina do agregado doméstico e a mulher dependia do cônjuge para poder ingressar no mundo do trabalho. O papel da mulher era o de cuidadora do marido, dos filhos, de governante do lar, de gestora dos rendimentos do marido.

Provérbios como “A casa é das mulheres, a rua dos homens” ou “À mulher roca, ao marido espada”, traduzem a ideia da não participação equilibrada de homens e mulheres nas esferas da vida económica, social ou política. Ambos os sexos devem ser livres de desenvolver as suas aspirações sem limitações impostas por papéis sociais de género. Além de reduzirem a actuação da mulher ao espaço privado, a casa, o lar; fomentam a estigmatização daqueles homens que defendam um entendimento diverso.

A semelhança estes provérbios, o Código Civil de 1966 determinava que durante a vida em comum, o governo doméstico ficava a cargo da mulher. Ela não podia abandonar de livre vontade a residência conjugal, nem exercer uma profissão independente, nem atravessar as fronteiras, sem autorização masculina. Em 1974, as mulheres eram apenas 25% da população trabalhadora; apenas 19% trabalhavam fora de casa. Os maridos podiam impedir que as esposas trabalhassem e algumas profissões como a magistratura judicial, o ministério público, a diplomacia e as forças de segurança, eram vedadas às mulheres. Apenas as mulheres solteiras é que podiam ser enfermeiras, telefonistas ou hospedeiras da TAP. Se a mulher exercesse actividades lucrativas sem o consentimento do marido, este podia rescindir o contrato. Entendia-se, com toda a naturalidade, que certos lugares eram reservados aos homens. Escreveu Salazar, em 1939, (Discursos e Notas políticas. Vol. I: 1928-1934. Coimbra: Coimbra Editora.) na defesa de que o lugar da mulher e em casa e o seu papel essencialmente familiar, como “mãe, esposa, irmã ou filha de todos os que somos em Portugal” , que ela devia ficar longe do espaço laboral, pois “o trabalho da mulher fora do lar desagrega este, separa os membros da família, torna-os um pouco estranhos uns aos outros”, e porque, “nunca houve nenhuma dona de casa que não tivesse imenso que fazer, devendo pois confinar-se a sua presença e actividade aos espaços considerados “próprios”.

O provérbio “Entre marido e mulher, não metas a colher” demonstra uma clara submissão da mulher ao marido e a desvalorização de um eventual abuso de poder que pudesse verificar-se no seio do casal pela sociedade, instada a não se meter nas “coisas deles.” Se ainda hoje a violência doméstica representa um delicado problema para qualquer mulher, imagine-se o que esta crença generalizada podia significar num tempo em que a maioria das mulheres vivia na dependência económica do seu potencial agressor. A desconsideração da condição e menorização dos direitos da mulher é notória num preceito do Código Penal português que ate 1975 consagrava os crimes de honra, permitindo que um marido ou pai matasse a mulher adúltera, ou as filhas menores de 21, se “corrompidas”, com castigo máximo de seis meses de desterro da comarca. A pena para o marido era ligeira. Também o Código Civil de 1966 estabelecia, por exemplo, que o facto da mulher não ser virgem da mulher ao tempo do casamento podia ser motivo para a sua anulação pelo marido. Os contraceptivos não podiam ser tomados contra a vontade do marido, que podia alegar este facto para pedir o divórcio, e o aborto era punido com prisão.

Em provérbios como “ Homem com fala de mulher, nem o diabo o quer” ou “ Nem a homem calado, nem a mulher barbada dês pousada”, nota-se a presença de estereótipos ligados as características físicas e traços de personalidade que supostamente devem nortear a masculinidade e a feminilidade, sendo que a presença de traços femininos no homem, assim tornado efeminado, o fazem indesejável. A cultura popular centrou-se mais nos comportamentos femininos mas o segundo provérbio demonstra que os estereótipos podem atingir ambos os sexos. Sem traços de masculinidade– ombros largos, corpo musculoso, voz grossa, perfil competitivo, dominador, autónomo - o homem e discriminado; sem traços de feminilidade – formas arredondadas, harmoniosas, voz delicada, com perfil afectuoso, vulnerável, dócil - é a mulher igualmente censurada. Fazendo o paralelo com o Estado Novo, apenas uma breve referencia a Mocidade Portuguesa Feminina, a organização juvenil do Estado Novo, que surgiu em 1937, com o objectivo de criar a nova mulher portuguesa: esposa, mãe, doméstica, cristã, uma boa cidadã empenhada no Bem comum; já os ideais que orientavam a secção masculina eram o culto viril da força e do amor pátrio.

Se é o/a leitor/a é jovem e nunca teve acesso  a qualquer informação sobre os anos da ditadura em Portugal, o que escrevi poderá até parecer bizarro. Mas veja este pequeno filme da RTP intitulado  O ideal feminino do Estado Novo,  (print screens abaixo) que faz um sumário crítico da situação. Nele vemos três famosas mulheres que fizeram a denúncia desta opressão ao mundo num livro célebre. São elas: Maria Teresa Horta, Isabel Barreno, Maria Velho da Costa. Escreveram As novas cartas portuguesas, um livro de luta pela libertação da mulher.


"Nesse tempo (ditadura) uma mulher não podia ganhar mais do que um homem. 
O homem não aceitava. Parecia mal."
Antes de 1974 as mulheres ganhavam menos 40% do que os homens.


Novembro de 1974: as mulheres que cosiam as redes na vila piscatória de Peniche 
saiem à rua para reivindicar salários iguais.

Salazar equiparava a governação do país ao governo de uma casa.
O Estado Novo criou uma mulher submissa e subalterna.

Nos regulamentos internos, as empresas estipulavam que a mulher não podia
casar "por razões éticas". Por exemplo, uma empresa de telefonistas, até 1940.


Pavilhão dos Desportos, Lisboa.
Homens e mulheres em luta pelo direito ao divórcio.
Junho de 1975


Azulejos "Lá em casa manda ela. Mas nela mando eu."
Nelas, mandavam eles.

Outros provérbios similares:

- Cresce o ovo bem batido, como mulher com bom marido

- Conselho de mulher vale pouco e quem o tomar é louco

- Homem pequenino, ou velhaco ou dançarino

- Quem a mulher ensina a ler, ou e corno ou esta para ser

- Mulher chora sem razão, mija sem por a mão, e acasala sem tesão

Sugestão de leitura

As novas cartas portuguesas : E, em Abril de 1972, o livro seria publicado, com a chancela dos Estúdios Cor, então com direcção literária de Natália Correia, que, mesmo tendo sido instada a cortar partes da obra, insistiu em a publicar na íntegra. A história que rodeou a publicação e primeira recepção da obra é conhecida por entrevistas dadas aos jornais, sobretudo por uma das suas autoras, Maria Teresa Horta: sabe-se que essa primeira edição foi recolhida e destruída pela censura de Marcelo Caetano, três dias após ter sido lançada no mercado; sabe-se do processo judicial que foi instaurado às três autoras, por terem escrito, em colaboração, mediante prévia combinação, um livro ao qual deram o nome de Novas Cartas Portuguesas, posteriormente considerado de ‘conteúdo insanavelmente pornográfico e atentatório da moral pública’; sabe-se dos interrogatórios da PIDE/DGS, a que as três autoras foram sujeitas, separadamente, na tentativa de se descobrir qual delas havia escrito as partes consideradas de maior atentado à moral, e também da recusa das três (que até hoje se mantém) em o revelar; sabe-se do julgamento, que se iniciou a 25 de Outubro de 1973, e que, após sucessivos incidentes e adiamentos, só não teria lugar devido à Revolução de Abril (cf. Vidal 1974).

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