Bom mesmo, crónica de Luis Fernando Verissimo

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Para quem cultiva o humor inteligente, eis uma crónica de Luis Fernando Verissimo, da série "Novas Comédias da Vida Privada". De seguida, leia uma curta biografia para ficar a saber um pouco sobre quem é Luis Fernando  Veríssimo.

"O homem passa por várias fases na sua breve estada neste palco que é o mundo, segundo Shakespeare, que só foi original porque foi o primeiro que disse isso. Muitas coisas distinguem uma fase da outra – a rigidez dos tecidos, o alcance e a elasticidade dos membros, a energia e o que se faz com ela -, mas o que realmente diferencia os estágios da experiência humana sobre a Terra é o que o homem, a cada idade, considera bom mesmo. Não o que ele acha bom – o que ele acha melhor. Melhor do que tudo. Bom mesmo.

Um recém-nascido, se pudesse participar articuladamente de uma conversa com homens de outras idades, ouviria pacientemente a opinião de cada um sobre as melhores coisas do mundo e no fim decretaria:

– Conversa. Bom mesmo é mãe.

Já um bebê de mais idade discordaria.

– Bom mesmo é papinha.

Depois de uma certa idade, a escolha do melhor de tudo passa a ser mais difícil. A infância é um viveiro de prazeres. Como comparar, por exemplo, o orgulho de um pião bem lançado, ou o volume voluptuoso de uma bola de gude daquelas boas entres os dedos, com o cheiro de terra úmida ou de caderno novo? Existem gostos exóticos:

– Bom mesmo é cheiro de Vick Vaporub.

Mas acho que, tirando-se uma média das opiniões de pré-adolescentes normais e brasileiros, se chegaria fatalmente à conclusão de que, nessa fase, bom mesmo, melhor do que tudo, melhor até do que fazer xixi na piscina, é passe de calcanhar que dá certo.

Existe ainda uma fase, no começo da puberdade, em que a indecisão é de outra natureza. O cara se acha na obrigação de pensar que bom mesmo é mulher (no caso prima, que é parecido com mulher), mas no fundo ainda tem a secreta convicção de que bom mesmo é acordar com febre na segunda-feira e não precisar ir à aula. Depois, sim, vem a fase em que não tem conversa:

– Bom mesmo é sexo!

Essa fase dura, para muita gente, até o fim da vida. Mesmo quando sexo não está em primeiro lugar numa escala de preferências (“Pra mim é sexo em primeiro e romance policial em segundo, longe”) serve como referência. Daí para diante, quando alguém disser que “bom mesmo” é outra coisa que não o sexo estará sendo exemplarmente honesto ou desconcertantemente original.

– Olha, bom mesmo é figada com queijo.

– Melhor do que sexo?

– Bem… Cada coisa na sua hora.

Há quem anuncie o que prefere mesmo como quem faz uma confissão há muito contida. Abre o jogo e o peito, e não importa que pensem que o sexo não lhe interessa mais:

– Pensem o que quiserem. Pra mim, bom mesmo é discurso de baiano.

E há casos patéticos. Tem uma crónica do Paulo Mendes Campos em que ele conta de um amigo que sofria de pressão alta e era obrigado a fazer uma dieta rigorosa. Certa vez, no meio de uma conversa animada de um grupo, durante a qual mantivera um silêncio triste, ele suspirou fundo e declarou:

– Vocês ficam aí dizendo que bom mesmo é mulher. Bom mesmo é sal!

Com a chamada idade madura, embora persista o consenso de que nada se iguala ao prazer, mesmo teórico, do sexo, as necessidades do conforto e os pequenos prazeres das coisas práticas vão se impondo.

– Meu filho, eu sei que você, aí tão cheio de vida e de entusiasmo, não pode compreender isso. Mas tome nota do que eu vou dizer porque um dia você concordará comigo: bom mesmo é escada rolante.

E assim é a trajetória do homem e seu gosto inconstante sobre a Terra, do colo da mãe, que parece que nada, jamais, substituirá, à descoberta final de que uma boa poltrona reclinável, se não é igual, é parecida. E que bom, mas bom mesmo, é não precisar ir a lugar nenhum, mesmo sem febre.”

Uma curta biografia

Profícuo escritor de crónicas, Luis Fernando Veríssimo também é contista, guionista, romancista, cartoonista - foi assim que começou antes de despontar para a escrita, como tradutor e redactor publicitário, - e até músico já que tem um grupo de jazz. São conta mais de 60 livros publicados e unanimidade entre leitores e críticos. Nascido em Porto Alegre, é um dos mais bem-sucedidos e populares escritores brasileiros contemporâneos. Muitos livros que escreveu deram lugar a adaptações para o cinema,  TV e  teatro. Destaco títulos como Comédias da Vida Privada, que foi adaptado para uma série da TV Globo; Gula: O Clube dos Anjos, um romance, Borges e os Orangotangos Eternos, uma ficção policial; e O Analista de Bagé,cuja personagem é uma espécie de psicanalista freudiano da fronteira gaúcha. Veríssimo, é  filho do escritor Érico Veríssimo, que escreveu Olhai os lírios do campo, ou O tempo e o vento. Nascido, portanto, em berço literário, não desapontou a sua herança e revelou-se um mestre a analisar o quotidiano banal da sociedade brasileira e das pessoas normais através de um olhar singular, fazendo uso de uma linguagem muito clara, simples mas cuidadosa para desvendar todo o tipo de comportamentos da vida pública ou privada,  dos trágicos aos cómicos, com ironia e humor irresistíveis.

Aos 10 anos de idade, o publicitário e jornalista Marcelo Dunlop, descobriu  num texto de Luis Fernando Verissimo, que até a morte podia ser engraçada. Recortou a crónica do jornal e passou a fazer o mesmo com as seguintes. Duas décadas depois, uma empreitada: um livro, publicado em 2016,  Ver!ssimas frases, reflexões e sacadas sobre quase tudo, uma recolha de frases e de cartoons do inspirado autor brasileiro, com prefácio de também um bom cronista brasileiro, António Prata, de que deixo alguns exemplos para vos aguçar a curiosidade: 

BRASIL
No Brasil o fundo do poço é apenas uma etapa.

CLASSES
O Brasil é formado por uma classe dominante e uma classe ludibriada.

CONSTITUIÇÃO
Nossa Constituição é como “A Voz do Brasil”: a maioria não liga.

DEMOCRACIA
Toda a história da democracia no Brasil é a história da educação da nossa elite na arte de não mudar nada, ou só mudar o suficiente para não perder o controle.

FALCATRUAS
Nossa alma amazônica não se satisfaz com pequenas falcatruas, queremos pororocas de sujeira, dilúvios de canalhice.

IGUALDADE
Todo brasileiro é igual perante a lei, contanto que não seja pé de chinelo, porque aí é culpado mesmo.

INDEPENDÊNCIA
Todos deviam ser donos do seu nariz, mas infelizmente isto não acontece. Num país como o Brasil o sonho do nariz próprio continua inalcancável para a maioria.

JORNAL
Às vezes, a única coisa verdadeira num jornal é a data.

LINGUAGEM
Tortuosos são os caminhos da língua. Espera um pouquinho, ficou meio pornográfico.

TAXISTAS
O Brasil vai mal porque as únicas pessoas que sabem como governá-lo estão dirigindo táxis, em vez de no governo. Os motoristas de táxi têm a solução para todos os problemas do país ou – dependendo do tamanho da corrida – do mundo. Um dia, quando estivermos na iminência do caos terminal (pode ser amanhã), uma revolução popular colocará os homens certos nos lugares certos. Os motoristas de táxi, os dentistas e os barbeiros assumirão o poder, colocarão em prática suas teorias e resolverão todos os nossos problemas.


Sugestões de leitura:

Luis Fernando Veríssimo escreve no Estadão

Em entrevista de 2015, por Anabela da Mota Ribeiro: "Gosto muito daquela frase “conheça-se a si mesmo, mas não fique íntimo”. Não quero intimidades comigo mesmo. Quanto à psicanálise, concordo cm o analista de Bagé, que a considera uma frescura, embora possa ajudar algumas pessoas.

Em entrevista de 2018, por Nuno Costa Santos : "O colunista e autor de Aventuras da Família Brasil manifesta ter uma relação, digamos, pouco romântica com o gesto de escrever. É ele que diz, com ameno pragmatismo: “A minha musa inspiradora é o meu prazo de entrega”. Também tem por hábito citar uma frase de Zuenir Ventura, que diz que não gosta de escrever, gosta de ter escrito."

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