Halloween e Pão por Deus


Tomem lá este mascarado do Halloween que caíu dos ceus, trick or treat, booo! 

A maioria de nós não acha gracinha nenhuma ao Halloween, -"Halloween" vem da expressão "All Hallows Eve", isto é, Véspera de Todos os Santos - essa estranha tradição (americana) com raízes celtas, levada para ali no séc. XIX pelos imigrantes irlandeses nos bons tempos em que o país abençoava a sua chegada sem reticências. 

Em Portugal há antipatia generalizada pelo Halloween, porque "não é nossa tradição", mas adoptou-se sem reservas o Pai Natal, aquele velhote diabético e cheio de gota que ficou obeso de tanta Coca-Cola que bebeu. Aguardem: ele está quase a estoirar por aí, é vê-lo a trepar às varandas por cordas e escadas como um desastrado assaltante! O Pai Natal também não é uma invenção portuguesa, esse, o barbudo simpático, vestido de bota preta e fato vermelho: vagamente aparentado com a figura religiosa de São Nicolau, bispo da Turquia, ele foi criado por um publicitário para a marca Coca-Cola. Spoiler alert! Em rigor o Halloween também não é uma invenção americana: sem emigração europeia ele não existiria. 
O Halloween, esse festim consumista de guloseimas, festival de decorações de interiores e exteriores e um desfile de todo o tipo de máscaras, já foi, nos EUA, mais consensual do que é hoje. Todos os anos vejo fotos de mascarados e algumas são imensamente criativas, outras, banais. E o que dizer de catálogos onde o vale tudo comercial levou a que a Branca de Neve, ícone das crianças, fosse apropriada pelo universo dos adultos transformando-se numa gaja sedutora e engatatona? Como eles dizem: WTF?! Os animais de estimação, pobres deles, também não escapam à mascarada. Os "disfarces" tanto podem ser de figuras da galeria de personagens do horror clássico como da Guerra das Estrelas ou da Disney. O Halloween já não é sinónimo de sustos e personagens medonhas apenas. Há menos tempo para o disfarce feito em casa, uma actividade que juntava as famílias em torno de um projecto, e ganhou o pronto-a-usar, potencialmente alérgico, plástico, usa e deita fora, made in China. Aquele jogo em que os miúdos tentam apanhar só com os dentes uma maçã dentro de uma taça cheia de água, que também tem origem celta, joga-se talvez hoje no smartphone: não é a mesma coisa. Também ninguém mais aceita bolinhos confeccionados em casa receando o pior: os adultos estão prisioneiros de histórias de terror que vêem na TV e assim tornaram as crianças reféns das gulodices industrializadas. Num momento em que se luta contra a obesidade infantil trava-se a batalha para convencer a trocar os doces do trick or treat por alternativas saudáveis: não pega. Se havia um certo valor em sair de casa e falar com gente desconhecida da vizinhança na negociação do trick ou treat!, mesmo se a regra era não aceitar doces de desconhecidos, hoje os receios levaram à invenção do trunk or treat em que os pais decoram as bagageiras dos automóveis e ficam num parque de estacionamento de uma escola ou de uma igreja à espera das crianças mascaradas.


Não somos apenas nós que não encontramos na tradição do Halloween piada alguma. Muitos Americanos detestam-no. Dizem sentir em relação a ela a mesma pressão e desconforto que os acomete pela passagem de ano, em que parece ser obrigatório passar um bom bocado. Em Outubro as TV americanas vomitam séries, filmes e anúncios inspirados pela temática; as festas de Halloween estão em todo o lado, são palcos de exibicionismo cerrado onde todos querem ser fotografados para aparecer no Instagram e no Facebook: o convívio é secundário. Tudo é negócio: a tradicional mistura de canela, gengibre, cravinho, noz moscada e pimenta da Jamaica é explorada até ao enjôo em todo o tipo de produtos. Perdidas na noite dos tempos ficaram a origem e o significado das lanternas de nabos esculpidos originalmente na Irlanda, que na América eram raros e por isso foram trocados por abóboras. Hoje, claro, disputam as decorações com as de plástico. Os tempos medievais da escuridão das densas florestas europeias e de medos que ali moravam deram lugar à luz bruxuleante das cidades: em contexto urbano o Halloween tornou-se menos fantasmagórico e muito mais carnavalesco.

Também na  Inglaterra há queixas contra o Halloween que parece competir com a Bonfire Night, que a 5 de Novembro festeja a sobrevivência do rei Jaime I, protestante, à conspiração da pólvora encabeçada por Guy Fawkes, católico, que pretendeu fazer explodir o parlamento. Tradicionalmente os jardins enchiam-se de fogueiras, os céus de fogo de artifício, as ruas com desfiles. As crianças faziam efigies de Guy Fawkes para queimar nas fogueiras, recolhiam madeira e até a roubavam, e pediam dinheiro de casa em casa,- a "penny for the Guy" - cantando "Don't you Remember,/ The Fifth of November,/ 'Twas Gunpowder Treason Day,/ I let off my gun, /And made'em all run./And Stole all their Bonfire away!" Mas isto sucede cada vez menos, parecendo estar em declínio, e mesmo a ser contaminado pelo Halloween Americano. Tornam-se populares os bailes de mascarados e de porta em porta pede-se "dinheiro para o Guy" à mistura com doces. Em Outubro as lojas são decoradas em tons laranja, preto  e roxo, com abóboras, fantasmas e bruxas. Se muitos consideram esta moda uma intrusão e o resultado do imperialismo cultural norte-americano, outros sentem-se menos incomodados invocando que as raízes do Halloween se encontram na Irlanda e na Escócia e referem que  a Rainha Vitória celebrou o Halloween na residência real na Escócia, Agatha Christie publicou "Festa de Halloween", - por cá, Poirot e o encontro juvenil, - uma história sobre um assassinato de uma criança numa festa de Halloween que é investigado por Poirot, Robert Burns escreveu um poema sobre o Halloween, etc.

Mas ingleses e irlandeses tinham uma tradição, o "souling", em tudo semelhante ao nosso "Pão por Deus": "A soul! a soul! a soul-cake!/Please good Missis, a soul-cake!/ An apple, a pear, a plum, or a cherry,/Any good thing to make us all merry./ One for Peter, two for Paul/ Three for Him who made us all." Os "Soul-Cake", - ver a receita no link - ou Bolos de Alma, eram originariamente dados a crianças e pobres que iam pedir de porta em porta, cantando e dizendo orações em agradecimento. Acredita-se que possa estar na origem do trick ou treat, a pergunta por "doçuras ou travessuras" que as crianças fazem à porta das casas, no Americano Halloween. Esta tradição manteve-se até ao século passado. Em 2009, Sting incluiu uma bela canção, "Soul Cake", no seu álbum "If on a Winter's Night", explicando a sua origem : é uma antiga canção inglesa dos "pedintes". 

Em várias regiões do nosso país era costume que no Dia de Todos os Santos as crianças saissem bem cedo à rua com sacos de pano para pedir o "Pão por Deus" de porta em porta, recitando versos e recebendo, em troca, pão, broas, bolos, frutos secos, ou dinheiro. Depois do regresso a casa e almoço, iam com a família aos cemitários colocar flores nas campas dos queridos falecidos.

A 1 de Novembro de 1755, Lisboa foi atingida por um terramoto que destruiu grande parte da capital. Milhares de pessoas assistiam às missas do Dia de Todos os Santos. No dia em que se cumpria o primeiro aniversário do terramoto, a população aproveitou a solenidade do Dia de Todos os Santos para desencadear por toda a cidade um peditório para minorar a situação de pobreza em que tinham ficado: qualquer esmola seria boa, nem que fosse pão, "Pão, por Deus", era assim a súplica. Nas décadas de 60 e 70 do séc. XX, criaram-se regras - desconheço quem - e apenas podiam pedir o "Pão-por-Deus", crianças até aos 10 anos de idade e até ao meio-dia. A partir dos anos 80 a tradição foi gradualmente desaparecendo e, actualmente, raras são localidades onde se pratica esta tradição.

Na zona de Coimbra, em vez de "Pão por Deus", na véspera de 1 de Novembro, as crianças, com uma caixa de cartão ou uma abóbora vazia, com dois buracos, no lugar dos olhos, pediam "Bolinhos, Bolinhós":  entoavam a canção (escutar no link) :

Bolinhos e bolinhós
Para mim e para vós,
Para dar aos finados
Que estão mortos e enterrados
À porta da bela cruz
Truz! Truz! ( bate-se à porta)
A senhora que está lá dentro
Sentada num banquinho
Faz favor de vir cá fora
P´ra nos dar um bolinho (ou um tostãozinho)

Se lhes dessem um bolo, guloseimas ou dinheiro cantavam:

Esta casa cheira a broa,
Aqui mora gente boa.

ou

Esta casa cheira a vinho,
Aqui mora um santinho.

E se nada obtivessem:

Esta casa cheira a alho
Aqui mora algum bandalho.

ou

Esta casa cheira a unto,
Aqui mora algum defunto.

Para terminar, sugiro a leitura da entrada Coca, na Wikipedia, onde, entre muitos outros factos curiosos, se refere a utilização de uma abóbora escavada, iluminada por uma vela. E porquê? Porque, afinal parece que até a própria abóbora luminosa já era feita em Portugal muito antes de ter sido "inventada" na América. Parece que esculpir abóboras com rostos é uma tradição milenar na Península Ibérica que remonta ao tempo dos celtiberos. Ou seja, o Halloween será talvez muito menos americano do que muitos julgam e até o Pão por Deus menos português do que todos gostaríamos de acreditar. 

"Nesta mesma cidade de Coimbra, onde hoje nos encontramos, é costume andarem grupos de crianças pelas ruas, nos dias 31 de Outubro e 1 e 2 de Novembro, ao cair da noite, com uma abóbora oca e com buracos recortados a fazer de olhos, nariz e boca, como se fosse uma caveira, e com um coto de vela aceso por dentro, para lhe dar um ar mais macabro."Em Coimbra o peditório menciona «Bolinhos, bolinhós», e o grupo traz uma abóbora esvaziada com dois buracos a figurarem os olhos de um personagem e uma vela acesa dentro[...]outro exemplo da utilização da abóbora ou cabaço como figuração humana, nas máscaras dos embuçados das esfolhadas de Santo Tirso de Prazins (Guimaräes), que depois, estes passeiam, alçadas num pau e com uma vela dentro, e deixam espetados em qualquer sitio mais ermo, para meterem medo a quem passa." 

Comentários