Quando o beijinho nos avós destrona o beijo de Judas em polémica!


Discutia-se na TV, parece, o consentimento sexual, num programa sobre assédio sexual e Movimento Metoo, quando Daniel Cardoso, professor universitário na área da comunicação, afirmou qualquer coisa como:"É preciso falar de educação de forma concreta. A educação é quando a avozinha ou o avozinho vai lá a casa e a criança é obrigada a dar o beijinho à avozinha ou ao avozinho. Isto é educação, estamos a educar para a violência sobre o corpo do outro e da outra desde crianças. Obrigar alguém a ter um gesto físico de intimidade com outra pessoa como obrigação coerciva é uma pequena pedagogia que depois cresce. Sim. Estou a dizer que obrigar alguém a ter um gesto físico de intimidade com outra pessoa, com obrigação coerciva, é uma pequena pedagogia... E agora vem o Foucault, com as microfísicas do poder... É uma pequena pedagogia que depois cresce e depois vemos os estudos em que 49% dos jovens adolescentes acham aceitável que o namorado ou a namorada lhes controle os telemóveis."

Não vi o programa Prós e Contras mas vi o excerto do programa onde ele faz esta afirmação, e agora li uma entrevista no Diário de Notícias onde o mesmo se defende, mas mal, da polémica que gerou. Refira-se que esta peça é tendenciosa, toma o partido do entrevistado nas questões e elimina o ponto mais polémico da afirmação, quanto a mim o mais questionável.

Vem alguém à TV dizer que aquilo que entendemos como educar para os afectos é educar para a violência. É natural a polémica: eis que o beijinho no avô destronou o beijo de Judas em polémica! Além do mais a personalidade e actividades de Daniel Cardoso prestam-se a que não se queira sequer dar uma hipótese de análise à mensagem que transmitiu. Não vamos tapar o sol com uma peneira: DC não é um aglutinador da maioria, é um herói das minorias. Por outro lado ainda, sendo formado em Comunicação, sabendo que está na RTP, a ser visto por uma população que não tem obrigação de conhecer as suas teorias, que são, para muitos, marginais, foi desastrado na formulação e no tom das suas afirmações, no uso de diminutivos que soaram, efectivamente, redutores da função familiar dos avós quando é reconhecida a sua função no seio familiar e se acarinha, cada vez mais, o benefício inter-geracional, o seu papel e contributo auxiliar no desenvolvimento de crianças, adolescentes e jovens.

Não é difícil alinhar com DC quanto à ideia de não forçar as crianças a demonstrarem afecto que não sentem por uma questão de mera boa educação. Importará muito mais perceber porque não querem beijar o avô e isso talvez seja apenas porque não existe uma relação de afectividade cultivada pelo adulto com a criança desde o berço. Se a vê pouco, se é uma pessoa fechada, sem interesse pelos netos. Nestes casos, que outra reacção esperar? Por outro lado, se a criança é naturalmente tímida ou reservada, será natural levar em conta o seu carácter. Se nenhuns pais razoáveis vão transformar um momento de saudação numa guerra familiar, intimidar, usar de força ou violência para obrigar ao beijo,  também não irão permitir uma birra de má educação. Creio mesmo que a maioria usará de bom senso, de acordo com o que é usual no seio da família, os seus rituais, os seus códigos.

Já é, no entanto, complicado entender que os pais possam estar a colocar os filhos em perigo ao fazer com eles o que se aprenderam com seus pais. Dar beijos aos avós é uma tradição, tem a ver com a identidade cultural, a nossa cultura, a nossa forma de saudar e demonstrar afectos. Em alguns países os pais dão beijos aos filhos na boca, - até mesmo quando eles já são grandinhos, - por cá esse comportamento seria constrangedor: não é esse o nosso hábito. Noutros a cultura do toque é repudiada.

Ninguém quer aceitar sem luta que está a educar mal as suas crianças ao praticar algo que é habitual e ninguém quer aceitar, sem fundamento, que um estranho lhe venha dizer que está errado. Resistir a uma ideia diferente por ser diferente, é normal. É preciso tempo e abertura para conhecer e reflectir sobre a novidade e nem sempre se está para aí virado. Estar preso à nossa maneira de entender as coisas porque ela nos dá segurança e é confortável, também atrapalha. E nem sempre nos conseguimos colocar no lugar do outro, perspectivar a situação do lado de lá. Mas a regra velha e sábia é ensinar às crianças que não falem com estranhos, não aceitem nada de estranhos,  até usando de intimidação para que ela aprenda o que é certo. E certo é também que ensinar a criança a falar com os familiares e a acarinhá-los: é educação para a afectividade. Porque o abuso parte muitas vezes de pessoas que são próximas às crianças não é razão para temer instrui-las de forma diferente, o abuso será uma excepção. Mas dizer que pais educam para a violência sobre o corpo do outro quando forçam a criança a dar um beijo ao avô e que esta coerção  irá  transformar a criança em abusador no futuro ou torná-la vulnerável ao abuso é uma grande volta, assim como é colocar em pé de igualdade o poder parental - que legitima o uso da coerção em justa medida no interesse do menor - com quaisquer outros poderes capazes de levar ao abuso.

Os pais têm um poder-dever de educação no interesse dos filhos. Diz Daniel Cardoso na entrevista ao DN "A criança permite às pessoas exercer aquilo a que se chama a tirania dos pequenos poderes. Porque a criança precisa de protecção acrescida e de competências que ainda não adquiriu, há a utilização desse dever parental para a imposição de obrigações que vão muito para além do cumprimento desses direitos e desses deveres. " A palavra “poder” remete para uma relação de domínio mas os pais são, no geral, hoje menos autoritários que no passado. Está em curso uma nova  forma de encarar o poder paternal, exercido no interesse dos filhos. Retirou-se o carácter de subjugação da criança na célula familiar, ela tem maior participação ali e por isso fala-se antes de "responsabilidade parental" . Também o termo "paternal" tem vindo a ser preterido desde que a mãe passou a ter um papel equiparável ao do pai. Cada vez mais, as relações entre pais e filhos assentam na igualdade de tratamento e em deveres mútuos de colaboração, na abertura ao diálogo e no respeito da personalidade dos envolvidos. O rumo que tomou a vida moderna, todavia, parece dificultar em vez de contribuir para a prática este entendimento, empurrando progenitores e filhos para fora de casa por longas horas, ou para enredos em vidas virtuais, jogos e ecrãs, minando a qualidade de relações de proximidade e fazendo rarear o diálogo nos olhos.

Forçar a criança a fazer algo que ela não quer acontece em muitas situações no seio familiar. Ora, forçar é exercer poder. Se a obediência coerciva for exercida no interesse do menor não está ainda dentro do dever de educar? Educar é, sem dúvida, mais ensinar e corrigir do que forçar. Fruto da evolução da concepção da criança pela sociedade, ela é hoje encarada como pessoa e verdadeiro sujeito e titular de direitos, de acordo com a sua idade e capacidades, desfruta de uma certa autonomia. Está longe o tempo dos Romanos em em que os filhos eram propriedade do pai (pater familias). Mas por vezes terá se ser forçada a adoptar certos comportamentos pois não haverá forma de aprender. A resistência é uma reacção típica a tudo o que não dá prazer e algumas crianças, mais do que outras, não querem ser contrariadas e muitas vezes tratar-se-á de aprendizagens essenciais para que se desenvolvam em pleno: é no seio da família que ocorre a socialização dos filhos, ou seja, a transmissão de normas, valores, modelos de comportamento, a cultura e identidade dos progenitores, é aí que se opera a maturação emocional desta pessoa em transformação e se molda o seu carácter para que se torne um ser humano activo e responsável no futuro. Será muito difícil educar sem respeitar o não da criança, mas Daniel Cardoso, que não é nem psicólogo nem pedagogo sequer, é peremptório: "Se ensinarmos às crianças que não se respeita um não e - atenção a isto - que pela utilização da violência ou da coerção ultrapassamos este não, estamos a dar um exemplo. E é um exemplo que elas vão levar ao longo da vida toda. E esse exemplo diz que se tiveres poder suficiente, podes passar por cima do não do outro."

Mas como medir o impacto desta aprendizagem no desenvolvimento da criança se não será nunca uma aprendizagem isolada? Não será contrabalançada por outras no que possa ter de negativo? E o que dizer de tanto determinismo? Como acreditar que a criança se transformará numa pessoa abusadora e incapaz de reconhecer os limites do outro porque a contrariamos no seu não e a obrigamos a dar um beijo? Parece ser uma enorme presunção pensar que insistir no cumprimento dos avós com um beijinho vá conduzir ipsis verbis a que a criança aceite ou tolere contactos físicos ou outros não desejados no futuro por parte de quaisquer adultos, ou mesmo na adolescência, por outros adolescentes. Uma criança tem de aprender a distinguir muito bem o que é carinho e o que é abuso. Até concordo que esta pode ser uma oportunidade para ensinar às crianças sobre sexualidade e consentimento, o direito à decisão sobre o próprio corpo e o direito que o outro tem sobre o seu corpo. Mas julgo que, se não for feito, será menos o trauma de um beijo forçado no avô e mais a ausência de diálogo esclarecido e atempado dos progenitores com ela sobre o corpo, o que seja intimidade, afectividade e sexualidade, que a irá tornar presa fácil de manipulação e violência diversa ou agente abusador. Por outro lado, o que se perderá se, por receios de má formação da criança,  eliminarmos os beijos e o toque das nossas relações afectivas? Para não me alongar mais, deixo como pista a opinião de Ashley Montagu, pensador social humanista, essencialmentepreocupado com a relação entre os fatores sociais e a evolução física e comportamental do Homem, sobre os actos de comunicação de afecto:
"Não são tanto as palavras quanto os actos de comunicação de afecto e envolvimento que as crianças, e realmente os adultos também, precisam. As sensções tácteis tornam-se percepções tácteis segundo os significados dos quais foram investidas pela experiência. Experiências tácteis inadequadas resultarão numa falta dessas associações e numa consequente incapacidade de criar relacionamentos fundamentais com outras pessoas. Quando o afecto e o envolvimento são transmitidos pelo tacto, são com estes significados, além dos de provimento de segurança através de satisfações, que o tacto passará a estar associado. Este é, portanto, o significado humano de tocar."
Para terminar, do que percebi da minha leitura rápida de Foucault, que DC invocou, mas sem explicar, no Google: o poder deve materializar-se por meio de diferentes formas de disciplina. É necessário que passe a integrar parte do próprio ser de cada indivíduo. O dominado deve considerar natural ser subjugado. O poder volta-se para o corpo do indivíduo, não com a intenção de reprimi-lo, mas de domesticá-lo. A“verdade” é produto de várias coerções causadoras de efeitos regulamentados pelo poder dominante. É criado um discurso que se apresenta como "natural". Este tenderá a bloquear o surgimento de outros que questionem a sua verdade. Na moderna sociedade o Estado já não concentra em si o poder como em tempos passados. O poder está em todo o lado, o seu grande objectivo é controlar o comportamento humano, limitar a liberdade do homem, reforçar a lógica de uma sociedade opressora, retirar capacidade crítica ao indivíduo. O indivíduo interioriza normas e nem questiona o seu sentido: se é norma, então cumpra-se. A sociedade quer-se disciplinada e então todos actuam como agentes da disciplina sobre alguém transformando as relações do quotidiano em malhas opressoras.

O exercício do poder paternal, ou da parentalidade, parece incomodar realmente Daniel Cardoso que nessa entrevista do DN diz também que a discussão (a que se referia a sua afirmação na TV) é sobre " a parentalidade vista como um último reduto de relações verticais de poder naturalizadas". Não sei se o Prof. Doutor não será o exemplo de um homem intelectual, algo exótico, que vive muito nas páginas dos livros e de teorias e experimentações sociais avançadas e pouco no mundo real, no mundo das pessoas mais concretas e dos afectos. Foucault, do livro Microfísica do poder, que procurei resumir acima, para meu próprio esclarecimento, fez-me acabar por não perceber se o que Daniel Cardoso afinal defende não será  o fim da opressão das crianças pelos progenitores em nome da liberdade, a extinção do tal reduto de "relações verticais de poder". Isto lembrou-me o filme de Truffaut, O menino selvagem, e o que ele disse a propósito: "Recebemos a natureza por herança, mas a cultura não nos pode ser dada senão pela educação."

Comentários