Poesia de Drummond para a Passagem de Ano

PASSAGEM DO ANO
 
O último dia do ano
Não é o último dia do tempo.
Outros dias virão
E novas coxas e ventres te comunicarão o calor da vida.
Beijarás bocas, rasgarás papéis,
Farás viagens e tantas celebrações
De aniversário, formatura, promoção, glória, doce morte com sinfonia
E coral,
 
Que o tempo ficará repleto e não ouvirás o clamor,
Os irreparáveis uivos
Do lobo, na solidão.
 
O último dia do tempo
Não é o último dia de tudo.
Fica sempre uma franja de vida
Onde se sentam dois homens.
Um homem e seu contrário,
Uma mulher e seu pé,
Um corpo e sua memória,
Um olho e seu brilho,
Uma voz e seu eco.
E quem sabe até se Deus...
 
Recebe com simplicidade este presente do acaso.
Mereceste viver mais um ano.
Desejarias viver sempre e esgotar a borra dos séculos.
 
Teu pai morreu, teu avô também.
Em ti mesmo muita coisa, já se expirou, outras espreitam a morte,
Mas estás vivo. Ainda uma vez estás vivo,
E de copo na mão
Esperas amanhecer.
 
O recurso de se embriagar.
O recurso da dança e do grito,
O recurso da bola colorida,
O recurso de Kant e da poesia,
Todos eles... e nenhum resolve.
 
Surge a manhã de um novo ano.
 
As coisas estão limpas, ordenadas.
O corpo gasto renova-se em espuma.
Todos os sentidos alerta funcionam.
A boca está comendo vida.
A boca está entupida de vida.
A vida escorre da boca,
Lambuza as mãos, a calçada.
A vida é gorda, oleosa, mortal, sub-reptícia.
 
****
 
RECEITA DE ANO NOVO
 
Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor do arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido
(mal vivido talvez ou sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser;
novo até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens?
passa telegramas?)
 
Não precisa
fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar arrependido
pelas besteiras consumidas
nem parvamente acreditar
que por decreto de esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.
 
Para ganhar um Ano Novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.

Comentários

zé lérias (?) disse…
Belinha:
Drummond de Andrade fica sempre bem no começo, meio ou fim de qualquer ano, não é?

Vou transcrever aqui o que escrevi no meu post "2007!", de 31/12, em relação ao seu "comment":

Não, não tenho na família nenhum Lérias.

A única semelhança que poderia existir entre o seu ex-colega e eu, é a que se refere à magreza e altura :)

Bom, em abono da verdade, o meu verdadeiro nome não é esse.

Foi uma pequena homenagem que quis prestar a um dos muitos personagens criados por Soeiro Pereira Gomes.

No caso, o Zé Lérias (ex-lavrador e "agora" operário), é um personagem de "Engrenagem".

Tal como o Zé Lérias, de Soeiro, eu também não sou licenciado em nada...

Apenas me resta alguma sensibilidade para saber ligar as coisas.

Agradeço-lhe a sua visita e as palavras deixadas.

PS- Pois é, apesar de ter um pequeno andar na Figueira e de aí ter nascido, só aí vou com a família raramente, sem contar o Verão...

Por isso não dei conta que a "Carvalheiro" já não existia, enquanto livraria.
Também me lembro perfeitamente do ar sisudo da sua proprietária, mas que se desvanecia quando falávamos de política, anos antes do 25 de Abril.

Saudações e saúde da boa.