Livros do escritor brasileiro Nelson Rodrigues para comprar online

Citação Pensador

Até há bem pouco tempo, os livros de Nelson Rodrigues não estavam publicados em Portugal. Mas circulavam com frequência as suas citações na internet, sendo uma das mais conhecidas: "Os idiotas vão tomar conta do mundo, porque são muitos".  Ah, até faz lembrar aquela afirmação de Umberto Eco, bastante mais recente, de que a internet deu  direito à palavra a uma legião de imbecis que dantes falavam apenas num remoto bar e depois de uma taça de vinho, sem prejudicar a colectividade. Eco disse ainda, sem contemplações, que, normalmente, eles, os imbecis, eram imediatamente calados, mas agora eles têm o mesmo direito à palavra que um Prémio Nobel: o grande drama da internet é que ela teria promovido o idiota da aldeia a portador da verdade. Como contestar? A idiotice está por todo o lado, infelizmente, mais exposta do que nunca, e as pessoas, em vez de se envergonharem disso, exibem-na como marca. O que não significa que, mesmo antes da internet, ela não existisse e não tivesse voz. Os idiotas, enfim, eles sempre estiveram em toda a parte: não apenas em lugares remotos e pouco frequentados, mas também em cidades iluminadas, em baluartes do conhecimento, em instâncias de poder. E a partir da sua varanda de privilégio foi que debitaram as suas idiotices, porque, infelizmente, conhecimento e inteligência sem sempre livraram os homens da imbecilidade, embora sejam uma das mais evidentes vacinas contra a mesma!

Os Idiotas Confessos


"Antigamente, o idiota era o idiota. Nenhum ser tão sem mistério e repito: — tão cristalino. O sujeito o identificava, a olho nu, no meio de milhões. E mais: — o primeiro a identificar-se como tal era o próprio idiota. Não sei se me entendem. No passado, o marido era o último a saber. Sabiam os vizinhos, os credores, os familiares, os conhecidos e os desconhecidos. Só ele, marido, era obtusamente cego para o óbvio ululante.

Sim, o traído ia para as esquinas, botecos e retretas gabar a infiel: — «Uma santa! Uma santa!» Mas o tempo passou. Hoje, dá-se o inverso. O primeiro a saber é o marido. Pode fingir-se de cego. Mas sabe, eis a verdade, sabe. Lembro-me de um que sabia endereço, hora, dia, etc., etc.

Pois o idiota era o primeiro a saber-se idiota. Não tinha nenhuma ilusão. E uma das cenas mais fortes que vi, em toda a minha infância, foi a de uma autoflagelação. Um vizinho berrava, atirando rútilas patadas: - «Eu sou um quadrúpede!» Nenhuma objeção. E, então, insistia, heroico: - «Sou um quadrúpede de 28 patas!» Não precisara beber para essa extroversão triunfal. Era um límpido, translúcido idiota.

E o imbecil como tal se comportava. Nascia numa família também de imbecis. Nem os avós, nem os pais, nem os tios, eram piores ou melhores. E, como todos eram idiotas, ninguém pensava. Tinha-se como certo que só uma pequena e seletíssima elite podia pensar. A vida política estava reservada aos «melhores». Só os «melhores», repito, só os «melhores» ousavam o gesto político, o ato político, o pensamento político, a decisão política, o crime político.

Por saber-se idiota, o sujeito babava na gravata de humildade. Na rua, deslizava, rente à parede, envergonhado da própria inépcia e da própria burrice. Não passava do quarto ano primário. E quando cruzava com um dos «melhores», só faltava lamber-lhe as botas como uma cadelinha amestrada. Nunca, nunca o idiota ousaria ler, aprender, estudar, além de limites ferozes. No romance, ia até ao Maria, a desgraçada.

Vejam bem: — o imbecil não se envergonhava de o ser. Havia plena acomodação entre ele e sua insignificância. E admitia que só os «melhores» podem pensar, agir, decidir. Pois bem. O mundo foi assim, até outro dia. Há coisa de três ou quatro anos, uma telefonista aposentada me dizia: — «Eu não tenho o intelectual muito desenvolvido.» Não era queixa, era uma constatação. Santa senhora! Foi talvez a última idiota confessa do nosso tempo.

De repente, os idiotas descobriram que são em maior número. Sempre foram em maior número e não percebiam o óbvio ululante. E mais descobriram: — a vergonhosa inferioridade numérica dos «melhores». Para um «génio», 800 mil, um milhão, dois milhões, três milhões de cretinos. E, certo dia, um idiota resolveu testar o poder numérico: — trepou num caixote e fez um discurso. Logo se improvisou uma multidão. O orador teve a solidariedade fulminante dos outros idiotas. A multidão crescia como num pesadelo. Em 15 minutos, mugia, ali, uma massa de meio milhão.

Se o orador fosse Cristo, ou Buda, ou Maomé, não teria a audiência de um vira-lata, de um gato vadio. Teríamos de ser cada um de nós um pequeno Cristo, um pequeno Buda, um pequeno Maomé. Outrora, os imbecis faziam plateia para os «superiores». Hoje, não. Hoje, só há plateia para o idiota. É preciso ser idiota indubitável para se ter emprego, salário, atuação, influência, amantes, carros, jóias, etc., etc.

Quanto aos «melhores», ou mudam, e imitam os cretinos, ou não sobrevivem. O inglês Wells, que tinha, em todos os seus escritos, uma pose profética, só não previu a «invasão dos idiotas». E, de fato, eles explodem por toda parte: — são professores, sociólogos, poetas, magistrados, cineastas, industriais. O dinheiro, a fé, a ciência, as artes, a tecnologia, a moral, tudo, tudo está nas mãos dos patetas.

E, então, os valores da vida começaram a apodrecer. Sim, estão apodrecendo nas nossas barbas espantadíssimas. As hierarquias vão ruindo como cúpulas de pauzinhos de fósforos. E nem precisamos ampliar muito a nossa visão. Vamos fixar apenas o problema religioso. A Igreja tem uma hierarquia de dois mil anos. Tal hierarquia precisa ser preservada ou a própria Igreja não dura mais quinze minutos. No dia em que um coroinha começar a questionar o papa, ou Jesus, ou Virgem Maria, será exatamente o fim.

É o que está acontecendo. Nem se pense que a «invasão dos idiotas» só ocorreu no Brasil. Se fosse uma crise apenas brasileira, cada um de nós podia resmungar: — «Subdesenvolvimento» — e estaria encerrada a questão. Mas é uma realidade mundial. Em que pese a dessemelhança de idioma e paisagem, nada mais parecido com um idiota do que outro idiota. Todos são gémeos, estejam uns aqui, outros em Cingapura.

Mas eu falava de quê mesmo? Ah, da Igreja. Um dia, ao voltar de Roma, o dr. Alceu falou aos jornalistas. E atira, pela janela, dois mil anos de fé. É pensador, um alto espírito e, pior, uma grande voz católica. Segundo ele, durante os 20 séculos, a Igreja não foi senão uma lacaia das classes dominantes, uma lacaia dos privilégios mais hediondos. Portanto, a Igreja é o próprio Cinismo, a própria Iniquidade, a própria Abjeção, a própria Bandalheira (e vai tudo com a inicial maiúscula).

Mas quem diz isso? É o Diabo, em versão do teatro de revista? Não. É uma inteligência, uma cultura, um homem de bem e de fé. De mais a mais, o dr. Alceu tinha acabado de beijar a mão de Sua Santidade. Vinha de Roma, a eterna. E reduz a Igreja a uma vil e gigantesca impostura. Mas se ele o diz, e tem razão, vamos, já, já, fechar a Igreja e confiscar-lhe as pratas.

Cabe então a pergunta: — «O dr. Alceu pensa assim?». Não. Em outra época, foi um dos «melhores». Mas agora é preciso adular os idiotas, conquistar-lhes o apoio numérico. Hoje, até o génio se finge imbecil. Nada de ser génio, santo, herói ou simplesmente homem de bem. Os idiotas não os toleram. E as freiras põem short, maiô e posam para Manchete como se fossem do teatro rebolado. Por outro lado, d. Hélder quer missa com reco-reco, tamborim, pandeiro e cuíca. E a missa cómica e Jesus fazendo passista de Carlos Machado. Tem mais: — o papa visitará a América Latina. Segundo os jornais, teme-se que o papa seja agredido, assassinado, ultrajado, etc., etc. A imprensa dá a notícia com a maior naturalidade, sem acrescentar ao fato um ponto de exclamação. São os idiotas, os idiotas, os idiotas."


Nelson Rodrigues, O Homem FatalSe gostou do estilo de Nelson Rodrigues, pode adquirir o livro O homem fatal, online, na Wook!

Capa de livro (Wook)

Pequena lista de sugestões:

1. Leia a biografia de Nelson Rodrigues. Escritor, jornalista e dramaturgo, autor genial que escandalizou e deliciou leitores e plateias, mudou para sempre o panorama teatral brasileiro com  peças como "Vestido de Noiva", "Boca de Ouro", "A Falecida", "Toda Nudez Será Castigada". O seu olhar imoral, mas moralista, incidia sobre  vida quotidiana dos subúrbios cariocas. As suas páginas carregam crimes, incestos e diálogos carregados de tragédia e humor.

2.  Ou, se preferir, leia a última entrevista do polémico brasileiro : “O europeu ou é um Paul Valéry ou uma besta!”. — Continuando a frase após breve distração, com coisas e objetos do seu entorno: — “… a Europa é uma burrice aparelhada de museus. (…) Ao passo que o Brasil é o analfabetismo genial!”.

3.  A biografia de Nelson Rodrigues, O anjo pornográfico, foi escrita por Ruy Castro, que também biografou Carmen Miranda e Garrincha. Ruy Castro, também jornalista, talvez tenha sido o biógrafo ideal: "É verdade que eu já tinha toda uma vida ligada a Nelson como leitor. Aprendi a ler sozinho, no colo de minha mãe, lendo sua coluna diária A vida como ela é…, no jornal Última Hora, do Rio, entre os quatro e os cinco anos. Logo depois, redescobri-o como colunista de futebol na revista Manchete Esportiva. E nunca mais parei de o ler. Em 1960, tive a felicidade de ler seu folhetim Asfalto selvagem à medida que os capítulos saíam diariamente na Última Hora - é uma leitura impressionante para um garoto de 12 anos. Quando me decidi a biografá-lo, em 1990, já tinha lido todos os seus livros e visto quase todas as suas peças." Leia a entrevista na íntegra.
4. Se nunca ouviu falar de Nelson Rodrigues, comece aqui, a ler 100 frases que lhe são atribuidas e prepare-se para, no mínimo, ser surpreendido: "O casamento é o máximo da solidão com a mínima privacidade."

5. E, aqui, leia uma opinião sobre o seu único romance: O casamento, que só pode ser publicado em Portugal em 2017. Este livro escrito em apenas dois meses, foi lançado no Brasil em 1966. O país tinha acabado de entrar num  período (1964-85) de ditadura militar. O romance foi censurado por atentar contra a moral e os bons costumes. Mas vendeu como pão quente!

6. Assista, ainda, a um filme dirigido pelo dramaturgo João Bethencourt (que chegou a lamentar que o filme estivesse perdido) e patrocinado pelo Consulado dos EUA. João entrevistou Nelson Rodrigues  e o dramaturgo norte-americano Edward Albee . A versão integral foi localizada no Arquivo Nacional dos EUA por Carlos Fico. Aí ele se diz ter sido considerado um "caso de polícia".

7. E, por fim, em Nelson Rodrigues e a unanimidade, um alerta por Fernando da Mota Lima:"Flor narcisista hostil à indiferença ou ao coro unânime dos idiotas, Nelson certamente ficaria perplexo ao constatar que a posteridade diluiu ou apagou todos os traços complexos da sua personalidade provocativa."

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