O meu escritório é o meu covil

O início do ano dá-me sempre vontade de fazer uma grande arrumação geral no meu covil. Hoje foram para reciclar três monstruosos sacos cheios de papel: jornais velhos, facturas, esboços, folhetos, porcaria vezes porcaria tudo elevado ao quadrado, que se acumulava no meu covil. Este é o espaço onde desenvolvo a maior parte da minha actividade. A palavra covil está associada ao perigo, a feras e à maquinação de malfeitorias humanas. Por causa disso estou aqui a hesitar e a pensar se não deveria antes referir-me ao meu simpático escritório como toca não vá alguém pensar que sou uma mulher perigosa que se fecha no escritório a maquinar coisas ruins tipo atentados terroristas, filmagem de execuções com telemóveis, mais um argumento para o Manoel de Oliveira filmar, ou outras ainda piores, como caricaturas sacrílegas. Uma toca é também um esconderijo, um buraco no solo ou no tronco de uma árvore onde se acolhem animais de toda a ordem, aranhas, coelhos e outros, mas uma toca parece trazer implicitamente reforçada a noção de segurança e de refúgio. Longe de mim sentir-me uma fera assanhada…embora não dispense as minhas longas unhas. Ou, pelo contrário, um animal acossado… embora horas existam em que seria bom poder esconder-me do Mundo e imaginar que as quatro paredes do meu escritório são tudo o que existe! Quando penso em toca lembro-me logo daquela célebre por onde se lançou o coelho atrasado e que a Alice seguiu indo parar a uma sala cheia de portas onde só havia uma mesa de vidro. E essa história nunca foi das minhas predilectas, mais um motivo para não simpatizar com a ideia da toca. Mas se umas vezes aqui encontro segurança, noutras apenas sobrevém inquietação. É que esta história de querer fazer vida à volta dos desenhos e das letras parece muito engraçada, muito mágica, e se eu pudesse faria disso a minha vida até gastar as pontas dos dedos e todas as pestanas dos meus olhos. Mas o parto criativo tem as suas dores. E agora estou aqui a matutar na diferença entre toca e covil! 

Hoje o meu cérebro está particularmente lento, talvez porque tenha voltado a chuva miúda e quando há água a tombar do céu os meus mecanismos como que enferrujam. E que falta me faz o Fernando para me explicar! Acho que não o vejo desde Dezembro de 2004. “Se quiseres vir dar-me um beijinho rápido ao Jumbo...despacha-te!” Foi com esta mensagem que se anunciou o meu amigo biólogo. “Ok, vou-te pegar a minha constipação.”- respondi. Enfiei o casaco, peguei nas chaves e corri para o Jumbo. O Fernando estava no quiosque do café, o que achei estranho pois ele não costuma bebê-lo, e quando cheguei mais próximo pedia uma fatia de salame de chocolate. Mas podiam ser novos hábitos adquiridos no estrangeiro. – I was expecting a more kind of english gentleman, - exclamei ao chegar próximo. Ele colocou o boné e perguntou: - E que tal assim? Eu ri. – Ainda falas português ou nem por isso? De boné ele continuava a parecer mais um português alentejano que não era do que um inglês que também não era, exceptuando na sua actual residência. Estava com uma enorme dor de cabeça e daí o café, pensava ele que estava a chocar alguma. – Lá, um café custa uma libra e meia - disse. Fomos para uma mesa amarelo-pálido. A conversa relâmpago ia terminar em breve pois o plano dele era regressar ao Sul, jantar com a família um jantar de despedida e ir ainda mais para sul, até Faro, apanhar o avião para Leeds, pelo que cada minuto era controlado pelo relógio. E num instante o encontro relâmpago encontrou o seu fim, não sem antes se falar da Austrália e de Espanha, do que se ganha quando se tem a coragem de seguir um novo rumo, de crocodilos e tubarões brancos, de teatro, do meu carro e do meu carro, de templates, de desenhos, de projectos, de amigos comuns que estão por perto, do frio português e inglês, do calor inglês, da crise, de prendas de Natal, de cartões de Natal que começam por “Monstro”...Que bom ouvi-lo, vê-lo assim, sorridente, tranquilo, satisfeito. Fiquei feliz quando partiu, esqueci-me até de que ia perder a única pessoa que me acompanhava nas minhas idas ao cinema para ver longas metragens de animação e que gostava disso tanto quanto eu! O que não se ganha num encontro relâmpago, segundos de uma luz intensa e breve, mas capaz de iluminar a vasta escuridão da memória e da distância. Ó Fernandooooooooooooo, qual a diferença entre toca e covil?!!

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