O Cartão de cidadão


Depois de ter sido enxovalhada várias vezes por ter o meu Bilhete de Identidade caducado há muito tempo, muito mesmo, decidi-me a resolver o assunto no pior dia possível, ontem, esquecida de que a tolerância da véspera e o período de férias de Natal ditariam uma avalanche de gente aos serviços. Na Conservatória, onde cheguei bem antes das 14 horas, dirigi-me à máquina de onde saquei um 83. No monitor percebi que estavam a tratar do 41. Saí para um café e uma nesga de sol que o edifício do Tribunal não deixa chegar àquele recanto mas quando voltei o contador mal tinha somado mudanças. Acomodei-me num banco na esperança de desistências em cadeia. Impunha-se matar o tempo. Tinha levado um livro na mochila mas esquecido os óculos. A maioria dedilhava smartphones, é um desporto que não pratico. Resignei-me e entretive-me a contar macacos porque ovelhas podiam fazer-me adormecer e lá deixava eu passar a minha vez. Foi com mágoa que finalmente me sentei na mesa e conferi os meus dados. Respirei fundo e mentalizei –me: então era ali o momento em que tinha de dizer adeus ao meu Bilhete de Identidade. Fiquei até contente por mo terem devolvido com dois furos. Já guardei no arcão da memorabilia. O meu BI foi um grande companheiro de viagem e a fotografia a cores da loira sorridente era sempre muito elogiada em rodadas de copos entre amigos, a prova de que qualquer mulher pode ser camaleónica mesmo sem ser a Madonna. Foram muitos anos a conferir-me alguma personalidade. Isso acabou. Agora tenho um CC: um coiso multifuncional em formato de smart card e com chip integrado. Cinco números em Um! Wow! É o progresso, estúpida. Porque tens sempre de estar a rezingar com tudo? Será que não vês que é só vantagens? Sim, vantagens e letras e números miúdos. Devia trazer uma lupa integrada também. Mas o pior, o pior mesmo, é, 1º, terem-nos retirado a liberdade de sorrir abertamente e mostrar os dentes; 2º, terem cancelado a cor das fotografias minúsculas. Tornaram-nos um exército de cidadãos sérios e uniformizados em tons de cinza, não sei se 50 ou menos, uma sombra do que somos. Nunca conheci ninguém que possuísse um Cartão de Cidadão com uma fotografia decente. Chegue-se à frente o primeiro. Não sei se é devido ao tempo de espera. É difícil mostrar boa cara quando se tem 40 pessoas à nossa frente e se enfrenta por fim a máquina de revelar almas. Também não tem a ver com a idade, não, não pensem que os novos escapam a este aziago desenlace: o meu sobrinho é um jovem e a máquina transformou-o num membro de um gang de bairro. A minha irmã ganhou o aspecto de uma gestora de casino ilegal, já o meu pai assumiu a face de um internado em alguma prisão de alta segurança. Eu, que tinha esperança de conseguir brilhar, já me conformei com a boca de esguelha, os olhos à camaleão, um para cada lado, a cabeça enterrada entre os ombros e o cabelo – porque desisti da ida ao cabeleireiro para a ocasião, ademais, não teria feito diferença, - uma ponta para norte outra para sul. É o retrato sério de uma pessoa com distúrbios mentais. Se por acaso algum dia desaparecer de casa sem explicação esta foto acabará talvez publicada nos media e demais orgãos de comunicação – “over my dead body” - e não deixará dúvidas: olhai lá mais uma despenteada mental cruzada de maluca e com tiques de psico-louca cujo paradeiro se deconhece. Os vizinhos dizem que apesar de tudo é inofensiva, não se deixem levar pelo ar endoidado e expressão vazia, por favor informem o Correio da Manhã se lhe botarem os olhos, a mulher deixou 150 gatos num TêZero a miar de preocupação. Um grupo de amigos dos animais abriu entretanto uma página no Facebook e uma subscrição para os alimentar. Façam Like. E foi para isto que esperei duas horas na Conservatória do Registo Civil. RIP Bilhete de Identidade #Fuck2016

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