O Natal não pode continuar a ser o Natal do supérfluo


Acabo de receber um postal de Natal extraordinário. Chegou-me de um amigo do Porto e nem sequer vou partilhá-lo pois quero ser perfeitamente egoísta em relação à minha admiração e espanto. Foi ele que fez. Aquilo não é um postal, é uma obra de arte, arte de intervenção. É um tesouro e por isso não mostro. Já tenho ali alguns postais lindinhos, uns cheios de neve-quando se pensa nas pessoas que já morreram na Europa e nos EUA em virtude do frio este ano, as paisagens de neve natalícia não são assim tão belas quanto isso-outros com a figura redonda e bonacheirona que a Coca-cola inventou, isto é, o Pai Natal vestido de vermelho e barbas brancas, outros com os tradicionais quadros religiosos.

Não quero remar contra a tradição dos postais de Natal. Não pretendo que todos os postais de Natal passem a ser uma forma de intervenção ou acto de revolta contra os podres da nossa sociedade. De facto até curto postais de Natal tradicionais. Tenho uma colecção enorme que guardo desde criança. Gosto de os receber, expôr, ordenar, guardar. Ultimamente também gosto de os desenhar. Fiz a minha estreia nessa tarefa este ano e já vendi alguns. Espero vender ainda mais. Mas, de facto, pensar fora da tradição é preciso pois talvez seja a única forma de recapturar o sentido extraviado da tradição.

Dizia ontem um norte-americano na TV a propósito da tempestade de neve em Nova Iorque que estava um frio louco mas que tinha de ir comprar prendas pois era Natal e a família não o perdoaria se falhasse...Get it?! Aqui estou eu, que nem sou religiosa, a tentar perceber se sem prendas no sapatinho, na lareira, na meia ou no peitoril da janela já não há Natal. São as coisas em si que fazem o Natal ou é o acto de dar que é significativo? E não poderia o acto de não-dar ter mais sentido afinal?

As datas festivas parecem comandar quase exclusivamente o acto de dar. A celebração do Natal materializou-se nesse carácter visível do objecto que se compra e dá. Seria bom que a vontade de partilhar não precisasse de data nem hora marcada. No entanto a nossa memória necessita de um lembrete e daí o Natal ser muito útil. Donde urge que seja Natal todos os dias ou, de outro modo, não há vontade de partilha. Partilhar não está na ordem do dia. É preciso uma data. Damos prendas nos aniversários, os pais aos filhos, os filhos aos pais, os amigos aos amigos. As madrinhas dão prendas aos afilhados na Páscoa, damos prendas no Natal, as famílias, os colegas, todos cumprimos o ritual. Assim cumprimos as obrigações sociais e nos restantes dias do ano podemo-nos concentrar em propósitos mais egoístas de coração descansado. Mas em relação a essas outras datas o acto parece mais saudável porque apesar de acontecer a toda a hora, no mundo inteiro, é mais pessoal e discreto. Não surge acompanhado de campanhas publicitárias, descontos e descontinhos, compre agora e pague só em Janeiro. Será que o Natal corrompeu o acto de dar?! Não! A bruxa má do mágico conto de Natal é a sociedade de consumo, não o Natal. O dar a qualquer custo, o dar até o que não é preciso, dar qualquer coisa, porque o outro espera que assim seja, é afinal um comportamento reflexo. Mordemos a maçã. 

Fomos todos condicionados pelos mecanismos do consumo de tal forma que a palavra Natal acciona em nós uma irreprimível vontade de dar prendas. Mas dar o quê? Este postal que me enviaram, é um postal diferente, é um presente de valor incalculável. Na realidade, sem conhecermos as pessoas nem saberemos bem o que lhes dar- um carro pode ser uma prenda insignificante para uns e um postal uma riqueza para outros. Quantas vezes tanto faz a quem recebe. Ou porque não ligam aos presentes, ou porque já têm tudo ou julgam ter, ou porque não gostam de vermelho e sim de azul. As prendas são desembrulhadas com meios sorrisos quando não com indiferença, e logo postas de lado, encaminhadas para o sotão, a garagem, a quermesse local no ano seguinte. Melhor seria então não-dar. 

Compreender que o Natal não pode continuar a ser o Natal do supérfluo, reaprender o valor do que é essencial ou não, reaprender um certo sentido comunitário de existência passa primeiro talvez por conhecer o outro. E quantas vezes quem nos está mais próximo é quem menos conhecemos. E quantas vezes quem nos está mais próximo é quem não precisa. Então vamos conhecer e dar a quem de facto precisa, quer demos um carro ou um postal especial, e façamo-lo sem data nem hora marcada. E assim faremos Natal. Todos os dias.

Comentários

observatory disse…
bjinho grande

dos grandes

muito grandes

:)