José Joaquim Gomes Canotilho: um professor às direitas




(Texto escrito em 29 de Novembro de 2004, recuperado de um blog extinto)

Ontem, cheguei a casa e atirei-me para o sofá, puxando para junto mim um montinho de jornais destinados ao lixo. Num deles e na última página (Jornal de Coimbra) vinha a fotografia do Prof. Dr. José Joaquim Gomes Canotilho, há um ano distinguido com o Prémio Pessoa, e umas extensas colunas de elogios. Este senhor foi meu professor em finais dos anos 80. Olhando a fotografia, os olhos de um azul perscrutador parecem-me a única coisa que não mudou naquele rosto. Isso fez-me olhar para o espelho da parede inadvertidamente, como se para verificar o quanto em mim mudou, inevitavelmente, também.
Aquele professor era intocável, mas no bom sentido. Nunca ouvi uma voz erguer-se contra ele enquanto fui estudante. Quando soube do Prémio fiquei contente. Desde que deixei a faculdade nunca mais o voltei a ver, nem na televisão, onde talvez algumas vezes tenha aparecido, como por vezes aparece Jorge Miranda. Estou tão distante das esferas jurídicas quanto das celestes. Em meados de Julho fui notificada do trânsito em julgado da sentença do último caso que aceitei...em 1997! É isso. A deusa Iustitia anda há anos em greve de zelo. É um território iníquo. Por cada lacuna legal que um diploma fecha abrem-se mais duas ou três. Fui assistir a uma sessão de esclarecimento sobre o novo Código do Trabalho. A linguagem ainda me é familiar, segui-la é que já não é assim tão simples. 

Pelos louvores que não pararam de ser escritos e proferidos pelas mais diversas bocas, o Prémio foi justíssimo. Pelo que conheci de Canotilho -profissionalismo, simplicidade, gentileza - não deve haver sombra de dúvida. Ano de caloira, os anfiteatros repletos de alunos que traziam a sua cadeira às costas – um aparte, eu queria dizer “cadeira em atraso”, com que se podia transitar para o ano seguinte, mas, de facto, uma verdadeira cadeira às costas teria dado jeito, pois foram inúmeras as aulas a que eu e muitos assistimos de pé ou sentados em vãos de janela ou escadas, ou até no chão – e muitas páginas dum manual de Direito Constitucional, de capa negra, por ele escrito, talvez umas oitocentas, metiam-me respeito. E temor. Hoje não consigo sequer recordar como foi fazer aquela cadeira. Muito estudo? Pouco? Noitadas sem pregar olho? Pura e simplesmente, não me lembro. Mas lembro-me das aulas. E lembro-me de comprar a Constituição, a nossa lex fundamentalis, e do título II, Direitos, Liberdades e Garantias, cuja ideia da aplicabilidade directa independentemente da acção do legislador jamais esqueceria. Isto aprendi com o Professor. E isto, para quem não sabia nada de Direito, viria a provar-se um conhecimento importante e talvez um dos primeiros adquiridos.

Anos passados pouco recordo dos homens e mulheres que se perfilavam à nossa frente nos anfiteatros da Faculdade de Direito de Coimbra. Nem da sua fisionomia, nem do seu carácter. Exceptuando, talvez, o mais que comum distanciamento que interpunham entre nós e eles, a começar no tratamento por “doutor” a quem ainda há pouco não era mais do que um puto do liceu a fazer provas específicas ou lá como lhe chamavam. Excepções à parte, para confirmarem a regra, quer fossem professores doutores ou aspirantes a mestre, ou uns fedelhos duns assistentes com a mania que já eram tudo, aí vinha o”dr” para cá, o “dr” para lá. Não sei se com isto pretendiam colocar-nos ao mesmo nível que eles, fazer-nos sentir em casa...comigo nunca resultou. Nunca me senti em casa, naquela casa. Só porque se vestiam de azul e cinza, outro fenómeno curioso, essa do uniforme bi-color, já se davam ares de gente muito importante, gente de “faca e queijo na mão”. Na sua maioria possuíam um apelido comum ao do pai professor, ou ao do avô professor ou ao do tetravô professor doutor que também andavam por lá, ou por lá tinham andado - verdade, a impressão de que a carreira universitária se herdava podia facilmente deduzir-se mal eram afixados os horários e os seus nomes. É a tal endogamia universitária de que tanto se fala e que ali nem se disfarça. 

Estes nomes  também se podiam encontrar nas faces das sebentas. As sebentas não tinham capas nem lombadas, eram uns fascículos policopiados, mal impressos em papel de porcaria, que se desfaziam com a humidade e se compravam sempre no 1º andar de casas velhas com escadas mal iluminadas e estreitas a cheirar a mijo de rato, tipo artigo de contrabando. Nunca eram entregues todos de uma vez. Vinham aos montinhos, tipo fascículos da Planeta Agostini, mas sem cores atractivas e miniaturas para coleccionar. E até podiam!Teriam sido certamente um sucesso maior do que o dos ovos Kinder Surpresa. Exemplos: miniatura da deusa da Justiça romana; miniatura da deusa da Justiça grega: miniatura da espada da deusa da Justiça; miniatura de um juiz impoluto; martelinho de juiz de Tribunal da Relação; miniatura de toga de magistrado em latex; miniatura de código civil de Seabra; miniatura de um advogado incorruptível; miniatura de pasta de advogado; miniatura da Faculdade de Direito com pilhas: liga-se e ouve-se o toque da cabra; miniatura de um professor da Faculdade de Direito, com e sem pilhas, caso ainda haja paciência para ouvir o seu discurso monocórdico ou não; miniatura de um estudante de Direito de cabeça perdida depois de ter encornado 1000 páginas e de ter chumbado na oral porque não sabia o conteúdo da nota de rodapé do Manual de Direito Romano; miniatura de uma estudante de Direito quando se apercebe de que escolheu o curso errado - nesta eu podia ter servido até de modelo ao molde em plástico, de facto, escolhi o curso errado. (Mas podia ter sido pior. Sem este curso nunca poderia dizer que o Prof. Canotilho foi meu professor e ter um professor que nos marca é algo que todos nós devíamos um dia ter podido experimentar. No ensino obrigatório ou no superior.) Miniatura do advogado desempregado - brinde, grátis, com o último fascículo, depois de perceberem que ninguém o queria. O diabo dos fascículos esgotavam facilmente e obrigavam-nos a muitas idas à baixa, Quebra Costas abaixo. Havia quem as mandasse coser e encadernar depois da nota 10. Eu mandei-as para o lixo, repletas de sublinhanços policromáticos, desenhos nos espaços em branco, versos sem valor e notas de memória de que nunca me lembrava. 

Gomes Canotilho era um professor como devia ser, um professor que mais tarde queremos lembrar: um mestre e um amigo. O prazer com que exercia o seu múnus era notório. Nas suas aulas não havia fastio. Não me lembro de fazer gazeta às aulas de Constitucional. Ele tornava o complexo acessível. Ele fazia-nos sentir que a Lei Fundamental não tinha labirintos que não pudessem ser percorridos. Mostrava-nos o caminho. Lembro-me de um Professor que cumprimentava todos os alunos, como se fosse possível conhecer todos os 400 que se amontoavam no anfiteatro que nem macacos após o assalto à carrinha das bananas. Pobre do archeiro que, bem fardado e de chaves na mão, suava que suava para furar a muralha humana, e abrir as altas portas da nobre sala de aula dos Gerais. Ia na frente do maralhal se não se arredasse, ai isso era certinho, com algum azar ainda era atirado por uma das janelas! Se há ruído que não esqueço é o do escancarar das duas portas contra as paredes! O pobre do homem já não saía antes que todos tivessem saltado bancadas e galgado degraus para marcar um lugar sentado, de pé ou acocorado, um lugar, por Deus, um lugar!!GUARDEM-ME UM LUGAR!!! Antes da enxurrada parar, nem pensar em arredar pé, o senhor archeiro sabia da fúria das hostes. Ainda lhe pisavam os calos ou lhe vazavam algum olho, safa! E se havia concentração de capas e batinas era de rir ver os panos a ensarilhar a vida aos mais afoitos. Uma colega ficou de óculos esmagados num desses episódios. Outros, pesos-pluma, levitavam, outras transpunham a entrada em pontas. Digamos que era treino para certas Noites do Parque que haviam de vir, lá para Maios. Que condições para ter aulas. Por isso, hoje, quando vejo na TV os alunos recalcitrantes por causa do pagamento da propinas, o meu pensamento é sempre o mesmo: também eu me recusaria a pagar propinas, eu a monte com mais não sei quantas sardinhas humanas, durante 15 longos minutos num compacto junto a uma porta para no final conseguir apenas um degrau para sentar e arrefecer o rabiote durante 45 minutos ou mais. Não há cu que aguente, desculpem. Aquilo é pedra fria do séc. XIV. Nem mesmo se tivermos pela frente o melhor Professor de Constitucional de Portugal isto se aguentava: não há direito! Eram meia dúzia de meses de aulas, matérias debitadas em passo de corrida, provas orais às vinte e trinta da noite com chamadas às nove e quinze da manhã, notas atiradas à pauta mercê de critérios mais que obscuros. E um bar onde numa das mesas havia um papel a dizer “reservado a docentes”. Propinas?! Não sei qual é o quadro actual. Hoje já só recordo o que aquela Faculdade tinha de melhor: uma linda vista do varandim sobre o rio Mondego, sobretudo em dias de sol, uma bela e preciosa biblioteca mesmo ali ao lado, e alguns excelentes professores. Como Gomes Canotilho. Gostei de ler o Jornal de Coimbra.



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