As natas do MC Somsen

No fim-de-semana vi uma postagem do MC Somsen onde ele partilhava que uma Ana se tinha apropriado de umas suas fotos com pastéis de nata dando a entender que as tinha fotografado, colocado a legenda divertida e eventualmente comido as natas, na Praia Grande. Ora, talvez o MC não tivesse o botão de partilha de postagens activo. Mas a Ana, se mais educada, podia ter pedido emprestado ao MC aquele momento saboroso:” Ó MC, posso servir-me das tuas natas para acrescentar alguma doçura à minha vida virtual que é tão amarga e deslambida?” Tenho a certeza que o MC teria condescendido. Mas não. Como era obviamente uma questão de vida ou de morte, a Ana nem lhe ocorreu pedir. O tempo urgia. Aos primeiros suores, tremores e quebra de forças, a Ana gamou as natas para assim evitar a quebra de tensão. Ou, mais apropriadamente, a quebra de atenção. Ninguém gosta de perder a atenção dos outros por muito tempo, aqui, no Facebook. Além disso, pedir dá o seu trabalho, demora. Gamar é o melhor remédio. Mesmo assim, a Ana podia, depois de passada a crise do açucar, ter dado créditos ao MC. Mas não. O que é lá isso de dar créditos? Indicar a fonte? Respeitar o que é dos outros? Ser, no mínimo, gentil? Só os totós ligam a isso, os totós e o tonto do Zuckas que num tom quase bíblico incluíu nos TOS do Facebook um mandamento a propósito dos aborrecidos direitos: “Não publicarás conteúdo ou tomarás qualquer acção que infrinja ou viole os direitos de outra pessoa”, evidentemente, palavras que são puro chinês para as Anas.

Este desabafo do MC Somsen vem somar-se a mais alguns que já tinha lido. Diversas pessoas abordaram o tema do gamanço no Facebook e não creio que seja por não terem melhor assunto. Concluí que o fenómeno do gamanço é percepcionado e impacta os cibernautas de forma diferente. A Mariana, por exemplo, considera que gamar cenas no Facebook é muito diferente de gamar laranjas no quintal porque o Facebook é um território onde é tudo público, tal como a internet em geral. Os gamados são uns queixinhas insuportáveis que não entendem esta evidência e que só complicam. A Mariana, que defende com unhas e dentes cada laranja das laranjeiras do seu quintal, até mesmo dos passarinhos, diz à boca cheia e sem remorsos que o Facebook é terra de ninguém, território virtual que escapa às leis do real, não muito diferente de um Farmville. Todavia sabemos que a Mariana gosta de respeitinho e quando se partilha coisas da sua lavra, embora seja raro dar-se ao trabalho de ser original, há que dar créditos ou choverão no mínimo rubros emoticons zangados.

Já o Nicolau dá tudo o que publica de mão beijada e espera que os outros o façam também. Entende que o Facebook é de todos nós, uma espécie de comunidade avançada onde o conceito de autoria foi abolido, onde quem se arrogar direitos sobre um seu texto ou fotografia deve ser visto como um opressor merecedor de reprovação virtual, um excêntrico até. O Nicolau, se tivesse um quintal com laranjeiras, ofereceria com vaidade todas as suas laranjas à aldeia global e esperaria que os outros retribuissem na mesma laranja. Mas ele não tem um quintal, tem apenas a horta no Facebook onde lavra diariamente a sua poesia. Imaginando que os seus poemas fossem laranjas, quando o Nicolau é roubado diz que fica feliz: é porque eram laranjas excelentes, de outra forma ninguém olharia para elas duas vezes. Sente-se assim valorizado. O Nicolau exultaria até se alguém fizesse doce com elas, mesmo às escondidas e sem sequer partilhar consigo a bela receita da marmalade, tudo em nome da grande irmandade que é o Facebook e que ele está grato por integrar. Mas sabemos que o Nicolau, experiente professor do liceu, perde a cabeça quando os alunos usam palavras, ideias e trabalho de outros alunos, que eles vão buscar ao Slideshare, dando a impressão de que são seus.

Já o António é uma criatura muito excrupulosa com o-seu-a-seu-dono, um purista que sempre enjeitou a cassete pirata e a fotocópia, e que nunca foi capaz de ver um filme em streaming. António teme como poucos o gamanço digital, quase tanto quanto a laranja do Algarve teme a psila africana ou o vírus da Tristeza. Inclui sempre a frase “Todos os direitos reservados” no rodapé das suas croniquetas, aliás, começa a escrever os seus textos por aí, não vá esquecer-se. Também é exímio a semear o símbolo de copyright, ©, nas suas fotografias de viagem, algumas premiadas. E já esteve mais longe de o inserir nos comentários agridoces que deixa a quem informa da prevaricação. Imagino que para ele o Facebook seja uma extensão virtual do território dos Estados Unidos (ou países anglo-saxónicos), onde se usa a protecção do direito de cópia ou reprodução da obra. Um dia leu que por cá somos herdeiros do sistema de direitos autorais francês, mais voltado para o autor e suas prerrogativas, menos para a exploração económica da obra, o investimento, e que está por ele protegido, mas nem assim. Desconfiado, da vez seguinte que publicou uma fotografia, voltou a inserir o circunspecto ©.

Em suma: não é invulgar que os Antónios escupulosos andem envolvidos em conflitos com Marianas convencidas que se lhe atravessam no feed virtual e que não respeitam o seu ©, copiando/cropando as suas fotografias e alterando os seus textos com grande descontração. Ou que desprezem os Nicolaus poetas em absoluto pela sua santa ingenuidade acerca de direitos e distorcido sentido de generosidade. Tão pouco que Marianas façam gato-sapato dos Nicolaus, esses mãos largas, sempre agradadas do seu conveniente carácter bonacheirão, e acusem constantemente os insuportáveis Antónios de serem gajos cheios de mania com quem não se pode conversar sem a presença de um advogado. Os complacentes Nicolaus vão facilmente na cantiga das Marianas e não conseguem ter muita empatia pelos agarradões dos Antónios, não conseguindo entender porque é que mais uma fotografia de um banal pôr do sol há-de ter um “c” circunscrito e ser motivo para tanta comoção. Porque o apelo da comunidade é neles muito forte, não é raro que façam coro com as Marianas: uma laranja no Facebook não é bem uma laranja, não vale a pena amargar amizades virtuais por causa disso. E ainda temos as Anas a que me referi no início e que são a maioria silenciosa. As Anas seguem literalmente o slogan Just do it, da Nike. Estão para além de todas as convenções, mesmo a de Berna ou a de Genebra. Para as Anas isto que escrevi é tudo chinês e usar o Google Translator estaria totalmente fora de questão.

Se leram até aqui, obrigada. Informo que este texto tem direitos reservadíssimos.

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