Cinema: O segredo de seus olhos


Há um presente que eu queria receber neste Natal mas que ninguém me vai oferecer porque eu não disse a ninguém que o queria. Pensei várias vezes comprá-lo, mas não calhou. Depois ofereci-me a minha prenda de Natal, um precisado disco externo que me custou os olhos da cara. Era uma ferramenta imprescindível e teve de ser. Com isso ficaram adiados até uma melhor oportunidade quaisquer outros hipotéticos presentes de Natal. Refiro-me, se ainda não adivinharam a este livro, O segredo dos seus olhos. Fiquei com uma enorme vontade de o ler depois de ter visto o filme que o adaptou - El secreto de sus ojos, um filme argentino, de Juan José Campanella, que obteve o Óscar para o melhor filme de língua estrangeira no mesmo ano em que concorriam o excelente e favorito O laço branco, de Michael Haneke, que também vi apenas este ano, e O profeta, de Jacques Audiard, que também vi recentemente. Já não sei quais os outros, mas estes três filmes eram realmente bons e ser-me-ia difícil eleger um como sendo o melhor se mo pedissem. A atribuição dos prémios é por vezes redutora, fazendo brilhar um filme e remetendo outros para um plano secundário. Por isso eu fico por regra mais atenta às nomeações do que propriamente aos vencedores dos Festivais.

Deste O segredo de seus olhos, estou certa que todos gostamos da reviravolta final e da forma subtil como uma das personagens, o marido da vítima, nos mantém na dúvida sobre se não terá sido ele o autor do crime. Todo o filme é feito desse tipo de subtileza e é aí que reside a chave do seu êxito. Com diálogos realistas e interpretações maravilhosas, nada é desprovido de significado, há sugestão em cada palavra, em cada gesto, em cada olhar. É daquele cinema que nos envolve de tal forma que parece estar a acontecer à nossa frente. Sei que pode parecer uma afirmação tola. Mas se viram o filme sabem o que digo.

As personagens têm real substância, respiram no ecrã. Embora tenha achado todos os intervenientes competentes, fiquei deslumbrada com Ricardo Darín capaz de interpretar primeiro, um homem novo, - o Benjamin Esposito, um jovem vigoroso, despreocupado, de respostas prontas - e depois, passados 25 anos, um homem maduro mas desassossegado, um homem à procura de respostas. Ele deseja recuperar o tempo perdido, uma paixão por viver com a sua chefe, a Juiza Irene, - que sempre lhe pareceu tão distante quanto a resolução do mistério Morales- e fazer a paz com o passado. Além disso podia citar a fotografia clássica, a boa banda sonora, a atenção ao detalhe na reconstituição histórica de Buenos Aires de 1974 e do ano 2000, marcos temporais da trama.

Mas o que me fascinou mais foi ver como num filme com duas linhas narrativas, com passado e presente de duas histórias, tudo flui em simultâneo com uma naturalidade e ritmos perfeitos. Isto é muito raro, este tipo de equilíbrio. Além disso Campanella conseguiu ainda realizar um verdadeiro thriller, que surge como que sem artifícios, manipulando doses de incerteza q.b para manter o suspense até final e pontuando a fita com momentos de verdadeira tensão dramática apenas quando necessário.

Um filme como este remete claramente para o cinema clássico norte-americano, até na sua forma convencional de realização, escorreita mas sem malabarismos, o crime em primeiro plano, mas entrelaçado nele uma história romântica que emerge logo nas primeiras imagens do filme na forma de um emocionado olhar, uma despedida numa plataforma de uma estação de comboios. Despedida que é uma das memórias que Benjamin, ex-agente federal, procura no presente exorcizar na forma do romance que pretende escrever, agora que se reformou, a par do Caso Morales, um crime de homicídio que tinha sido arquivado precocemente deixando-o em desassossego até ao presente. É um filme sentimental e por isso envolve-nos no desejo pelo triunfo do amor de Esposito e Irene, mas não deixa de ser um filme sobretudo policial, da investigação à tramitação nos gabinetes dos juízes e dos oficiais de justiça, no tempo em que Péron governava a Argentina, com direito à denúncia da corrupção, um filme que nos faz ansiar por justiça e que ao mesmo tempo nos faz sorrir com momentos de bom humor e rejubilar quando chega o The end.

Para já fica a memória cinéfila, para o ano a leitura do livro O segredo dos seus olhos.

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