Cinema: Flight, é uma decisão de risco


Ontem fui ver Flight, (Decisão de risco), de Robert Zemekis, um realizador que tem uma extensa lista de filmes muito populares. Alguns dos meus preferidos são Quem matou Roger Rabbit?, Contacto, O náufrago, e, não, eu não pertenço ao clube de fãs de Forrest Gump. Talvez consiga esticar a lista e por nostalgia incluir Em busca da Esmeralda Perdida, com a lindíssima Kathleen Turner e Michael Douglas, um filme misto de aventura e comédia de meados dos anos 80.

Flight não é um filme para entreter e dispor bem, dei por mim a estranhar o facto já que tenho andado numa de consumo de comédias, verdade, ou filmes que, ainda que sérios, dramáticos, densos, acabam por nos devolver uma sensação agradável no final, seja lá como for. Neste, nem por isso. Nem o final nos reconduz a uma nuvem de conforto e satisfação, nem o filme entrou para aquela short-list de favoritos meus. É um filme com altos e baixos, com turbulência. E até me custa um pouco a crer que esteja nomeado para Melhor Argumento Original, mas está, ok, quem sou eu para contradizer Hollywood.

A história deste piloto fictício, Whip Whitaker, não tem nada a ver com aquela do piloto que em 2009 fez aterrar um avião no rio Hudson, de nome Sully, um verdadeiro herói de carne e osso, lembram-se? A sua história não acaba bem, mas até acaba melhor do que ele próprio podia esperar se tivesse persistido em enganar-se a si próprio, a beber e a consumir cocaína e a pilotar aviões comerciais!

Zemekis e os aviões são uma associação que faço sempre porque uma das cenas de desastre aéreo que mais me arrepiou no cinema pertence ao filme O náufrago e é protagonizada por Tom Hanks. Eu nunca tive medo de entrar num avião. Sempre, nas viagens de avião que fiz, enquanto algumas das pessoas engoliam em seco, transpiravam e se agarravam ao assento, angustiadas, já eu estava descontraidamente a ler o jornal que tinha pedido, confiando no desempenho da máquina e da equipa humana que a controlava. Sei que é um tormento não conseguir relaxar, lamento que não consigam ultrapassar o transe, e espero nunca ter de lidar com um sentimento semelhante. De vez em quando, durante um voo, eu olhava da janela para o mar ou para a terra em baixo e pensava, foda-se, se isto avaria, não temos escapadela possível. Não é bem assim, em alguns acidentes aéreos o desfecho não é inteiramente trágico, no caso da amaragem no rio Hudson foi até um sucesso. Mas estudada essa possibilidade no nosso assento e do alto das nuvens ela parece extremamente remota. Por regra, afastava logo da ideia a hipótese de um acidente e continuava a desfrutar a viagem, tem de ser assim ou é o inferno. Apesar dessa minha descontracção quando vi O náufrago arrepiei-me a sério com essa cena marcante e até hoje lembro-me das imagens do filme de Zemekis. Nelas assistimos à queda incontrolável da aeronave no mar, sua perda e sobrevivência de Tom Hanks, o tal náufrago que dá nome ao filme; neste novo filme a aeronave repleta de passageiros é miraculosamente conduzida pelo experimentado Whitaker, a personagem interpretada por Denzel Washington, a uma aterragem forçada no campo. Penso que a maioria das pessoas que vê este filme sai da sala a perguntar-se se um avião assim pode executar e aguentar uma manobra, - the barrel roll -voar de forma invertida, de barriga para o ar. Eu comecei logo a colocar a seriedade do argumento em causa e hoje fui pesquisar na internet para saber se uma tal coisa é mesmo possível. Nem foi preciso perder muito tempo, vejam o segundo video, a resposta parece ser sim.


Bob Hoover faz uma barrell roll e deita ice-tea num copo!

Alvin M. "Tex" Johnston faz uma barrell roll com um Boeing 367-80

Tenho outra dúvida em relação à história do filme que é a de saber se um viciado em álcool que passa uma noite a beber todo o recheio de um mini-bar de um hotel até desmaiar consegue recuperar da ressaca recorrendo a umas boas snifadelas de cocaína. Harling Mays (John Goodman) é o fornecedor de droga do piloto aéreo e também de um par de momentos hilariantes para o filme, momentos que parecem um pouco metidos a ferros para cumprir o objectivo de nos fazer relaxar os músculos faciais e manter contente o público pouco dado a dramas fortes. Talvez tivesse preferido um amigo mais discreto, menos espampanante e menos humor. Também não gostei muito da forma como o papel da religião ou da interferência de Deus no destino são abordados, não sei bem que leitura fazer daquela cena em que Whip reencontra o seu co-piloto no hospital, após a saída deste do coma, o discurso dele é inesperado tanto para nós quanto para o próprio piloto que apenas mostra incredulidade, e temos ainda a mulher deste em constantes Praise the Lord! Enfim, não percebi inteiramente o que se pretendia. Ah, e Kelly Reilly?! Coube-lhe a personagem Nicole, também ela uma toxicodependente, viciada em heroína, cujo trajeto de vida se cruza com o do piloto quando este é internado no hospital onde ela se encontra a recuperar de uma overdose. (Ora reparem no par de fotografias abaixo e digam-me se não será Kelly a irmã secreta de Inês Castel- Branco...?!)

 


A presença de Kelly é muito airosa e decorativa, mas ela entra de rompante na vida de Whip e sai de rompante também, deixando o tradicional bilhete de despedida na mesa. E entra altamente dependente de heroína e sai francamente recuperada depois de umas reuniões nos AA e de ter feito uma amiga. Os argumentistas preguiçaram um pouco com com Nicole...

Resta-nos então Denzel Washington que é praticamente uma garantia em qualquer filme. Em Flight ele tem a tarefa difícil de interpretar um homem encurralado pelo vício da bebida e da droga. Whip já tinha assistido à destruição da sua vida familiar, agora é a sua carreira profissional que está em risco. Graças à sua perícia ele consegue salvar quase todas as almas a bordo e é considerado um herói. Só que ele sabe que não pode ser um herói já que o seu comportamento não é exemplar. Todavia também não aceita ser um vilão pois além de carregar consigo a enorme tragédia de não conseguir ultrapassar os seus impulsos ele não pode ficar sem a única coisa que lhe dá alento: voar. Zemekis e Denzel, juntos, querem fazer-nos desejar que o piloto consiga mentir até ao fim e safar-se. Mas, a minha parte de viajante continuamente me fez desejar o contrário, Whip Whitaker não podia safar-se. Se ele se safasse, como é que eu poderia continuar a viajar de avião nas calmas? Sr. Zemekis, deixe-me pelo menos a ilusão de que os pilotos dos nossos aviões não são humanos, não sucumbem aos vícios comuns de todos nós, que são confiáveis, que fazem the right thing, que são os guardas do destino. E, de facto, o filme deu-me aquilo que eu desejava. A resistência do piloto quebra-se finalmente durante a audiência e ele faz o que a decência ditava, evita que a memória da hospedeira de bordo, com quem tinha uma relação íntima, seja manchada. Ao expor a verdade sobre si mesmo a todos os presentes na audiência federal, ele dá o primeiro passo para alacançar a cura e simultaneamente a liberdade. E daí a pouco o filme acaba, não digo como para guardar o desfecho aos leitores, podemos desapertar os cintos, sair da cadeira. Estamos prontos para novos vôos cinematográficos. Não foi uma viagem má, mas podia ter sido muito melhor.



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