O ano em que boicotei o Natal



Todos os anos em Dezembro há que ver um filme de animação. É tradição. É tradição de Natal. É algo que vem de longe nos meus hábitos. Tenho um bilhete de cinema, cor-de-rosa, rectangular, de papel muito fino. Data de 16 de Dezembro e 1973, refere a fila e o número da cadeira, o preço da sessão foi 10$00. Nome da sala: Cinema S. Geraldo, em Braga. Hoje a sala onde Villaret fez recitais de poesia e onde Sá Carneiro e Mário Soares realizaram comícios já fechou portas. Não sei no que se terá transformado. Os meus primeiros filmes foram vistos aqui e eram cinema de animação. Nessa altura como agora a minha devoção aos desenhos animados continua. Mas hoje reinam os Multiplex, salas pequenas: só quem nunca viu cinema num grande ecrã se pode contentar com aquilo. Neste vão de anos os bilhetes passaram de escudos a euros, 5 euros. Já não há carimbos manuais no pequeno papel, os computadores e as impressoras tratam do assunto, e, se quisermos até podemos comprá-lo pela Internet. Tudo muda, a única coisa que não mudou é este meu hábito de guardar bilhetes.

Mas o meu filme de Natal é um filme sobre o Halloween, é Nightmare before Christmas, do Tim Burton. Jack, elegante e horroroso esqueleto, estava cansado da sua rotina de sustos, ainda que bem sucedida, e da sua terra de todos os pesadelos. Apaixonou-se loucamente pelo Natal, enquanto espreitava uma cidade acolhedora, luminosa e colorida, onde reinava o espírito de Natal, tudo aquilo que o seu mundo feito de negritude e fantasmagoria, não era. Quis então substituir-se ao sr. das barbas brancas, não percebendo que, cada macaco no seu galho: nem o Pai Natal sabe assustar, nem Jack saberia dar às crianças os presentes desejados. O resultado é arrepiante, quase um desastre, mas...tudo termina bem, até a afeição que a donzela de trapos Sally lhe devota acaba por triunfar, e um nevão branco e apaziguador cobre a terra de trevas de Jack. The End. É um filme de animação em stop motion e além disso, um musical. Continuo à espera do grande regresso dos musicais. Mas o género sumiu dos ecrãs e do gosto do grande público. Resta rever.

O ano passado estava demasiado cansada de tudo, pensei que estava cansada do Natal também. Parecia-me claramente uma rotina, uma anual,  as mais das vezes consumista, outras sentimental, que o calendário nos traz com o frio de Dezembro. Sentia-me uma personagem patética e assíncrona. O pior que o Natal tem, achava eu, é que não se lhe pode escapar. Ele parece estar em toda a parte. Quem nele não se congrega está fadado a ser olhado com suspeita.

Sequestrar o Pai Natal foi o plano de Jack e falhou. O ano passado disse especificamente a algumas amigas e amigos que me costumam presentear abonadamente que não o fizessem, que não fazia sentido. Que eu não estava com espírito nem para dar, muito menos para receber. Que fizessem um cheque para uma instituição que trabalhasse com crianças. Que não queria receber uma prenda só porque no calendário estava assinalada uma data. Fiz campanha anti-Natal. Tornei o facto público. Pouco faltou para distribuir panfletos. (Não resultou, recebi prendas, o que só contribuiu para aumentar a minha neurose anti-natal!) Sentia-me medonha. Ficaria bem ao lado de Jake na espectral Halloweentown. Nem sequer podia ser a doce Sally, teria de ser uma verdadeira monstra. Subitamente percebi que o meu boicote ao Natal – esse ano não enviaria cartões nem SMS, não compraria presentes, muito menos simbólicos, nem abriria a boca para desejar Feliz Natal a ninguém, nem de viva voz, nem usando telefones fixos, móveis, fax, internet ou whatever – nada tinha a ver com a celebração do Natal em si mesmo mas com todos os outros dias que o antecederam.

O Natal tem de ser construído todos os dias. Não se resume numa prenda, por mais ansiada ou simbólica, num cartão lindinho, em duas palavras, numa reunião de amigos ou familiares lá para o fim de Dezembro. Isso é apenas obedecer ao calendário. A salvo de todas estas variantes estão os crentes que têm sempre um motivo sólido para celebrar: o nascimento de Jesus Cristo, na data convencionada para tal. E nesses não me incluo. Ora, tinha treinado pouco a minha rotina de dar. E também de receber. Para receber há que saber como. Receber, por vezes, é difícil. A equação tinha sido a do desequilíbrio. Quedara-me entre o dar pouco e receber ainda menos, e o dar tudo e nada receber. O saldo negativo era grande. Por isso me sentia assíncrona. Fora de tempo. Fora de contexto. Egoísta. E sem pinga de força para ser hipócrita. Era uma abóbora-menina de olhos e sorriso assombrados. Não servia sequer para compota doce. Mas, afinal, o que devia era boicotar retroactivamente o ano inteiro e não o Natal!

Neste Dezembro tudo isso me parece um despropósito. De tal forma que até resolvi fazer os meus próprios cartões de Boas Festas: o Pai Natal também vai às compras! Sim, sim, há uma certa ironia aqui. Mas, o Natal das compras, sem excesso e com significado, não poderá ele também ser Natal? O melhor que o Natal tem, acho eu, é que não se lhe pode escapar. Ele parece estar em toda a parte. Basta não o boicotarmos e somos parte dele. E nem é preciso comprar bilhete!


Comentários

Capitão-Mor disse…
Esse filme de Tim Burton talvez tenha sido a melhor película natalina de sempre porque foge por completo dos estereótipos do género.
dodo disse…
Haven't seen the film...
But, true enough, an old fashioned cinema with a big screen and many seats is my idea of cinema too. I dislike multiplex!