Adele canta e desencanta-me o acordar.




Tenho tido o desprazer de ser acordada pela Adele vários dias a fio. O radio despertador está na RFM, - ou na Comercial, é tudo o mesmo - e o turno de serviço deve ser grande fã da cantora londrina. Algures entre as sete menos um quarto e as sete e um quarto da matina a senhora chega sorrateiramente com o seu lânguido lamento, Olá, sou eu. Estava por aqui a pensar se não gostarias de te encontrar comigo para recapitular tudo aquilo por que passamos. (Uma péssima ideia, quanto a mim. Não se acordam moscas que estão a dormir, já dizia a minha avó e não se deu mal.) - Dizem que supostamente o tempo cura todos os males, mas não me parece que me tenha curado de muito. - (Séneca, que viveu antes de ti, estava muito mais à frente. Aprende, Adéle, esquece essa mesmice da cura pelo tempo e bebe lá esta:"O vinho lava nossas inquietações, enxuga a alma até ao fundo, e, entre outras coisas, garante a cura da tristeza." Perante o elevado número de vendas de Hello sou levada a pensar que existe por aí um culto do drama que o tomou por hino. Mais vinho, menos drama, Adéle! Já chega! Quantas letras bonitas que podias ter-nos oferecido! Mais vinho, pois, mas não pipas de vinho, claro, ou ainda te mandavam para a rehab e depois tinhas de dizer "No!No!No!) - Olá, sou eu. Olá, podes ouvir o que tenho para dizer? Estou na Califórnia a sonhar com quem fomos quando éramos jovens e livres. Esqueci como era antes do mundo se desmoronar aos nossos pés. ( Ora aí está uma oportunidade perdida, Adéle. Estás na California onde o que não falta é terreno vinhateiro! E em vez de ires até uma adega e pegares num bom copo e brindares ao futuro e às vendas massivas de "25", andas para aí aos pontapés ao passado? Ó mulher, shut up! ) - Há uma tamanha diferença -uma baita diferença, diriam os nossos irmãos brasileiros - entre nós, e um milhão de milhas.  (O milhão de milhas é tranquilizador. Há sempre a secreta esperança de que esta letra não tenha sequela. De que a mulher não volte a botar olhos no muso. Pausa. Uns segundos depois a Adele enche os pulmões, espreguiça-se e solta a portentosa vocalização que todos somos unânimes em elogiar, continuando a sua ladainha do desespero, e neste ponto percebemos em Adele uma alma torturada pelo remorso.)  - Olá, do outro lado. Devo ter ligado mil vezes para te dizer que peço desculpa por tudo o que fiz. Mas quando ligo pareces nunca estar em casa.( Adele acha que o cara está em casa e não atende. Ela prolonga o seu sofrimento imaginando o cara em casa, a fazer festas ao gato, enquanto o telefone toca e o nome ADELE pisca nos dígitos do visor do telefone...Ora, Adele. Se calhar ele está na rua. Porque não tentaste o telemóvel? Hoje toda a gente tem telemóvel! O quê?! Records em cima de records e o gajo que te inspirou esta letra nem sequer tem telemóvel?! Mas que pitecantropo é este, Adele?!! Adele, olha, deixa-te de desculpas esfarrapadas! Pff!)   - Olá, do lado exterior. Pelo menos posso dizer que tentei dizer-te que lamento ter partido o teu coração. Mas não importa, claramente não te destroça mais. ( Claramente! Está na cara que o cara superou com Super-Cola3! E era mesmo necessário escrever esta letra de nojo, Adele? Safa! Depois a mulher acalma-se um pouco, torna-se algo analítica e reconhece ser centrífuga na relação.)  - Olá, como vais? É tão típico de mim falar sobre mim própria, desculpa, espero que estejas bem. Chegaste a deixar aquela cidade onde nada acontecia? Não é segredo, ambos estamos a ficar sem tempo. Por isso, olá do outro lado. ( Ficamos também a saber que não consegue resistir à cusquice, Adéle, não se faz, deixa lá a vida do homem em paz, Adele, é evidente que já não estás no radar do tipo há bué, quiseste deixar a pasmaceira da cidade onde viviam, foste atrás da fama, deste-te bem e ainda te queixas?! )

E para sublinhar o drama diz que o tempo está no fim e cada um de nós ouvintes que dê corda à imaginação e destrince, não é segredo para eles, o mesmo se não diga para nós. E de novo, Adele solta as feras e é quando eu resolvo intervir e acabar com o sofrimento da Adele e o meu próprio, desligando o alarme.






Hello...é eficaz pois eu salto da cama que nem uma mola. Mas quando chego ao quarto de banho ainda vou a resmungar mentalmente. Como é que esta canção sobre sentimentos de culpa vendeu 480 K cópias digitais nos Estados Unidos na sua terceira semana de circulação?! A canção é também um record de vendas somente equiparado ao obtido por Elton John há 18 anos com Candle in the wind. Isto ouvi eu na radio anteontem. Hoje já deve ter amealhado outros records. Evidentemente que Adéle é a senhora de todos os records, se os Grammy fossem anéis ela usaria um em cada dedo! Com Adele é tudo pela medida grande - 30 milhões de cópias, Grammys, Oscar, Globo de Ouro, prémios de composição e distinções da Billboard, TIME, People e BBC...Adéle é indiscutivelmente uma grande voz. Não contesto o que é óbvio. Mas não me entusiasma por aí além. Entusiasmou-me com Skyfall, o tema de 007, que se tornou um dos meus favoritos da série Bond. Hello entrou directamente para o primeiro lugar da minha lista de canções que não suporto.Não sei se por causa da onda de irritabilidade que acorda em mim mesmo antes do galo cantar, a altura do dia em que estou mais sensível, Hello está irremediavelmente condenada.


Quando penso em Adele penso na Florbela Espanca. Estes discos da Adele são Discos de mágoas, esta mulher é uma alma torturada! Mas a tortura foi um mal que veio por bem, ou não fosse viver numa mansão de 6 milhões de dólares que pertenceu a Paul McCartney, um luxo todo ele alicerçado nestas baladas sofredoras sobre corações destroçados e vidas desencontradas. Amanhã a ver se acabo de vez com a minha tortura, que nada me rende, sintonizando outra estação de rádio, talvez a Antena2. Oficialmente "25" chega hoje às lojas físicas e virtuais.Palmas.





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