De como salvei um rato de laboratório e falhei


Quando aluna do Liceu da Figueira da Foz, salvei um rato branco de ser escortaçado numa placa de cortiça na aula de biologia. Era procedimento habitual, muito científico e de elevado valor educativo, que se fazia na sala de aula de então. Um dia qualquer do ano lectivo, lá era dividia a turma em grupos e a professora trazia um gobelé gigante de vidro cheio de ratos fresquinhos de mortos. Não sei já os objectivos pedagógicos da sessão. Sei que pude cravar o animal à placa, abrir a barriga do roedor e remexer nos orgãos do bicho, mais ou menos à vontade. Depois retirei e desenrolei cuidadosmente o seu intestino, que, a final, medi. A pequena tripa acinzentada estendia-se pela mesa de uma forma surpreendente. A professora não gostou muito da façanha exploratória, mas a mim pareceu-me um feito digno de nota 5 no final do período. Que devo ter tido, mas não por causa da façanha descrita, como é óbvio. Nos "feriados", costumava ir rondar o laboratório onde, em pequenas gaiolas eram mantidos os ratos brancos, no seu diverso estádio de crescimento, alguns do tamanho de feijões, muito rosados, aninhados entre os caracóis de madeira aplainada, outros já de pelagem completa, a ferrarem os dentes miúdos em pequenos cilindros de ração, cujo odor enchia o espaço. Os ratos do Liceu não tinham tempo de crescer e de ficar assim gordos como este do video que podem ver abaixo, no Youtube. Tão pouco recebiam mimos. Antes de alcançarem o tamanho actual do meu indicador, eram mortos e depois de crucificados nas placas de cortiça,esventrados pelos estudantes do 9º ano. Não sei como convenci a professora, se a falar da minha admiração por Félix Rodríguez de la Fuente, ou da vontade de ter um animal de estimação mais exótico que os meus amigos. A senhora, cujo nome não me ocorre, apesar de ter sido das minhas professoras favoritas, não acedeu imediatamente ao meu pedido de levar um daqueles infelizes ratos comigo.

Rato branco
Rat cuddles - ver video no Youtube


Um dia, finalmente, entregou-me o pequeno rato numa caixa de fósforos. O exemplar foi logo baptizado como praga pela minha mãe que tentou dissuadir-me de ficar com o bicho de olhos vermelhos e cauda rosada: "Leva-me essa Praga daqui para fora", dizia, ao vê-lo a percorrer a alcatifa cor de mel com manifesta desenvoltura. (Neste ponto permito-me desvendar que, desde criança, eu levava tudo quanto era bicho para casa, de gafanhotos a caracóis, de borboletas a bichos de conta,  todo o ser que eu conseguisse apanhar era capturado e morria, enfrascado ou encaixado, escondido algures num pequeno quarto de arrumação que fazia as minhas delícias de refúgio infantil.)

A minha vontade prevaleceu e o minúsculo animal entrou no seio familiar. O rato começou por viver numa pequena gaiola de periquito, que era o que havia de mais adequado lá por casa para lhe dar abrigo. Logo se descobriu que era um entusiasta da fuga: passava pelas grades como água, o que ninguém adivinharia, porque eram estreitas. Ter-lhe chamado Houdini teria sido uma boa homenagem, mas nunca passou de "rato". Por precaução foi mudado para um enorme alguidar cor-de-laranja, onde, em vão tentava escalar o plástico das paredes, arranhando continuamente. À noite fornecia-lhe um pedaço de cobertor velho onde o bicho se aninhava, exausto, para dormir. À minha avó incomodavam sobretudo os excrementos. Sempre que tentava higienizar a casa improvisada e o agarrava, ele ferrava-lhe na mão, deixando-lhe a marca dos dentes na carne: "Ai o sacana!, - dizia, abrindo muito os olhos para mim, como se eu fosse a culpada ou mesmo como se tivesse sido eu a morder.

A memória não me assiste quanto ao detalhe de tudo o que depois aconteceu. Certo é que, um dia indistinto, o rato desapareceu sem rasto. Acordei e ele não estava, não sei se no alguidar laranja, se noutra casinha entretanto providenciada. Fez-se uma caça ao rato por todo o apartamento, um segundo andar espaçoso. A família tornou-se uma brigada de busca e salvamento. Gatinhei por horas, rastejei, perscrutei tudo quanto era canto, de pilha eléctrica em riste, adivinhei possíveis esconderijos, conjecturei sobre rotas de fuga, motivos - teria o roedor querido regressar ao laboratório e à companhia dos seus? Teria o rato cometido suicídio atirando-se da varanda para o relvado por não gostar da cor laranja do alguidar? O mistério era denso e insondável. Na minha demanda, até inquiri os vizinhos do lado, o casal de professores Silvina e Queirós. Tudo esforços inconclusivos. Nem vestígio do animal.

Até hoje desconheço o fim do rato de laboratório do Liceu, mas sempre desconfiei que tinha ali havido mão familiar. A hipótese que assentou com o passar do tempo, embora nunca provada, e firmemente negada, foi a de que a minha avó tivesse atirado o rato branco pela janela da cozinha, talvez um gesto impensado e reflexo na sequência de mais uma mordidela. Desse lado menos urbanizado da rua, erguia-se uma barreira de terra e vegetação junto a um muro, onde, num casebre vergonhoso, porque sem condições, durante muito anos viveu o célebre Paulino e a sua gataria. Quantas vezes o ouvi chegar noite funda, acompanhado da sua senhora: "Oh, meu Deus!", - exclamava - Ó Limão! Ó Limão!"- E logo, após outro típico Oh, meu Deus: "Ó Triana! Ó Tareco!" Os animais vinham alegremente ao seu encontro a qualquer hora do dia e da noite e ele, curvado para o chão, distribuía festas e meiguice por todos.

Nunca contei à professora do sucedido, envergonhada, por não ter conseguido estar à altura da situação. E dizia a mim mesma, em jeito de consolação, quando passava pelo laboratório, que, ainda assim, tivesse o rato acabado na pança do Limão, ou conseguindo evadir-se da sua nova morada e, na sua aventura, acabado esborrachado pelo rodado de um pneu, sempre teria tido um destino mais natural e digno que os seus irmãos, esquartejados sem préstimo na mesa estudantil da aprendizagem moderna.



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